segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12522: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (3): Tenho pena de não ter, na minha posse, cartas que escrevi, onde narrava o nosso sofrimento.

1. Mais um texto do nosso recém membro da Tabanca Grande, Mário Gaspar (*):

Eu,  Mário Vitorino Gaspar, ex-Furriel Miliciano de Artilharia Nº 03163264, com a Especialidade de Explosivos de Minas e Armadilhas da CART 1659 – “A Zorba” e com o lema “Os Homens não Morrem”, que cumpriu a Comissão de 1967 a 1968 em Gadamael Porto e Ganturé, em relação à sondagem [sobre o que a malta lia nas 'horas vagas'] (**), embora tenha enviado já uma primeira resposta, como solicitado, interessa talvez completá-la.

Tanto em Gadamael Porto, como em Ganturé nada existia. A luz que havia era improvisada, com garrafas de cervejas repletas de gasolina, um pavio de gaze enfiado num orifício de uma carica. À noite, e através de um motor, tínhamos luz principalmente para iluminar o espaço que ia da paliçada ao arame farpado.

Não havia nada, nem possibilidades de tomar um banho, senão através de um púcaro, feito de uma lata de óleo com uma asa de arame. Os copos eram feitos de garrafas de cerveja, cortados com um ferro em brasa, depois de cheios até à zona que pretendíamos aproveitar. Os armários, mesas, bancos, etc. feitos de madeiras dos caixotes de munições. As cadeiras – e que luxo – feitas das madeiras dos barris de vinho. Como é sabido, tudo improvisado portanto.

Não existiam nem bibliotecas com livros, nem sem livros. Os jornais e revistas que lia eram enviados pela minha mãe, que aproveitava a embalagem no envio dos mesmos para que recebesse uma ou duas postas de bacalhau, fazendo um embrulho que só uma mãe é capaz de fazer. O bacalhau era partilhado por todos. Quando chegavam à minha mão as notícias, já eram de um passado muito remoto.

Quanto aos livros que lia, levei-os de casa, e ficaram sobre um caixote de munições, que era simultaneamente a minha mesa de cabeceira. Um livro de contos, que continha um intitulado “Crescei e Multiplicai-vos” de Urbano Tavares Rodrigues; “A Fanga” de Alves Redol; “Zorba o Grego” de Nikos Kazantzákis;  e “A Mãe” de Máximo Gorki. 

Quando os relia, voltava a relê-los visto não ter mais nada para ler. E eu que tanto gostava de me deliciar na leitura. Outros livros que acabei por ler foram emprestados, e até comprados quando gozei licença. Lia alguns quando me deslocava a Unidades onde habitualmente me deslocava para intervenções operacionais, livros do Furriéis Milicianos que tão bem conhecia. Leitura e bebida que era partilhada, quando “visitávamos ou éramos visitados pelos Furriéis Milicianos”. 

Recebi também das Madrinhas de Guerra alguns livros. Lembro-me, já no final da Comissão, em Bissau receber de uma Madrinha de Guerra um livro, que adorei, e não recordo o título, de Rainer Maria Rilke. Acabei de o ler quando fazia Serviço de Sargento da Guarda, no Forte da Amura. Lia a revista “Seara Nova”, nunca conseguindo a sua assinatura, disseram-me em Lisboa que não a podiam enviar para a Guiné. Recebia-a mas enviada por um amigo.

Quanto à música, na Messe em Ganturé tínhamos um gira discos, que era de um dos furriéis, mas só ouvíamos uma canção dos Sony and Cher - “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos “rangers” em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato”, nunca cheguei a saber de quem,  e “Et maitenant”, que acho que é de Gilbert Becaud. Música ouvia e mal na rádio: Bissau e Guiné ex-Francesa – Mornas e Coladeiras – principalmente.

Joguei à bola em Gadamael Porto, na zona que denominávamos de pista, cheia de torrões e buracos.

Jogávamos aos jogos de paciências, e a determinado momento começámos a jogar outros jogos a dinheiro. Isso provocou algum descontrolo, mas depressa acabámos por pôr cobro a tal. Joguei muitas vezes ao king no Comando mas o máximo que se perdia era uma coca cola.

Não ia à caça nem à pesca.

Frequentemente deslocava-me para junto das tabancas, convivendo com as populações, e mais ainda com os camaradas da Companhia, com todos eles, independentemente dos postos.

Quanto aos copos, era uma desgraça. Depois de regressar das operações – que eram muitas – bebias sete cervejas previamente encomendadas ao cantineiro. Bebia-as, e por vezes, quando tinha a triste ideia de depois do banho e do jantar voltar à cantina eram mais, pagas por mim e até mais, pagas pelos militares (principalmente Soldados e Primeiros Cabos). Nos dias em que não existiam saídas, começava o dia a beber cervejas ao pequeno almoço, ao almoço, no jantar e nos intervalos. Portanto, quando existia uma peça de caça, uma galinha de mato, bacalhau ou um franganote, lá me chamavam para um abrigo. E estávamos até esgotar as cervejolas.

Dormir a sesta estava fora de causa. Tinha os dias bem ocupados.

Quanto à escrita, havia sempre tempo no intervalo dos copos e das operações. No princípio da comissão – e em Ganturé – iniciei um trabalho sobre os usos e costumes da população. Mas desisti, queimando tudo o que conseguira recolher junto das populações. Escrevia principalmente cartas para a família, amigos e madrinhas de guerra. Era o meu principal alimento escrever e, depois aguardava pacientemente pelas respostas, olhando para o céu esperando a avioneta. E ao receber correio, que vinha quase sempre atrasado, sentia uma frustração ao assistir ao desespero de quem não recebera correio. 

Tenho pena de não ter na minha posse, cartas que escrevi, onde narrava o nosso sofrimento. Para os meus familiares, eu simplesmente passava férias em terras de África. Um amigo ainda me devolveu as cartas que lhe escrevi.

Também fui professor da 3ª e 4ª classes, tanto dos Soldados que compunham a Unidade, como os que nela estavam integrados: Praças “U” e Caçadores Nativos.


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Notas do editor:


2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Mário Gaspar

Gostei de ler este teu relato sobre algumas 'rotinas' literárias e outras, aquando da tua estadia na Guiné.

E gostei de ler porque também encontrei muitos pontos de contacto,, inclusive nos livros citados, que também li. Dos que citas apenas levei "A Mãe" e li, reli e utilizei para 'leitura de grupo'.

Quanto às músicas, eram mais diversificadas... também não admira, cheguei lá nos finais de 70 e nessa altura a música tinha dado uma grande volta e além disso o meu acesso aos meios de radiodifusão eram naturais (faziam parte do 'ofício') e tinha comigo muitos amigos da 'vida artística', que tinham tocado em conjuntos que participaram no "concurso de música yé-yé".

Abraço
Hélder S.

Unknown disse...

Ola Ainda continuo vivo.
Relativamente a informação sobre a Seara Nova do Mario Gaspar informo que era assinante e recebia a mesma na Guiné Meu caro Hélder esta mini escrito tem mais a vaer com a primeira frase do que o resto~

Uma abraço J.C.LUCAS