sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12199: Notas de leitura (528): "Os Roncos de Farim - 1966-1972", por Carlos Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
Li num ápice o trabalho do nosso confrade Carlos Silva sobre “Os Roncos” de Farim, um grupo de combate lendário, conhecia algumas referências, nunca me fora dado perceber a sua importância durante a guerra da Guiné. Encontrou um organizador de gabarito, o alferes Filipe Ribeiro, tinha dois comandantes de secção no topo da bravura, Marcelino da Mata e Cherno Sissé.
Combateram em todos os metros quadros do subsector de Farim, estiveram presentes nas mais importantes operações que aqui se travaram, entre 1966 e 1972.
Com a independência da Guiné, houve fuzilamentos, gente em fuga, alguns vieram viver para Portugal. Cherno Sissé conheceu a humilhação e o vexame.
Estão aqui todos os ingredientes que permitiriam a um investigador escrever um assombroso livro de guerra, com a diferença dos personagens serem de carne e osso e ainda puderem testemunhar, mesmo com muita amargura.

Um abraço do
Mário


História do Pelotão “Os Roncos de Farim”, 1966/1972, por Carlos Silva

Beja Santos

Foi graças à Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, que tive acesso a este documento surpreendente, uma obra desvelada do nosso confrade Carlos Silva.

Desconhecia inteiramente a existência de “Os Roncos” e os experientes e valorosos militares que estiveram na sua constituição. Formalmente, este grupo foi-se constituindo adstrito à CCAÇ 1585, e desde a primeira hora nele participaram ativamente o 1º cabo Marcelino da Mata, a comandar uma secção de milícias, e o 1º cabo Cherno Sissé, a comandar uma outra secção. Tal foi o seu desempenho, e havendo a proposta apresentada pelo 1º cabo Marcelino da Mara para comandar um grupo especial, acertou-se na constituição de um pelotão ficando como seu primeiro comandante o alferes miliciano Filipe José Ribeiro. O grupo entrou em funções em Dezembro de 1966, após ter participado numa operação com dois grupos de combate da CCAÇ 1585. No decurso de um assalto a uma casa de mato, Ribeiro, Marcelino e Cherno, e mais quatro valorosos elementos entraram determinados no objetivo, com sangue frio impressionante. Marcelino da Mata terá dito mais tarde ao comandante do BCAÇ 1887: “Encontrei o alferes para comandar o grupo, é maluco, até apanha os turras à mão…”. Assim se constituía um pelotão lendário. Juntaram-se as secções de Marcelino da Mata e de Cherno Sissé e foram selecionados outros soldados milícias. “Os Roncos” surgem como um grupo especial de tropa de choque que abriria o caminho às restantes. Os seus feitos, até à sua extinção (os seus elementos irão ser integrados mais tarde em companhias africanas e companhias de Comandos Africanos) foram extraordinários, em qualquer operação sabia-se de antemão que se podia contar com um naipe excecional de gente valorosa. Escrito à mão, no exemplar que consultei, aparece anotado pelo então alferes Filipe Ribeiro: “O grupo era constituído por 24 elementos, assim distribuídos: secção de Marcelino com 11 elementos, secção de Cherno Sissé com 11 elementos, o meu guarda-costas e eu, no total éramos 24. Acontece que em muitas operações o grupo não tinha mais que 15 ou 16 elementos. Éramos poucos mas eficazes”. É impressionante ver-se o nome destes homens e ler-se depois nas observações o rol de feridos e mortos.

A CCAÇ 1585 tinha a responsabilidade do subsector de Farim, fazia operações em locais como Sambuiá, Bricama, Biribão, Sano e Sulucó, entre outras. A partir de Dezembro de 1966, “Os Roncos” vão a todas, capturam armamento, entram em casas de mato, criam a lenda. Por exemplo, em Janeiro de 1967, na operação “Cajado” Ribeiro e a secção de Cherno confrontam-se com um grupo inimigo cinco a seis vezes superior. E Carlos Silva retira a seguinte nota: “6 granadas de morteiro que não chegaram a explodir ficaram espetadas no lodo da bolanha, em volta do alferes Ribeiro, porque, entretanto, teve de sair do abrigo junto a uma árvore e deslocar-se para as proximidades da bolanha. Tudo isto devido a ter de pedir via rádio à companhia de Cuntima uma maca para evacuar o ferido e munições. Pois ficaram lá quase duas horas debaixo de fogo intenso, sob um autêntico inferno. Não podiam retirar do local na medida em que aguardavam pelo regresso da secção do Marcelino, que entretanto já vinha no gosse-gosse para também dar apoio. Quando os reforços de Cuntima chegaram ao local de combate, disseram-lhe para se levantar com cuidado, agarrando-lhe pelos braços, pois tinha à sua volta seis granadas de morteiro 82…”.

Carlos Silva colige o historial mês a mês, sucesso a sucesso, vão-se averbando os louvores, de oficial a soldados, Ribeiro e os seus homens aparecem associados a outras forças. Em Outubro de 1967, depois da operação “Caju”, em que participaram “Os Roncos”, escreveu-se: “Foram três dias e três noites consecutivas em que as tropas estiveram constantemente em ação, batendo uma extensa zona, com a chuva a cair ininterruptamente, cumpriu-se a missão, apesar do sacrifício ter sido enorme”. Cherno Sissé e Malã Indjai foram agraciados com a Cruz de Guerra de 4ª Classe. Os louvores não param. Em Outubro desse ano a CCAÇ 1585 foi transferida para Quinhamel, o alferes Ribeiro deixou “Os Roncos”, foi rendido pelo alferes Morais Sarmento da CART 1691, que passou a comandar o pelotão. Em Dezembro, irá ter lugar a batalha de Cumbamori, tratou-se da operação “Chibata”, havia notícias da presença de Luís Cabral nesta localidade e base inimiga. Deslocaram-se três destacamentos. Assaltou-se Cumbamori, Luís Cabral teve tempo de fugir, infligiram-se muitas baixas, fizeram-se 5 prisioneiros e capturou-se material, caíram no dever 4 soldados dos “Roncos” e houve 17 feridos. Sobre esses acontecimentos Luís Cabral irá escrever o que viveu em “Crónica da Libertação”, págs. 315 a 230, fora a primeira vez em que ele estava presente num encontro entre as forças do PAIGC e as tropas portuguesas.

Em Junho de 1969, a Marcelino da Mata era-lhe conferido o grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre Espada, tinha sido já agraciado com duas cruzes de guerra, foi promovido por distinção a 1º sargento e graduado em alferes. Em Junho de 1970, igual honraria será conferida a Cherno Sissé.

Em Agosto de 1969, “Os Roncos” participaram numa operação em Faquina, onde será capturada uma elevada tonelagem de material. Cherno Sissé aguentou a pé-firme uma tempestade de fogo. José Pais, em “Histórias de Guerra – Índia, Angola e Guiné, Anos 1960”, editora Prefácio, 2002, refere-se ao malogrado Cherno Sissé, residente num bairro da lata da Cruz Vermelha, depois de ter sido espancado e de lhe terem vazado o único olho que lhe restava: “Lá fui à Boa-Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional na Guiné durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal face à vida. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio. Visitei-o com o filho no hospital prisão de Caxias. Cherno Sissé, 1º sargento do Exército de Portugal na reforma, duas Cruzes de Guerra, duas vezes promovido por distinção, Cavaleiro da Torre Espada, passados dois anos de cadeia, saiu em liberdade condicional. Voltou para casa, de onde agora quase nunca sai. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria portuguesa usou e deitou fora”.

A história de “Os Roncos” deve a Carlos Silva ter sido passada a escrito. Em meu entender, entidades como a Liga dos Combatentes deviam propiciar um estudo aprofundado sobre estes vultos grandiosos que correm o risco de desaparecer e dar-se forma a este grupo excecional que praticamente caiu no esquecimento. Os valorosos soldados guineenses mereciam ver esmaltada a sua história coroada de valor, dedicação e lealdade. Para os portugueses lhes reconhecerem o mérito prodigioso e a dívida impagável.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12181: Notas de leitura (527): "As Minhas Memórias de Gabu 1973/74", por José Saúde (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Anónimo disse...

Este é o blog que eu gosto. Esta a informação que preciso. Grato fico ao Beja Santos e ao Carlos Silva.
De Veríssimo Ferreira

João Carlos Abreu dos Santos disse...

Muito bem.
Venha mais historiografia deste gabarito.
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Hélder Valério disse...

Caros camaradas

A História é complexa e só será completa (se alguma vez chegar a ser) quando se fizer a exposição do vasto leque de situações que a compõem em determinado momento ou acontecimento.

Este testemunho (que concordo devia ganhar 'letra de forma') é uma peça importante e interessante (na medida em que nos dá a conhecer aspectos geralmente omissos) que vem ajudar a completar a tal História.
Por si só, isolada, é uma história, terá o seu valor certamente, principalmente para os seus protagonistas e/ou próximos, mas para se projectar como parte integrante da História necessita de ombrear com outros documentos que podem não agradar a alguns (com toda a legitimidade) mas que são indispensáveis para que haja 'um todo'.

Abraços
Hélder S.

2ª C.Caç Bat.Caç. 4515 disse...

Cherno Sissé! Possivelmente já gozará o sono eterno. COnheci-o no anexo de Campolide, sem uma vista e sem a perna esquerda. Muitas vezes lhe fiz o penso ao coto do membro amputado. Trabalho doloroso. Tudo suportava com reignação. Que Deus te guarde!