domingo, 8 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12015: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (6): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 4 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

6 - E A SAGA DA MINHA CICATRIZ RESULTANTE, etc etc etc, CONTINUA

FIM DO ANO DE 1966

Baile na UDIB em Bissau, tocava um conjunto de música ligeira do Exército, onde tinha dois estimados amigos, um guitarra eléctrica, outro, organista electrónico. Interpretavam uma linda melodia para dançar à moda antiga (ou seja agarradinhos como convinha), chamada "Aline" e eu volteando com a namorada dum deles que só deixava que fosse eu o seu acompanhante e tal me houvera pedido, coisa que os pais dela presentes também, nem viam com desagrado, pois sabiam que eu era casado... bom rapaz... e conhecíamo-nos todos.

Sede da União Desportiva Internacional de Bissau
Com a devida vénia a Nelson Herbert

Só que:
Eu que nem era atrevidote, ou sequer disso fazia questão, e estava um pouco triste porque a minha mulher e a minha filha haviam regressado para a Metrópole nessa mesma manhã... atrevi-me... e... levei uma tal bofetada qu'ainda hoje a sinto aqui no semblante da face da cara, do lado esquerdo que m'alembro bem.

Apesar disso a noite passou-se depois em beleza, contrastando com o que se passava no mato, embora as comemorações hajam sido feitas um pouco por todo o lado.
Constatei que éramos capazes de esquecer o que de mau se passava, não nos entregávamos ao desalento, lutávamos e uníamo-nos se caso disso, distraíamo-nos quando a oportunidade surgia.
A noite acabou em completa e organizada desordem, própria daquela irreverente mas aguerrida juventude.

As ruas "na" Bissau, ao aparecer do nascer do dia, mais pareciam uma adega de garrafas partidas por tudo o que era sítio, e ali na Praça do Império ressonava-se no chão, vendo-se os três ramos das forças armadas a serem acordados com carinho pelas polícias militares.

Uns lá partiam para o mata-bicho disponível nos cafés das redondezas, outros tremelicando e ora caindo ora se levantando, provavelmente até devido às artroses, artrites, hérnias, enfim!!!

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ABRIL DE 1974

Bom.... depois veio um dia 25, (o que acontece curiosamente doze vezes por ano) em que acordei cedo, ouvi que havia uma revolução e todo contente fiquei, e ainda saudoso dos meus tempos de combatente, até ganhei novo alento e julguei que iria de novo pegar no meu morteiro 60, na minha G3 ou quiçá até, na Parabellum 9mm.
É que lá fora na rua, só ouvia "a luta continua" e para mim o significado de luta era combater contra quem nos emboscava nas matas da Guiné, ou seja responder aos tiroteios.

Cedo me desiludi, pois que afinal "luta" agora era outra coisa nada parecida, mas bem desvirtuada.
Por isso nem gritei VAMOS A ELES, avisando a malta.
Mas lá que foi divertido, foi.

Vi a tropa na rua, a princípio alinhada, disciplinada mas pouco, fardada qb que poucos dias depois desalinhou, indisciplinou-se e tanto andava com barba por fazer, cabelo comprido, G3 engatilhada e usada a tiracolo assim como eu hoje uso o chapéu que levo para tapar o sol na praia e até assisti a um juramento de bandeira na TV, que deveras me espantou dada a desagregação total das práticas constantes no RDM.

Tal rebalderia era vulgar acontecer nalguns aquartelamentos da mata, mas aí nem havia a presença de populações civis, como no caso da minha CCAÇ 1422 quando no K3. Por isso se fechava o olho, permitindo-se o uso de nem que mais não fosse, duns simples calções, bivaques em vez das tradicionais boinas, chinelos de enfiar... mas aqui na Metrópole este abandalhamento chocou-me sim senhor. E será que faria mesmo parte da "revolução em curso" como diziam, alguns dos seus tutores?

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ÓSPOIS

Lisboa transfigurou-se:
Deram-se as províncias ultramarinas... abandonaram-se os seus autóctones Portugueses que combateram ao nosso lado... regressaram os aqui nascidos e que haviam ido em procura de melhor futuro.

Os cais donde partíramos e chegáramos pareciam agora enormes armazéns onde milhares e milhares deixavam os poucos bens que conseguiram trazer. Retornados lhes chamaram, "alguns" daqueles, qu'agora mandavam, eles próprios também retornados, mas do exílio dourado e que foram recebidos como gente importante apesar de... e de.
Claro que também conhecemos as honrosas excepções.

Para além disso, afirmavam estes, os no poder à época, que tudo resultava duma descolonização exemplar.

E eu que revoltado já era, assisti, e como eu outros muitos mais, com muita tristeza e raiva ao que ia acontecendo e à malfadada sorte dos nossos amigos que ficaram lá na sua terra, e AO NOSSO LADO COMBATERAM.

Repito: "tudo resultava duma descolonização exemplar", como afirmavam os no poder à época.

Começaram contudo e felizmente a aparecer vozes discordantes e quem se insurgisse contra o descalabro para onde queriam levar o País... militares guerreiam contra militares... dão-se golpes e contra-golpes... e o pobre povo lá se ia manifestando gritando:
- "A luta continua".

E assim se passaram anos até que certo dia, o meu clube prega uma abada de 7 a 1 a um outro qu'até tinha um emblema com um "pesserinho" pousado em cima duma roda de bicicleta com pneu e tudo, e lá se apaziguaram os ânimos daqueles que com'a mim utilizavam os campos de futebol, para extravasar e largar uns inocentes palavrões.
Tive imensa pena de não ter visto o jogo, mas na semana anterior havia abandonado de vez o futebol que tanto me incomodava psiquícamente. Soube do resultado através do rádio ao vir de Peniche onde fora à pesca... trazia dois baldes grandes cheios de sargos dourados, mas comentei:
- Este gajo enganou-se...7 a 1? Pode lá ser ?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Veríssimo

Mais uma "obra em três andamentos": fim de 66, Abril de 74, Óspois.

Do 'óspois' respigo essa coisa já mítica dos 7-1. É como os 3-5 do dia da glória do João Pinto. Pode ser reconfortante para a alma mas agora é só estatística. Temos que seguir em frente e procurar outros dias de alegria.

Do Abril de 74 não posso adiantar muito. Em si mesmo, os acontecimentos que o despoletaram são bastante complexos, mas o aporte de esperança, de alegria, de imaginário de progresso, rapidamente se adulteraram (ou não!) e hoje em dia pouco resta, a não ser uma caricatura enganosa.

Do que escreves em jeito de lembrança do teu fim do ano de 66 quero salientar a frase "Constatei que éramos capazes de esquecer o que de mau se passava, não nos entregávamos ao desalento, lutávamos e uníamo-nos se caso disso, distraíamo-nos quando a oportunidade surgia." como um bom retrato do 'estar na guerra' no seu dia-a-dia.
Quanto à 'desventura' do bailarico, fez-me lembrar uma anedota que podia ser aqui aplicada mas entretanto acabei por me esquecer, pelo que fica assim!.

Abraço
Hélder S.

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Continuas com uma memória, onde se "encaixam" muitos de nós, pelo menos os que por aí ficaram a viver nesse cantinho lindo, da europa.
...e se "a dançar à moda antiga, com a minha mulher e a minha filha no pensamento, e depois próximo da Praça do Império, ressonava-se no chão, òspois, veio o Abril de 1974 e Lisboa transfigurou-se"...
Nestas poucas palavras, vão muitos anos da história de um combatente, onde a vais contando, sempre com um ar de boa disposição.
Bem hajas, um abraço, Tony Borie.

Anónimo disse...

É verdade! Veio o Abril de 74.
Acabou com a ditadura e com as guerras coloniais.
Tanto desejava para filhos e netos que continuassem a viver sem direito à Liberdade,ou a morrer em guerras a serem,um dia,inúteis.
Mas quanto à crítica a ALGUNS militares,aí estamos de acordo.
O Exército de 74 seria o tal "Espelho da Pátria".
Rui de Abreu e Lima.

Anónimo disse...

Caro Veríssimo

Boa memória e ainda bem. Bonito quadro. Aquele que lembra os 7-1.

É que ainda há dias, nas vésperas e no dia do último derby, os jornalistas e repórteres das rádios, televisões e jornais nacionais só se lembravam e passavam imagens de um certo 6-3.

E eu, que sou ingénuo, pensava para com os meus botões:

"Coitados, são jornalistas e repórteres independentes e nada facciosos! Não pensam... quero dizer, têm memória curta ou talvez, quem sabe, tenham sido atingidos por um ataque de amnésia geral, tipo alzheimer, que isto agora tanto ataca velhos como novos...!!!"

Por isso...viva a memória dos ex-combatentes...e a tua em particular!!!

Um abraço extensivo a todos os camaradas

José Vermelho