domingo, 24 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3

1. Em mensagem do dia 17 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, este dedicado às artes da construção civil, mais propriamente à militar, e afins.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

3 - K3, 21 Fevereiro 1966 - Projecto para o primeiro restaurante local

Nessa tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã".

Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus 24 anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis.

Impunham-me sim, mais sob-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e os lavatórios panelaeiral e marmital.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência.
E porquê eu? Devido ao facto de saber o que era um tijolo? O cimento? A areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse.)

Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados. Mas então... disse o arquitecto vaidoso, que gostaria de ser, para o engenheiro cheio de cagança, que nunca serei:
- É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces.

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça, mas apenas para não criar complicações com estes dois estúpidos do caraças e vendo que até era capaz de resultar, dei razão ao primeiro e assim melhor ficou a minha reputação na resolução de conflitos.
Criei então, uma equipa de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores.

A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas...
Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes. Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não.
In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a primeira a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os mais que centos de jagudis que por ali andavam.


K3 (Saliquinhedim) - Veríssimo Ferreira e as suas construções
Fotos: © Veríssimo Ferreira. Direitos reservados.

Instalações modulares do aquartelamento do K3
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.

Considerando que os "marmelos" iam tiroteiando de noite, o que fizéramos de dia, tive uma excelente ideia, própria do génio que sou ainda hoje, (marado completamente) e que passo a contar.
Tínhamos na Companhia, um soldado da secretaria, que houvera sido pintor de adereços e de cenários para revistas do Parque Mayer. Com ele falei, adorou a minha extravagante ideia, aderiu e comprados que foram sacos e sacos de pano, ele foi pintando e à noite "pendurávamos-ius" num local visível da mata.
Na verdade até parecia que ali estava um belo e espaventoso edifício. Primeiro nada aconteceu, mas depois lá mandaram fogaracha que se desunharam e deixaram esburacados os paninhos pintados com tanto carinho.

Nós no dia seguinte, voltámos lá a colocar outros mas agora com novas cores ainda mais vistosas mas pintadas já em oleados. E eles, pimba, catapultavam. Quando perceberam que não conseguiam vencer-nos desistiram sem nunca terem percebido, como era possível construir tão bem e depressa.
Porém, não sem que antes e tendo nós detectado em que local se posicionavam, lhe não tenhamos deixado de enviar umas morteiradas 60 que decerto lhes acertaram porque as marcas ficaram lá bem visíveis. Mas o abandono daquelas malévolas tentativas de destruição só acabaram quando postámos do lado de Buro, um desenho bem real que até parecia estar mesmo ali um tanque de guerra, e do lado do Olossato, um contratorpedeiro cheio de canhões cinzentos e qu'até o próprio vento fazia com que parecesse que estavam a mover-se na direcção dos ceguetas.

Tal como diz o ditado: "Um bom estratega é com panos e bolos que engana os tolos"

(continuará ? sim... se tiver pelo menos 5 comentários)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado, sr. arquiteto Veríssimo por mais um relato onde a boa disposição e a imaginação se misturam e, formam uma receita excelente para quem como eu tem necessidade de ler textos que me deixem bem disposto e, este como os anteriores reúnem essas condições, por isso continua, pela parte que me toca, eu agradeço.
António Eduardo Ferreira.

Hélder Valério disse...

Caríssimo Veríssimo (até rima....)

Começo pelo fim. Com que então 'vocência' só se dignará a refrescar a memória se 'houver pelo menos 5 comentários'.... qual é mesmo o nome para situações destas?

Então aqui vai um pequeno contributo para a continuação dos "Fragmentos".

Parece que o menino começou por ficar incomodado, inicialmente, por depositarem em si a esperança de efectivar os melhoramentos das instalações... mas só inicialmente porque depois, logo de seguida, começou a ter visões 'mais largas'.
'Desenhador-arquitecto-engenheiro' também aderecista, também mestre de obras, enfim, um tal acumular de cargos e funções que parece um daqueles fulanos que anda por aí na 'net' com muitos cargos e que até parece que às vezes há quem diga que é 'ministro'...
Mas o que gostei mesmo foi da revelação que fizeste de que, à cautela, para evitares qualquer sombra de contestação, excluíste dos trabalhos todos aqueles que podiam saber alguma coisa 'da poda'. Com esse exemplo já sei onde certos gestores foram beber a formação....

Seja como for, a verdade é que o famoso "K3" (de que só ouvi falar e conhecia bem do mapa enorme que tinha sobre o meu local de função) e que me inspirou para num dia de menos disposição para aturar as basófias dos 'operacionais' de pacotilha que passavam pela messe de sargentos, referir como o local onde 'utilizei uma bazooca a fazer tiro de rajada', esse "K3", é sempre referido pelos seus utilizadores como um local com condições.
Certamente que terás alguma coisa a ver com isso.

Abraço
Hélder S.

armando pires disse...

Que tragédia, camarada Veríssimo.
Porque foste tu dedicar-te aos bancos quando paredes deviam ser o teu radioso futuro.
Pena, agora que o sei, que a construção tenha dado com os burrinhos na água.
Recomendava-te ao pai da minha extremosa, vocês construíam em conjunto, e eu recebia a competente comissão por vos ter apresentado.
Como dizia o outro, é a vida.
armando pires

Henrique Cerqueira disse...

Ó Veríssimo
Se fosse hoje estavas bem arranjado,porque os "ambientalistas" te iriam chatear a mona por teres cortado tanta madeira.Bom,mas como em «tempo de guerra não se limpam armas» a construção pelo que parece até não ficou mal de todo.Pena foi que os "mânfios" da bolanha te andassem a estragar as pinturas durante a noite.
Na verdade nós até tinha-mos um bom poder de improviso.Eu na minha morança em Bissorã com bidões de chapa,bancos velhos dum carocha e alguns caixotes de enfermaria fiz uma decoração que até parecia executada pelo Sisa Vieira.Já par não falar no abrigo á prova de bala que construí na porta de "casa"isto tudo para acomodar a minha família e mais um casal amigo que era o Alferes Santos e a sua recente espôsa Zinha. Quase sempre em todas as unidades haviam construções maravilhosas executadas por camaradas nossos,assim como alguns "monumentos"que representavam na maior parte das vezes o estado de alma de quem os idealizava e construía.
Boa Veríssimo mais uma estória a nos fazer recordar bons momentos que também se passaram com a malta na Guiné.
Um abraço.
Henrique Cerqueira

admor disse...

Caro Camarada Veríssimo,

Como V. Exa. Sr Engenheiro quer pelo menos 1 de 5, porque pelos vistos 1 de 3 não chega a nada eu cá estou a juntar-me aos outros para te obrigar a continuar com os Fragmentos.
Já mandei a minha "bocarra" no face, mas à cautela reforça-se a conta.
Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Mais um delirante, "emaranhado" de recordações, onde entram momentos de alguma boa disposição.
Enquanto li, "andei por lá" e, gostei das fotos. Explicas tudo a brincar, mas devias de ter alguma habilidade para "engenheiro"!
Um abraço.
Tony Borie.