segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12048: Notas de leitura (520): "Guiné Mal Amada - O Inferno da Guerra", por António Ramalho de Almeida (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de recordações de um alferes instrutor de companhias de milícias, deambulou por Empada, Nhacra, Nova Lamego, Teixeira Pinto, entre 1964 e 1966.
Tanto quanto sei, trata-se do primeiro relato de um instrutor de milícias. Dá para perceber como Empada era um inferno. Aqui e acolá, penso que deliberadamente, mistura a ficção com a realidade, põe Spínola na Guiné em 1966 e descreve uma coluna por Mato Cão numa atmosfera arrepiante, pior cenário de guerra não podia haver. É bem provável que esteja a contar a ida de uma coluna que foi criar em Missirá um quartel.
Ficamos com um quadro conjuntural da Guiné desse tempo, ainda com zonas relativamente tranquilas à mistura com outras altamente explosivas.

Um abraço do
Mário


Guiné mal amada, o inferno da guerra

Beja Santos

“Guiné mal amada, o inferno da guerra”, por António Ramalho de Almeida, Fronteira do Caos Editores, 2013, reúne as recordações de um alferes que chegou à Guiné em Outubro de 1964 e a quem foi dada a incumbência de instruir companhias de milícias. Andava com uma equipa constituída por um sargento, um furriel, três cabos atiradores e três cabos enfermeiros. Empada foi o seu primeiro destino, aqui conheceu o batismo da guerra. Tinham-lhe dito no Quartel-General que iriam ser criadas 20 companhias que depois seriam distribuídas estrategicamente pela província, integradas em companhias ou batalhões das nossas tropas. “A minha missão era a de, em cerca de um mês, prepará-los para poderem dar uma resposta mínima a essa integração, quer no que respeitava a treino militar, quer a orientação disciplinar”.

Foi metido na lancha Bor até Bolama e daqui para Empada. Descreve a chegada: “Não havia cais, e tinha que se sair para a água do rio e seguir a pé até à margem. Depois o caminho que nos levava até ao quartel era medonho, já que parecia um túnel de mato denso. Senti que a apreensão não era só minha, já que o motorista que nos foi buscar tentava sair dali o mais depressa possível, e a secção que nos fazia a segurança pediu para nós levarmos as armas em posição de fogo”. Fica estarrecido com Empada, mas tratava-se de um ponto estratégico importante, “era o primeiro ponto do sector Sul com uma localização privilegiada para evitar infiltrações em direção ao Sul da província”. Ali permaneceu mês e meio. Conheceu Dauda Cassamá, cedo lhe conferiu a natural capacidade de chefiar a companhia. E começam as flagelações a Empada, umas a seguir às outras. Assistiu a um julgamento sumário de alguém que foi acusado de traidor. Executado, foi abandonado junto da pista de aviação, no dia seguinte apenas restavam alguns farrapos da roupa que trazia. Quem se dispunha a ir em perseguição do IN era Dauda e os seus homens, no regresso deixava à porta do capitão os braços direitos dos guerrilheiros mortos.

Em Dezembro de 1964, passa o seu primeiro Natal fora da família. Em Janeiro, está em Nhacra a preparar uma nova companhia. No Quartel-General conheceu um oficial modelar, o capitão Passos Ramos, barbaramente morto perto de Jolmete, em Abril de 1970. Chegaram muitos voluntários, eram precisos 120 homens e apareceram mais de 200. “Tudo gente nova, seduzida pelos 25 escudos semanais, pela comida, pela farda”. É à volta de Nhacra, vendo o temor com que eram recebidos e outras vezes a população a refugiar-se no mato para evitar com o encontro com as nossas tropas, que apercebe da tragédia do jogo duplo, população acossada, obrigada a estratégias de sobrevivência.

A seguir parte para Nova Lamego, aí permanecerá de Março a Maio. Na viagem até Bambadinca descobriu o macaréu. Aqui diverte-se, vai à caça das perdizes, descobre o Dr. Torres que conhecia toda a região melhor que ninguém e circulava no seu jipe por terrenos inimigos, ficou marcado pelas paisagens, pela amabilidade das gentes, por aqueles mercados onde se vendia mel bravio, tamarindo, papaia.

Regressa a Bissau, o seu novo trabalho era ler todos os relatórios de ações em combate e deles retirar todos os trechos onde era mencionado o nome do militar em termos elogiosos. Descreve o funcionamento do Quartel-General. Vai a Madina do Boé de raspão, a secretariar um processo de averiguações. Faz parte de um conjunto que tocava numa sala da UDIB. Volta a Nhacra e depois goza férias.

Aqui e acolá, presume-se que o narrador descarrega a veia da ficção. Iremos ler que o general Spínola chegará à Guiné no tempo da sua comissão, o que é manifestamente impossível, Spínola só pôs os pês na Guiné em Maio de 1968. E temos uma espantosa expedição militar para abrir o itinerário por terra entre Bissau a Bambadinca: “Todos sabíamos que havia uma zona da Guiné temida pelos receios de contos e lendas, e de fantasias, que fizeram do Mato Cão um verdadeiro Cabo das Tormentas onde o Adamastor era implacável… Contavam-se histórias de fazer arrepiar os mais ousados, senti um arrepio”. O narrador ia à boleia, seguiria depois para Pirada. E lá foram, segundo diz, desafiar o PAIGC em Mato Cão, um efetivo de 200 militares, à frente o rebenta-minas, pelotões a pé, de ambos os lados da picada, depois seguiam três ou quatro unimogs com grupos de combate, e depois os carros da engenharia, com uma grua e camiões cheios de material de construção, já que a missão visava a construção de um quartel numa zona próxima de Bambadinca, na margem direita do Geba. A viagem é de cortar a respiração, a estrada, por falta de uso, estava péssima, a tensão era enorme na coluna, havia para ali um silêncio sepulcral, afinal fez-se um percurso sem grandes problemas. Despejaram-se algumas rajadas de metralhadora para as margens da picada, não obtiveram resposta. Não se percebe exatamente como, chegaram a Bambadinca. O que terá acontecido, realmente, foi a deslocação de meios de Engenharia num local a Norte de Bambadinca, destinado a manter uma presença dissuasora numa região chamada Cuor, a Engenharia terá feito um quartel em Missirá, tornara-se fulcral proteger a navegabilidade do Geba. Mas li com imensa satisfação este relato ficcionado, já que passei cerca de 17 meses a ir praticamente todos os dias montar a segurança em Mato de Cão, onde o alferes Ramalho de Almeida viveu uma odisseia militar. O alferes instrutor de milícias chega a Pirada, descreve o ambiente fronteiriço, a atmosfera de espionagem e o papel de levar e trazer atribuído ao comerciante Mário Soares. Tanto quanto parece, já não estamos na ficção, o que se descreve é real, os incidentes fronteiriços, com retaliações de premeio.

Novo Natal passado na Guiné, agora o alferes instrutor é colocado em Ilondé, perto de Quinhamel. Considera que tinha chegado ao paraíso, atirou-se ao trabalho, preparou mais uma companhia. Descreve incidentes e um suicídio de alguém que não terá resistido psicologicamente ao aliciamento do PAIGC.

Como era o único oficial de Cavalaria, deram-lhe a missão de comandar um pelotão de autometralhadoras Fox, e dar-lhe-iam a compensação de regressar mais cedo a Lisboa. Desta vez vai para o chão Manjaco com duas Fox equipadas de metralhadoras, segue para Teixeira Pinto. Cedo descobre diversões como a apanha do camarão, nestes termos: “O pequeno ia para a sopa, para caldo de camarão ou para molhos; o médio era para rissóis, para caril, para omeletes e o grande era reservado para se comer à noite com cerveja fresca”. Desvela Teixeira Pinto e as colunas com uma Fox na frente, passando por Bachile, até ao “comboio” para o Cacheu. Deram-lhe a incumbência de nomadizar à volta de Teixeira Pinto, “Conheci recantos lindíssimos, vi zonas de floresta dignas de admiração, e até zonas onde possivelmente nunca nenhum ser humano lá teria passado, pelo desenho esquisito do arvoredo”. Recorda o campeonato do mundo de futebol de 1966. E assim chegou ao fim do inferno. E retoma a ficção: “Devo afirmar que embora o meu tempo de permanência sob o consulado do general Spínola na Guiné fosse muito curto, apenas umas semanas, a verdade é que senti claramente uma mudança notável no ambiente militar da província”.

Mantém vivas as recordações da Guiné, ia contando à família e aos amigos os factos, as cenas e os episódios que mais o tocaram. E chegou agora o momento de passar tudo a escrito, para conhecermos o inferno da sua guerra, entre a ficção e a realidade.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12033: Notas de leitura (519): "País Sem Rumo", por António de Spínola (Mário Beja Santos)

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