segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12074: Notas de leitura (522): "No Ocaso da Guerra do Ultramar", por Fernando de Sousa Henriques (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
O nosso malogrado confrade Fernando de Sousa Henriques descreve neste texto de recensão o assédio brutal a Canquelifá.
Estamos num local e num tempo da guerra de guerrilhas da Guiné onde o PAIGC já se move como num teatro de guerra convencional, traz viaturas e despeja em rampas os foguetões sobre os objetivos. Pelo que ele tão discretamente narra, o abandono de Copá teve foros de dramatismo. Nos primeiros tempos, a aviação ainda se afoitou a procurar castigar as peças de artilharia que desfaziam Canquelifá. Depois atingiram um avião, as coisas mudaram. Até porque um mês depois chegou o 25 de Abril.

Um abraço do
Mário


No ocaso da guerra do Ultramar (2)*

Beja Santos

“No ocaso da guerra do Ultramar”, por Fernando de Sousa Henriques, já foi dito, é uma narrativa sem rival nesta literatura da nossa guerra. O autor prometera aos seus camaradas de Batalhão escrever esta crónica sobre a vivência de todos no Leste da Guiné, com fronteiras com o Senegal e a Guiné-Conacri, entre 1972 e 1974. E concretizou a sua promessa, dirigindo-se a um leitor não iniciado descreveu armamentos e equipamentos, a composição da máquina de guerra, as entidades civis intervenientes, como fizera e onde a sua formação militar, narrou detalhadamente as vicissitudes passadas pelo BCAÇ 3883 e particularmente a CCAÇ 3545, a sua companhia, que irá viver o terrível assédio de Canquelifá, perto do termo da guerra.

Nunca encontrei relato que se aparentasse com este, não é uma questão zelo burocrático, é a nítida vontade de inserir o leitor num ambiente de Piche e quartéis envolventes, deu-se ao cuidado de explicar o que era o reino de Pachisse, caracterizou Canquelifá, todas as instalações do aquartelamento, os usos e costumes de Fulas e Mandingas, as acessibilidades, as milícias locais, os guias e colaboradores, o sistema de informações naquela área tão sensível, dá-se mesmo ao cuidado de contar, em resumo, os principais factos relacionados com o Batalhão que foram render e como se processou o período de sobreposição. Igualmente minucioso com o quotidiano de todo o efetivo militar e assim chegamos à guerra propriamente dita.

O sector do BCAÇ 3883 tornou-se repentinamente explosivo em 1973. O PAIGC saíra beneficiado da retirada das tropas portuguesas do Boé, paulatinamente foi-se aproximando de populações hostis e urdiu uma estratégia de clara intimidação a partir de 1972, começou por privilegiar as emboscadas nos principais eixos de comunicações. Em Agosto de 1973, entre Piche e Canquelifá fez um ataque feroz e observa que depois destes acontecimentos nada ficou como dantes. O próprio capitão Peixinho de Cristo ficou abalado, ele que assistiu à morte de um dos seus soldados, atingido gravemente nos intestinos, conversou com ele até ao final, dele recebeu, entre gemidos, as últimas vontades. As minas anticarro começaram a proliferar. O moral da companhia baixou.

A partir de Novembro, não mais houve descanso em Canquelifá, repetiram-se as flagelações, os mísseis deram entrada nas flagelações frequentes, era nítido que os guerrilheiros queriam comprometer os reabastecimentos e acantonar as tropas aos seus quartéis. As emboscadas às obras da estrada Piche-Nova Lamego também se acentuaram. Em dezembro houve um relativo descanso mas os assaltos às tabancas deram frutos, as populações, ainda lentamente, começaram a fugir para os grandes centros.

No início de Janeiro, os ataques com foguetões a Canquelifá marcaram presença, o autor explica a natureza das destruições que as imagens, pela sua eloquência, desfazem todas as dúvidas. Mas não só Canquelifá, Piche e Buruntuma também foram contempladas. Nessa altura os efetivos do Batalhão levam quase 24 meses de Guiné, foi necessário pedir apoio à CCAÇ 21, uma companhia só de guineenses, comandada pelo tenente Jamanca. Em 7 de Janeiro a CCAÇ 21 surpreende uma força inimiga e traz dois corpos, um cubano e cabo-verdiano. As flagelações recrudesceram. Ia começar o martírio de Copá, um destacamento que irá ser abandonado por impossibilidade de defesa. As picagens tornaram-se um tormento. De 19 a 21 de Março, Canquelifá é sujeita a bombardeamentos consecutivos, a partir de diversas bases de fogos situados a Leste e a Norte do aquartelamento. Quartel e tabanca estão irreconhecíveis, o gerador elétrico inutilizado, muitos edifícios queimados, um dos paióis periféricos da artilharia escapou milagrosamente. O desgaste psicofísico das tropas é enorme. As tabancas vizinhas começam a desertificar-se, a própria população civil de Canquelifá começa a retirar. O autor escreve: “Canquelifá passara a ser o epicentro de um vulcão, pronto a explodir. Era a capital do reino de Pachisse, um território ancestral e carismático, o único com fronteiras com o Senegal e Guiné-Conacri. Canquelifá era um alvo a abater para maior projeção externa do PAIGC”.

Em capítulo separado, o autor descreve os derradeiros dias do destacamento de Copá: “A partir do início de Fevereiro, esse destacamento passou a estar sujeito a fogo de morteiro de 120 mm, com intensidade variável, mas algumas das vezes até inusitada. Dentro, não havia a possibilidade de levantarem a cabeça”. Na segunda quinzena de Fevereiro, depois de uns três dias seguidos de assédio a Copá, foram aparecendo aos poucos e em pequenos grupos os elementos provindos daquele destacamento. “O pessoal vinha todo sujo, camuflado, se existia, em desalinho, arma às costas ou ao ombro, desorientado e de olhar perdido. Enfim, uma lástima. Tinham fugido do inferno em que Copá se transformara. Sem o saberem, deixaram para trás o furriel, o operador das transmissões e talvez outros. Aquilo parecia deserção. Confrontados com a ideia de regresso, diziam que preferiam ser mortos”. Lá foram convencidos a juntarem-se a quem permanecera no posto de combate, juntaram-se ao furriel, e então regressaram todos.

Em 21 de Março, chega ao aquartelamento o major Raul Folques, vinha a comandar duas companhias de comandos africanas. Detetaram uma base inimiga, atacaram-na, veio a Força Aérea e rechaçou-os, o PAIGC terá tido 26 mortos, entre eles 2 cubanos, capturam-se 2 morteiros 120 completos e 2 incompletos. Os Comandos, no decorrer da refrega, sofreram 2 mortos e 20 feridos. A seguir, fez-se uma nova coluna de reabastecimento, os guerrilheiros apareceram em peso mas a resposta das nossas tropas foi enérgica. As minas prosseguiram, mesmo a seguir ao 25 de Abril.

O BCAÇ 3883 deixou a Guiné em Junho de 1974. Fernando Sousa Henriques descreve emocionado as despedidas de todos, enumera e louvores e distinções de todo o Batalhão, e ao longo dos anos, os convívios sucessivos. Procede à relação nominal dos efetivos e não descura o espólio fotográfico relacionado com o sector L4. São impressionantes as imagens de Canquelifá em fase de destruição, os aspetos desoladores da tabanca, vemos mulheres e crianças catando nas cinzas os seus pobres bens pessoais, vemos as colheitas a arder, um canhão sem recuo completamente destruído. Fernando de Sousa Henriques cumpriu cabalmente o objetivo a que se cometera, nada de mais minucioso, segundo sei, se fez à volta da história de um Batalhão, de uma Companhia, de uma vivência. O autor já não está entre nós, ainda voltou à Guiné, escreveu em 2011 “Picadas e caminho da vida na Guiné”, na mesma altura em que aderiu ao nosso blogue.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 20 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12061: Notas de leitura (521): "No Ocaso da Guerra do Ultramar", por Fernando de Sousa Henriques (1) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Mário Beja Santos

Camarada e Amigo,

Fiquei com muito interesse em ler este livro.

Os relatos são do meu tempo de Guiné, e foi por um mero acaso que não fui colocado no então chamado Triângulo da Morte (Piche, Buruntuma, e Canquelifá).Fui mobilizado em rendição individual para a CCAV.2749, mas nunca chegaria a este destino.

Fiquei a saber que a edição foi do autor no ano de 2007, e que entretanto aquele já faleceu.

Será que este livro ainda está à venda? Duvido... Sabes se há alguma possibilidade de ainda o vir a adquirir?

Desde já o meu obrigado por qualquer informação que me possas dar. Obrigado também pelo teu trabalho de divulgação.

Recebe um grande e forte abraço.

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Quando chegará a lucidez para analisar estes dramáticos factos para Portugal e enquadrá-los no fenómeno histórico do contexto das nações da altura?

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Augusto Silva Santos, Tive acesso a este livro graças à solicitude da confrade da tertúlia, Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes. Uma das questões graúdas que levantam as edições de autor é nunca sabermos como e onde procurar o que nos interessa. Às vezes temos sorte, vamos ao Google, pomos o nome da obra e do autor e saem referências de livreiros online. Infelizmente, não tenho mais sugestões para te dar. Um abraço do Mário

Anónimo disse...

Caro Augusto Silva,
Procura directamente na Delegação da Liga de Combatentes, com sede em Ponta Delgada, Acores. Na altura da sua morte o Fernando de Sousa Henriques era presidente daquela Delegação.
Estes são os contactos da Delegação:

Presidente:
Manuel Bernardino Gomes Brandão

Secretário:
José Francisco Garcia Mota

Tesoureiro:
Manuel Francisco Moniz Simas

1º. Vogal:
Durval Simas Faria

2º. Vogal:
Manuel António da Costa Padua

Tel: 296 282 333

Cumprimentos.
José Câmara

12 Martins disse...

Comprei o meu exemplar em Novembro de 2007.

Contactei o Fur.Mil Pouca Roupa da Conceição, pelo Tlm 965 035 765.

Não voltei a contactar com o Pouca Roupa, que residia na zona de Lisboa.

Anónimo disse...

De: Augusto silva Santos

Aos camaradas Mário B. Santos, José Câmara, e Martins, o meu muito obrigado pelas vossas informações.

Vou estabelecer estes contactos para ver se tenho êxito.

Um forte abraço para todos.

Anónimo disse...

Caro Augusto Santos Silva,
Talvez a solução seja contactar a Livraria Solmar em Ponta Delgada, telefone 296 282 841. Ou mesmo a Bertrand para saber se a loja de Ponta Delgada tem o livro disponível.
A descrição sobre a fuga de Copá levantou celeuma aqui no blogue.
Cordiais saudações,
Carlos Cordeiro