sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12231: Notas de leitura (530): "Atlântida", por João Augusto da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se fala de João Augusto Silva, um administrador colonial que conheceu bem a Guiné, Angola e Moçambique.
Toda a sua prosa esmaltada reverbera fauna e flora, os silêncios dos cursos de água, o empolgamento das caçadas, o retrato a cinzel da dignidade africana. Acresce que ele foi irmão de Artur Augusto Silva, um português que faleceu na Guiné como terra da sua devoção e é tio do nosso confrade Pepito.
“Atlântida” é um livro fascinante, parece capaz de acolher a geografia, a sensualidade e as vindictas mortais do passado e do presente. Não percam a sua leitura, asseguro-vos que é prosa muito boa e que o que se escreve da Guiné é muitíssimo belo.

Um abraço do
Mário


João Augusto Silva, um caçador lendário que viveu na Guiné

Beja Santos

João Augusto Silva (1910-1990) foi funcionário da Administração Colonial na Guiné, em Angola e Moçambique. Desenhador, naturalista, decorador e escritor, foi galardoado em 1936 com o Prémio de Literatura Colonial da Agência Geral das Colónias. Foi também caçador, tendo abandonado a espingarda em troca da máquina fotográfica, com a qual se dedicou a capturar imagens de uma das suas paixões: os animais. Nasceu em Cabo Verde, passou parte da infância na Guiné, terra a que regressará entre 1928 e 1936. As suas obras maiores são: “África: Da Vida e Amor da Selva” “Animais Selvagens: Contribuição para o Estudo da Fauna de Moçambique”. Administrador do Parque da Gorongosa, será mais tarde Curador do Jardim Zoológico de Lisboa. Sobre a Gorongosa deixou um livro da maior importância “Gorongosa: Experiências de um Caçador de Imagens”. Foi recentemente homenageado pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi irmão de Artur Augusto Silva, um investigador e poeta luso-guineense, aqui já várias vezes auferido, e tio do nosso confrade Pepito.

Acaba de ser dado à estampa “Atlântida, romance de D. Salomé e outras histórias, histórias e contos da Guiné, Angola e Moçambique”, por João Augusto da Silva, Edições Vieira da Silva, 2013. Estranhamente, a obra não vem contextualizada e bem merecia um prólogo que enquadrasse as atividades profissionais e culturais deste administrador colonial plurifacetado, culto e com vários olhares para a etnologia, a etnografia e mesmo as ciências naturais. Do mesmo modo, a edição não está cabalmente revista, o que é manifesta injustiça para a memória do autor. Mas dá para perceber a riqueza vocabular, o amor entranhado a África, os superiores conhecimentos da fauna e da flora. O seu conteúdo propende para um maior número de histórias passadas em Moçambique e muito menos em Angola e na Guiné.

Onde reside a originalidade desta escrita? Se é facto que tem implícita a matriz de uma literatura colonial que fala do suicídio da nativa abandonada, da nativa sujeita a mil vilezas mas de muito nobre carácter, das superstições, da magia das florestas, onde João Augusto Silva é imbatível é na descrição envolvendo animais, atos de cobiça implacável entre colonos, peripécias em torno da valentia do caçador e da mestria do pisteiro.

Moçambique é o prato forte desta literatura de João Augusto Silva, mas a Guiné da sua infância e do adulto jovem merecem-lhe páginas belíssimas. Logo no conto Nhâ Bonita: “Eu adorava Nhâ Bonita e, naquele dia, como sempre, ao passar-lhe à porta da palhota de grossas paredes de adobe, caiadas de branco, dei-lhe os bons dias com todo o respeito. Ela respondeu-me na sua voz melodiosa, perguntando por meus pais e convidando-me a sentar um nadinha. Nhâ Bonita sabendo que eu ansiava por ver os bichos do seu pequeno jardim zoológico, ergueu da tripeça o seu imenso corpanzil e levou-me a esse mundo de maravilhas. Depois de visitar o jabiru, o periquito-rabo-de-junco, o papagaio-bijagó, a íbis sagrada, o pato-ferrão e tantas outras bichezas, mostrou-se um novo pensionista vindo da granja – uma gazelita cor de tijolo com o corpo sarapintado de listas e bolas brancas, que se aproximou, a passo cauteloso, com o narizito de ónix, fermente e húmido”. O menino vai à caça com Nho Gaetano, foi um dia de prodígios, o menino não queria que o seu pai soubesse daquela ida à caça, de onde tinham trazido uma pele de leopardo e assim termina a história: "Há pouco, ao remexer uma velha arca que me acompanhou nas infindáveis andanças pelas Áfricas, deparei com certa pele de leopardo já muito surrada – único troféu de caça que conservo da longa vida de sertanejo”.

A Guiné da infância de João Augusto Silva continua a estar presente no conto “O Javali Ferido”, agora vai-se falar de Ussene, um caçador Mandinga que trazia perdizes, galinhas do mato, patos-ferrões ou gazelas: “Serafim, o moleque, retirava de um barrilzito, nova provisão de pólvora grumosa com reflexos de chumbo, que o caçador embrulhava num trapo encardido, amarrando-lhe as pontas. Meu Pai dava-lhe então algumas moedas de prata que ele recebia com ambas as mãos, em sinal de respeito. Depois, com uma vénia de agradecimento, retirava-se para o quintal, sentando-se numa tripeça de pau-sangue à sombra do grande tamarindeiro, cujas florinhas amarelas atraiam uma multidão de irrequietos beija-flores”. E daí outra recordação da infância: “Ouvindo o bom do Ussene discorrer sobre os bichos da selva, o real e o fantástico casavam-se na minha imaginação infantil, emprestando-lhe um sortilégio inebriante. Eu sonhava acordado na felicidade de poder acompanhá-lo, de viver a seu lado aquela vida de aventura e mistério. Chegada a hora de abalar, Ussene, esguio e elegante como uma palmeira brava, erguia-se, ajeitava o turbante em redor das têmporas e despedia-se com um adeus amigo. Então, eu via-o seguir, digno, ereto na sua compostura de atleta, nado e criado ao sol, ao vento e à chuva”.

A prosa deste multifacetado artista é sensorial, contrai-se e expande-se de acordo com a necessidade de nos fazer vibrar com a hora do dia, a luminosidade, as cores da floresta, entre o real e o fantástico. Repare-se só nesta descrição: “O rio Farim que desce do longínquo Senegal como simples ribeiro ladeado de matagais, vai engrossando a pouco e pouco, até entrar no Atlântico, largo e majestoso, perto de Cacheu, vetusto burgo na decadência.
As viagens de canoa, ao longo do seu curso médio e superior são deliciosas no tempo fresco. À maneira que se navega, rio acima, as margens, ricamente arborizadas, estreitam-se e, de certa altura em diante as águas cobrem-se com um dossel de verdura onde circulam macacos-fidalgos e aves de todas as cores.
Nhô Manel Cambuca, mestiço cabo-verdiano, seguia à popa, agarrado ao leme, muito compenetrado do seu papel de piloto. Nos trechos em que o rio era largo, quando descobríamos numa das margens bandos de garças ou colónias de tecelões, cujos ninhos pendiam dos ramos como frutos, dirigíamos ao timoneiro um olhar suplicante e ele, com um sorriso cúmplice, mudava o rumo, de modo a passar rente ao arvoredo. Os remadores, por sua vez abrandavam o ritmo das remadas e nós, atirávamos às garças a meia dúzia de metros mas, para nosso desespero, as pedrinhas das fisgas não abalavam as aves que se limitavam a levantar voo, soltando o seu grito enervante de cana-rachada”.

A Guiné estará igualmente presente no conto “A aventura do amigo Soares” que assim começa: “A esse tempo vivia eu na Guiné, Babel das tribos mais nobres da África Negra. Falava correntemente dois dialetos – o crioulo e o mandinga – línguas francas, usadas desde o Senegal até à Serra Leoa. Passava então meses a fio sem ouvir uma palavra de português”. É em Bissau que faz amizade com um Soares, que tinha o dobro da sua idade, ele era magro e esgalgado e o Soares pesava uma boa centenas de quilos. Mas essas dissemelhanças não foram suficientes para arrefecer a amizade. Voltaram a encontrar-se, muitos anos depois em Lourenço Marques. O autor terá sido um dia profundamente desagradável com o Soares e ele aproveitou o reparo para lhe falar das atribulações da sua juventude em que conheceu os horrores da fadiga e da sede. Voltaram a despedir-se e nunca mais saíram. Um dia soube que o Soares morrera. Morrera um amigo que na hora certa lhe dera uma boa lição.

João Augusto Silva merecia ser mais conhecido: porque escreve muitíssimo bem e não esconde o seu amor por África, toda a sua prosa emana aquilo em que ele foi talentoso: as caçadas e o amor aos animais, a paixão pela fotografia e o lindo traço modernista do seu desenho e os sentimentos contidos que ele capta nas suas imagens fotográficas de que a capa deste livro é um mero exemplo de felicidade e orgulho.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12211: Notas de leitura (529): "Finhani, O Vagabundo Apaixonado", por Emílio Lima (Mário Beja Santos)

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