sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12479: Notas de leitura (545): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Pela minúcia, pela carga confessional, o diário de Martins Gago é um documento incomum, digno não só da nossa atenção como do estudioso. É facto que o sofrimento físico o vai diminuir ao fim de alguns meses e ele dificilmente se restabelecerá. Vemo-lo dedicado ao inventário da cantina, às pequenas e às grandes obras, impõe-se como comandante e é respeitado.
Bolama irá aparecer como um complemento dos tempos de risco que viveu em Canjadude, percorrendo o Corubal, foi este o rio da sua vida, que o maravilhou, tece loas a toda esta paisagem impressionante, e mesmo quando se empolga na descrição das belezas naturais não esquece a guerra e a vigilância.
Recomenda-se a sua leitura, sem hesitação.

Um abraço do
Mário


O diário de Canjadude e Bolama, por José Martins Gago (3)

Beja Santos

O que singulariza o diário da Guiné escrito por José Martins Gago? Primeiro, a disciplina da escrita diária, lançar para o papel as questões da sua sensibilidade, as minudências, o corriqueiro, tudo num enquadramento de grande sinceridade. Segundo, o diarista é frequentemente impelido a poetar, não é incomum que escreva: “Estou precisando da calma da poesia, vou fazer um soneto”. Terceiro, revela uma afinada relação com a descoberta dos espaços, está autodeterminado para uma grande disciplina, que igualmente incute aos subordinados. Quarto, escreve um documento que poderá ser encarado como um excelente input para o conhecimento da região Leste, após o abandono do Boé, quando Canjadude e Cabuca ficaram literalmente expostos.

“Guiné, Guerra e Poesia, Canjadude e Bolama”, por José Martins Gago, Chiado Editora, 2012, tem todos estes predicados de um diarista permanentemente exposto: como vê os patrulhamentos, o prazer em cultivar uma horta, remendar, alterar estruturas do aquartelamento, sabe conter a saudade, fala amiudadas vezes dos seus problemas gástricos, da sede, das colunas de reabastecimento. É um diário assente nos seus cadernos e confirmado e desenvolvido pelos aerogramas que enviou diariamente à mulher. Chegou em Março à Guiné, foi prontamente despachado para a CCAÇ 5 em Canjadude, no final de Setembro partiu para férias. No regresso a Canjadude, em 3 de Novembro, está ufano: “Esperava-me a mais ruidosa manifestação que jamais alguém teve na guerra e muito menos em Canjadude. Toda a companhia na pista para me saudar e com tal alegria de me verem de novo que me queriam levar aos ombros”. O capitão Pacífico dos Reis foi transferido para Bolama, veio em sua substituição o capitão Correia. Quando entra no seu abrigo tem duas cobras à sua espera. Resolveu o problema com a G3. Dois dias depois voltou à intensidade operacional, patrulhamentos, colunas e emboscadas perto do quartel. Há diferenças na tropa, acha que esta anda abandalhada no mato, o novo capitão não se importa que façam barulho. Os soldados guineenses estão à beira de um motim, acham que o capitão lhes bate por qualquer coisa, vão partir a pé para Nova Lamego, querem a substituição imediata do capitão. O alferes Gago apela ao bom senso, fá-los regressar a promete ir falar imediatamente ao capitão. Este acaba por ceder. Recomeçam as noites de suplício, os problemas de estômago regressaram em força. O incomum ganha permanentemente naturalidade: “Ontem à noite tive de me levantar por causa de um soldado que, bêbado, queria matar o capitão. Tive que sanar o problema. Esta gente é humilde, generosa, valente, mas reagem muito mal à injustiça e custam a esquecer o que injustamente os agride. Esta humilhação de levarem porrada vai demorar a desaparecer dos seus espíritos”.

José Martins Gago junto de rochas da região do Boé

É chamado a Bissau para frequentar um curso sobre reordenamentos. O nível desagrada-lhe, detetou imediatamente o postiço: “É triste ouvir pessoas falar de coisas em que não acreditam, as suas singulares expressões traem as palavras que proferem em voz alta”. E no dia seguinte: “A ensinarem-nos coisas do senso comum que toda a gente sabe e a falarem de outras que pelo seu caráter complexo é impossível aprender em oito dias e que ainda por cima não fazem falta nenhuma. Mas isto é tropa e aqui nada é impossível". As insónias levam-no a procurar um médico. Este diagnostica-lhe stresse de guerra, sugere-lhe a neuropsiquiatria, ele recusa. A sua situação física piora. Volta a Canjadude e regressa a Bissau. As noites sem dormir prosseguem. No hotel, e na neuropsiquiatria, vive o pitoresco: “O meu companheiro de quarto, se eu não tivesse acordado, teria puxado fogo ao hospital, adormeceu com um cigarro aceso e foi já o cheiro a queimado que me despertou”. O seu estado piora, mas ele pede alta, isto depois de uma arruaça, foi ao bar, pediu uma cerveja fresquinha, o cabo mandou-o para a cama, desatou a partir tudo no bar, vieram três enfermeiros, recorreu aos seus conhecimentos de judoca, despachou-os. O médico deu-lhe alta. Regressa a Canjadude e à rotina, prosseguem as colunas e os patrulhamentos, o serviço ao quartel, incluindo o da justiça. Dorme muito mal. Parece que anda automaticamente nas operações. Os seus registos referentes à alimentação começam a tornar-se obsessivos, sempre que vai a Nova Lamego pede bifes enormes. Não fosse a sua redação de ser tão convincente e a prosa tornava-se uma chumbada, uma enxúndia de trivialidades. E assim ao longo dos meses vamos assistindo à sua debilitação, mas ele arranja sempre coragem e persistência, trabalha agora no reordenamento na região de Canjadude. No fim de Abril, acabou a sua comissão em Canjadude, vai para o Centro de Instrução Militar em Bolama. A guerra mais feroz já acabou. Reencontrou o capitão Pacífico dos Reis, agora vai dar recrutas a soldados guineenses, anda no mato, ensina na carreira de tiro, sente-se mais desprendido mas faz todo o possível para se manter ativo nesta atmosfera de guerras aproximadas às reais.

O seu diário, nesta fase, torna-se muito monótono, são descrições por vezes enfadonhas, por vezes sem graça nenhuma, parece tudo dominado pela obrigação da escrita. De Junho para Julho parte novamente para férias. Quando regressa, sabe que Bolama fora atacada com foguete 122. Ele próprio começa a facilitar os seus resumos diários, parece escrever a contragosto: “A instrução fez-se nos termos habituais e assim o dia foi absolutamente normal”. Chegam-lhe notícias de Canjadude, ali morreu um furriel e um cabo numa mina. As provas finais da recruta estão a chegar ao fim, tudo isto se passa em finais de Setembro de 1970. Agora foi envolvido em reordenamentos nos Bijagós, escreve deslumbrado que encontrou o paraíso terrestre. Alguém lhe dá a saber em Outubro que na ilha de Soga, ali bem perto, estão a ser preparados comandos africanos e possíveis resistentes à ditadura de Sékou Touré. Tem notícia que há novas armas, aliás prevê um ataque a Bolama a um qualquer momento, não esconde que está feliz que em breve vai terminar a sua “contribuição para este desastre”. Continua a dar instrução, estuda alguns livros referentes a disciplinas do seu curso interrompido (economia). Experimenta novos tratamentos, o médico impôs um tratamento com comprimidos e uma injeção diária. Diante dos seus olhos, Bolama torna-se cada vez mais um centro de instrução de todas as tropas. Em breve, a sua comissão terminará. Anda irritado, cansa-se deliberadamente a trabalhar. Em termos formais, e contando a partida de Lisboa, já terminou a comissão, mas continuará a dá-la até chegar o seu substituto. Em 25 de Março, escreve: “Difícil me será falar do que senti ao chegar finalmente a Lisboa. Agora sim, estava distante da Guiné e sobretudo da farda. A minha mulher esperava-me e com ela o sabor da liberdade e da própria vida. Acabaram aqui os dois anos mais longos da minha existência e ao olhá-los, de frente para trás, parece-me agora que passaram depressa, que ontem parti e hoje voltei. Mas quando penso naqueles intermináveis dias de sede, de fome, de perigo, de cansaço e de isolamento, aí é que eu vejo bem a dimensão do tempo que me foi roubada à vida!”.

 E assim termina o diário de José Martins Gago, repete-se que é peça documental para estudar o que se passou no Leste, depois da retirada de Madina do Boé e de Cheche.
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Nota do editor

Vd. postes da série de:

13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12443: Notas de leitura (543): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (1) (Mário Beja Santos)
e
16 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12457: Notas de leitura (544): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Torcato Mendonca disse...

Mário,tens a caixa de correio cheia.

BOAS FESTAS

Abração, T.