sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)



Mafra  > Sobreiro > 1968 >  O cadete Cabral, discursando no jantar comemorativo do fim da recruta, na EPI.

Fotos (e legenda): © Jorge Cabral (2013). Todos os direitos reservados

1. Mais uma estória cabraliana, que nos chega pela amável e  caixa de correio da Anabela Martins, com data de hoje à tarde ("Encarrega-me o senhor Prof. Jorge Cabral de enviar o anexo. Com os melhores cumprimentos"):


1. Estórias cabralianas > As Mulatas de Luanda

por Jorge Cabral [ex-comandante do Pel Caç Nat 63, Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, 1969/71]


Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte.
–  Vamos os dois. Sabes que não discuto o destino.
 – Eu não vou –  gritou-me ele. (E não foi...).

E.P.I, Mafra, 15 de Junho, era o que estava escrito. Porque me teriam chamado? Política?

Era do contra mas discreto, tal como continuei a ser toda a vida. Aliás, há quem diga que o sou em demasia. Agora até as minhas doenças são discretas. Não há ecografia que não acuse... tudo, mas discreto (...discreta litíase, discreto enfisema...).

Porém, precisava saber a razão do chamamento.

Assim, dois dias depois, desloquei-me ao Distrito de Recrutamento. Recebeu-me um Primeiro Sargento, Candeias de seu nome. Expostas as razões e documentos, o militar consultou as normas e declarou:
– Tem razão. Mas,  se não vai agora, vai para o ano. Eu acabei de chegar de Angola, de Luanda, que cidade! As mulatas...

E durante uma hora, falou-me das mulatas.
– Mulheres assim não encontramos cá! E você é capaz de ser colocado numa secretaria em Luanda. Mas faça um requerimento. Não demore é muito.

Saí animado. Com a hipótese de não ir para a tropa? Não, com as mulatas de Luanda...

Esqueci o requerimento. Qual tropa, qual quê! Ia era fazer uma espécie de estágio. E depois, depois... as mulatas de Luanda. Chegado a Mafra, logo na primeira saída no café em frente do Convento, apresentaram-me Nasciolinda, a filha do escrivão. Então, não é que era mulata! Bem, não era de Luanda... mas representava um presságio do que me estava destinado. E as coisas até corriam bem com a Narciolinda, se eu não lhe tivesse escrito um poema, no qual jogava com as palavras, dizendo que a queria ver na Tapada, mas destapada...Não gostou. Paciência... Continuei vida fora a brincar com as palavras e a inventar trocadilhos, o que me ocasionou inúmeros dissabores.

A Recruta correu bem. Ágil e resistente, não senti qualquer dificuldade. Claro que,  na carreira de tiro, fui um desastre. Nem uma vez acertei no alvo. Estranho, porque nas barraquinhas do Parque Mayer, fui sempre o melhor...

Mafra chegou ao fim. O pelotão reuniu-se num jantar no Sobreiro. Discursei. No regresso ao Quartel, o Tenente Comandante, disse-me:
–  O Cabral vai para o Lumiar, Secretariado.

Na manhã do dia seguinte em formatura, distribuiram as respectivas guias de marcha. A minha dizia:
– E.P.A. Vendas Novas.

Ainda pensei que fosse secretariado de artilharia...mas não, era mesmo atirador.
– Então, meu Tenente ?  – perguntei.
– Devo ter visto mal  – respondeu-me.

Mais uma vez, não discuti o destino.

Fiquei a ganhar. Se fosse um ano depois, o mais certo era ter sido Capitão, como quase todos os meus colegas. Não imagino, nem ninguém consegue imaginar, o que seria uma Companhia Cabraliana...Se tivesse ído para Secretariado, atrasaria o expediente, perderia os papeis e não me teria sido possível, organizar, como fiz em Missirá, um original arquivo debaixo da cama, partilhado por insetos onde as garrafas vazias se misturavam com mensagens secretas...

Mas,  afinal, que teria acontecido para me terem reclassificado de madrugada? Perigoso subversivo? Operacional insubstituível?

Nada disso. Apenas uma valente cunha de última hora. Eu ganhei. O da cunha também Perderam as mulatas de Luanda.

Coitadas...

Jorge Cabral

PS – Anexo foto do tal jantar de fim da recruta. Cadete Cabral discursando.
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11720: Estórias cabralianas (79): O Capitão-Tenente dos Submarinos (Jorge Cabral)

(...) Qual Guiné? São tantas. Cada um cria a sua ou inventa... E quem diz Guiné, diz Guerra. Por mim conheço muitas... Mas como esta, que mora no Beco do Cotovelo, à beira da Mouraria, não deve haver mais nenhuma. É na tasca da Conceição, onde às vezes abanco com três ex-combatentes da Guiné. Todos eles lá estiveram, em lugares e tempos diferentes e todos davam pelo nome de Mouraria. (...)

5 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Jorge Cabral.

"Sou do contra, ...mas discreto"!.

Este texto, diz-nos tanto!.

Adorei, companheiro.

Um abraço, Tony Borie.

Anónimo disse...

...E ficaram a ganhar as da Guiné. Adoro a capacidade que tens a passar as tuas mensagens... em claro, mas muito discretamente.
Bravo!
Abraço,
José Câmara

Luís Graça disse...

Estimado alfero Cabral: a octogésima estória cabraliana merece ser saudada, de maneira "discreta", como o alfero Cabral gosta, mas também com regozijo da parte dos fãs da série, como eu (e o senhor sabe).

Levanta o meu alfero duas questões interessantes: (i) era possível motivar alguns militares da tropa, como o sargento Candeias, com o simples slogan propagandístico "há mulatas em Luanda"; (ii) naquele tempo, de impoluto patriotismo (coisas que os jovens de hoje não sabem bem o que é), também funcionava a "valente cunha de última hora"...

Este último tema interessa-me particularmente, já que não tem sido devidamente abordado no nosso blogue... Afinal, a lei era igual para todos ou havia, como hoje, uns mais iguais do que outros ?... Em Alcácer Quibir parece que morreu (ou ficou prisioneira dos moiros) a fina flor na Nação... Mas na Guiné a sociodemografia da morte foi muito mais nivelada por baixo...

Ainda há um bocado um amigo meu, mais novo, me contava como um seu primo, mais velho, da minha geração, ficou livre da tropa (e portanto de ir parar à Guiné e outros sítios indesejáveis do vasto império onde havia guera) mediante "cunha valente de última hora"... A avó (de ambos) pagou 200 contos (, o que na época dava para comprar um apartamento) para livrar o querido netinho... O patriota impoluto que conseguiu livrar o mancebo era nem mais nem menos do que umas das figuras gradas do regime de então, médico, militar, poderoso e influente... que esteve à frente de instituições como o Hospital Militar Principal... A senhora era vizinha, da Estrela, adorava aquele netinho (filho único da sua querida filha) e tinha bagalhoça. Pessoa de resto que eu bem conheci e a quem fiquei a dever favores... Claro que, também aqui, nem todos os netos são ou eram iguais...Um deles, meu amigo, e irmão do meu informante, foi parar com os costados á Guiné...tal como eu... Enfim, já naquele tempo havia netos ricos e netos pobres... E, claro, médicos militares, da mais fina flor da Nação, com diferentes leituras do valor do "patriotismo impoluto"...

José Marcelino Martins disse...

E já agora, Luis, "vê" por onde andaram "gratas figuras do regime anterior e do actual", quando chegava a altura de "assentar praça".

Uns ficaram pela Marinha e Outros pela Força Aérea.

Os menos "afortunados" iam para o Exército, mas ficaram pela Metrópole ou pelas capitais das provincias, ou nas outras, especialmente Macau, onde não havia guerra.

Hélder Valério disse...

Caríssimo JC (Jorge Cabral)

É verdade. Não se deve contrariar o destino. Pois, se é destino.... destinado está!

Não faço ideia como seria o "Alfero Cabral" em Angola mas certamente que hoje não teríamos estas "histórias cabralianas". A vivência em Missirá parece ser única e irrepetível. E as bajudas? Órfãs...

Agora, notícias de 'cunhas de última hora' sempre foram muito faladas. Justa ou injustamente. E também não é verdade que os serviços que necessariamente tinham que existir aqui em Portugal precisavam de pessoas? Claro que sim e nesse caso seriam melhor preenchidos por 'pessoas de confiança' do que por milicianos 'do contra', ainda que 'discretos'...

Como dizes, ficaram todos a ganhar, incluindo nós, que podemos ler as tuas 'estórias'.

Abraço
Hélder S.