quinta-feira, 18 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11853: Notas de leitura (502): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 16 de Julho de 2013:

Segue a 2.ª parte da minha análise crítica do livro de Leopoldo Amado.
Cpts amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf. Mil. de Infª.
C.Caç. 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


"Guineidade e Africanidade" 
(parte 2 de 2)

É interessante registar a posição de Leopoldo Amado relativamente ao regresso de “Nino” Vieira em 2005, que saúda, como grande árbitro da polarização entre facções castrenses, antevendo os perigos de uma crescente militarização e consequente instabilidade do país, nestes termos: “Ante a excessiva politização da sociedade castrense e da sua propensão de assunção do poder pela força, acredito que Nino Vieira, como chefe carismático e histórico das forças armadas guineenses, possa ter um papel de moderação perante as profundas clivagens” (p. 143). Para além de outros argumentos apresentados em prol do regresso de Nino à Guiné-Bissau o autor preconiza o julgamento “justo e imparcial” do ex-Chefe de Estado.

Estas posições de L. Amamdo foram objeto de grande controvérsia, dividindo-se os bissau-guineenses em reações pró e contra. Atente-se, por exemplo, numa entre muitas: “Nino Vieira não é senão um criminoso nato com as mãos sujas de sangue, com decisão consciente de dar mais primazia ao poder do que verdadeiramente construir a Guiné-Bissau.” (Carlos Mussa Embaló citado a pp. 151). Apesar de todas as “máculas”, registadas antes e no decurso da guerra civil – e não são poucas – o autor considera que o regresso de Nino Vieira é desejável, na medida em que o processo não pode excluir quaisquer guineenses e que o ex-PR pode pôr “a sua experiência e as suas potencialidades positivas ao serviço da paz e do desenvolvimento” (p. 154).

Quanto à organização do poder político e ao debate da representatividade, o autor salienta, em várias passagens da sua obra, a importância da representação do poder tradicional, na esteira de outros compatriotas seus, permitindo assim articular o rural e o urbano, o moderno e o tradicional, o direito positivo e o consuetudinário. Este rumo não só atenuaria tensões internas mas, se bem levado à prática, constituiria um processo democrático sui generis adaptado à situação da Guiné-Bissau. Penso que é um ponto que merece adequada reflexão e que poderá constituir um guia para a futura organização do Estado da Guiné-Bissau. Aliás, mutatis mutandis e guardadas as devidas proporções trata-se de uma ideia já defendida na época colonial por António de Spínola, porém com outras roupagens – os chamados Congressos do Povo.

Uma outra preocupação invocada com fundada razão nos textos de Leopoldo Amado [foto à esquerda] consiste na temática das Forças Armadas e dos serviços de segurança, “mormente o indissociável e recorrente problema da corrupção e o uso da violência gratuita” (p. 224). Problemas que não só afetam a imagem do país, mas influenciam-no negativamente, quer interna, quer externamente.

Relativamente ao assassinato de Amílcar Cabral, o autor considera que o plano de proclamação do Estado da Guiné-Bissau tenha constituído a causa imediata. É uma tese plausível, mas que necessita de ser arguida. Quanto à “autoria moral” e sem embargo dos norte-americanos considerarem em documentos seus que se estava “perante um feudo entre mulatos das ilhas de Cabo Verde e africanos do continente” (o que é citado a p. 228), “desvalorizando incompreensivelmente”, segundo Leopoldo Amado, a “directa participação da PIDE-DGS e das autoridades coloniais portuguesas no vil acto”, para o autor “é possível hoje provar-se” que a quem mais directamente interessava a eliminação física de Cabral figurava inquestionavelmente a PIDE-DGS e as autoridades coloniais portuguesas (cfr. p. 228). Neste particular, manifestamos uma opinião contrária: com efeito, em nosso entender, a morte de Cabral não interessava a Spínola, pois aquele era o único interlocutor válido a ser encetado um verdadeiro e consequente processo negocial de paz entre as duas partes beligerantes. Por outro lado, não existem quaisquer registos escritos nos arquivos da PIDE-DGS que de algum modo refiram a hipotética eliminação física de Cabral ou que sustentem de essa tese, directa ou indirectamente. Nesta matéria, que eu saiba, as teorias são as mais diversas, mas não existem, nem podem por isso ser apresentadas, quaisquer provas e o mistério quanto à autoria moral do assassinato permanece.

É curiosa e historicamente do maior interesse a evolução dos movimentos pró-independência que surgem nos anos 50, do MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné) ao MLG (Movimento de Libertação da Guiné) que está na origem do PAI, que se transformaria, numa fase ulterior, no PAIGC. Aliás, Leopoldo Amado refere que “a reivindicação a posteriori da paternidade do Pindijiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam, indistintamente, o mesmo espaço político, a mesma clientela...” (p. 245), subsistindo uma certa confusão quanto à divisão de águas entre os dois, isto nos finais da década de 50. É igualmente relevante – e um facto que eu desconhecia – a distribuição de panfletos em Cantchungo, em Bissau e a sua própria afixação no estabelecimentos comerciais e postes de iluminação da capital, logo em 1960.

No que respeita à guerra colonial/luta de libertação, concorro com a tese defendida pelo autor de que o “PAIGC perseguia objetivos políticos e nunca agendou a possibilidade de derrotar militarmente o Exército português , obedecendo sempre as diferentes estratégias militares e as correspondentes tácticas aos objectivos políticos.” Sublinho os termos.

Não posso deixar de terminar voltando a frases duras que infelizmente e com grande pena minha definem a Guiné-Bissau de hoje, cito o autor “O Estado faliu. Faliu financeiramente, mas igualmente faliu nos princípios e na acção, ou melhor, na inacção, pois não se faz nada, literalmente nada, e, pior que isso, nada nem ninguém deu ainda inequívocas mostras de possuir ideias, estratégias e vontade política susceptíveis de reverter este estado de coisas” (p. 284)

A vontade e a capacidade de mudança, a meu ver, estão inteiramente nas mãos dos bissau-guineenses.

Pelas razões apontadas e inúmeras outras que poderia acrescentar e atenta a falta de livros e publicações sobre a Guiné-Bissau de hoje é indispensável a leitura de “Guineidade e Africanidade” de Leopoldo Amado para tentarmos compreender esse país que tem de quebrar definitivamente as correntes que o amarram a soluções inconvenientes e perigosas.
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Nota do editor

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