segunda-feira, 15 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11840: Filhos do vento (14): Nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu…(Paulo Salgado)


Guiné > Região do Oio >  Olossato > 1970 > O alf mil cav Paulo Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde da CCAV 2721(, comandada pelo então cap cav Tomé, Olossato e Nhacra, 1970/72)..

Este professor primário, transmontano de Moncorvop, haveria mais tarde de  fazer o curso de especialização em administração hospitalar, na Escola Nacional de Saúde Pública, e seguir uma carreira nesta área, com trabalho feito em Portugal, na Guiné-Bissau e em Angola, que é para ele um motivo de orgulho e para nós, seus amigos, um exemplo. Recorde-se que, para além de antigo alf mil cav, m o curso de operações especiais, o Paulo era então (à data em que escreveu este poste) um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau, estando à frente do Hospital Nacional Simão Mendes.

Espero  poder abraçá-lo na próxima 4ª feira, dia 17, na Ilha de Luanda, e trabalhar com ele esta semana. É um camarada e a um amigo, de valor e de valores (Recorde-se que é nosso tabanqueiro da primeira hora, ele, a esposa, Conceição, economista, e a filha, Paula, aluna do ensino secundário em Bissau, doutorada e investigadora em biologia na Grã-Bretanha; para estas nossas amigas, vai um afetuoso kandando, abraço, em angolês).

Foto: © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados.

1. Reprodução de uma história que o Paulo Salgado já aqui nos contou, há 7 anos atrás, na I Série do nosso blogue (que já ninguém consulta e que muitos dos nossos camaradas mais recentes não conhecem) (*)

Camaradas e Amigos:

Quero contar-vos uma estória. Em 1991, corria um Fiat Uno vermelho na picada, então muito boa, de Varela para S. Domingos [na região do Cacheu]. Lá dentro um casal. Seriam quatro da tarde. O sol ainda aquecia e o carrinho não tinha ar condicionado, apenas o ventinho quente aligeirava a modorra dentro da viatura, entrecortada pelos monossílabos que o casal ia trocando.

De repente, após uma curva, sob o peso de um jigo de verga de palmeira bem carregado de nadas (suponho), uma mulher gritava:
─ Bolea, bolea!

O condutor parou adiante, ajudou a colocar o cesto na bagageira, a arrumar a mulher no banco de trás. A mulher do condutor:
─  Boa tarde, boa tarde; tome estas bolachas... para onde vai?
─ Pa São Domingos... ─  respondeu a convidada. O condutor:
─ Manga de calor!  ─ E ela:
─ Calor, tchiu!─ O condutor:
─ A nôs,  portuguesis... ─E ela:
Ah, nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu… [O meu filho é filho de um soldado. Ele levou-o para Lisboa. E toma conta dele. E manda-me algum dinheiro].

O condutor e a mulher ficaram estarrecidos. Aquele soldado... Lá de Portugal... grande exemplo de grandeza!... 

Verdadeira, esta história. Comovente. Rememoro-a, a propósito do que ultimamente se tem falado no nosso blogue.

E queria acrescentar algo, se me permitis, camaradas. Um aquartelamento. Arame farpado à volta. Saídas para emboscadas, patrulhamentos, golpes de mão; ou sofrer ataques, alguns bem perto, direi mesmo ao arame, ou de longe com mísseis…E, pelo menos 150 tipos entre os 20 e 25 anos (no caso de uma companhia sediada em tabanca). O quê de isolamento, o quê solidão, o quê de sexo...  como aguentar tal sofrimento, tal ansiedade?!

Já reparastes como é sofrida uma guerra neste particular aspecto? Tanta coisa aconteceu, camaradas. Algumas estórias não nos dignificam, camaradas. Ainda que nada seja tabu, demos ter algum recato quando falamos de terceiros, de outras pessoas que estão vivas, que deverão ser respeitadas. E a dignidade passa por nós próprios. Nada é tabu. Mas tudo deve ser (re)contado com muita dignidade.(**)

Paulo Salgado
______________

Notas do editor:

(*) I Série > poste de 18 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLX: Nha fidju i fidju de soldado (Paulo Salgado)

(**) Último poste da série > 14 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11838: Os filhos do vento (13): Em busca do pai tuga: um reportagem, 3 vídeos, 19 histórias, 19 rostos, 19 nomes à procura do apelido paterno... Hoje no "Público", domingo, dia 14. A não perder.

5 comentários:

Anónimo disse...

Afinal não foram todos malandros e irresponsáveis...

J.Cabral

Costa Abreu disse...

A grandeza dos actos conta-se em poucas palavras, nem toudos foram maus, alguns tiveram a grandesa de assumirem as responsabilidades, pelo menos trazendo os filhos. Nao nos devemos esquecer tambem que eram tempos dificeis, e que alguns ja eram casados em Portugal ou estavam para casar, e por isso nao assumiam a responsabilidade de traserem um filho para Portugal, alem disso eram tempos muito dificeis, sem saberem nunca o dia de amanha, estariam vivos ou nao? No entanto creio que toudos deveriam assumir a responsabilidade dos filhos que vinham ao mundo, se nao trasiam a mae devido a responsabilidades em Portugal, pelo menos deveriam traser os filhos, pois eram a sua propria carne.
Julio Abreu
Grupo de Comandos Centurioes
Ex-Guine Portuguesa

Anónimo disse...

Caro Alfero Cabral,
...e quantos malandros nunca chegaram a saber que o foram?
Claro que isso não perdoa a atitude irresponsável daqueles que sabendo o foram e, infelizmente, continuam a sê-lo.
Abraço,
José Câmara

Luís Graça disse...

Paulo:

Põe-se aqui outro problema. É o outro lado do drama dos filhos dos tugas: que custos, nomeadamente emocionais, de saúde, etc., tem a separação de um filho ? O que é feito desse "fidju de soldado" ? Possivelmente até se integrou bem na família do pai. Mas... e a vinculação à mãe, a ligação à sua terra ?

A assunção da paternidade neste caso é um gesto de grande nobreza, que merece ser saudado... Não sei se foi exceção. Não foi concerteza a regra. Mas neste, como noutros casos, fazer generalizações é sempre abusivo...

Em todo o caso "levar a criança para Lisboa" pode não ser a melhor solução... Na época não havia sequer serviços e técnicos especializados que pudessem aconselhar o Zé Tuga, metido em maus lençõis... (Se calhar a maioria meteu-se em "maus lençois" sem nunca o saber...).

E, claro, nestes coisas o exército, como sempre, assobiou para o lado... Nem sequer havia uma política ativa de prevenção das "doenças sexualmente transmissíveis", quanto mais de "aconselhamento e acompanhamento"... A única coisa que na Guiné de Spínola era objeto de atenção e criminalziação seria a violação...Houve pelo menos casos que chegaram à justiça militar em Bissau... Quantos, não sei...

O exército, nesta como noutras matérias (estamos a falar do "sexo em tempo de guerra"), e sem ofensa para ninguém, era bem o "espelho da Nação"...

Henrique Cerqueira disse...

Luís estou de pleno acordo com o teu comentário e reforço ainda que : Em Évora no RI/16 poucos dias antes de embarcar-mos para a Guiné foi exibido um filme promocional da Guiné em que quase todas as imagens eram acompanhadas de jovens mulheres negras com os seus seios "empinados"e tudo para nos convencer que ir para a Guerra até nem era assim muito mau. Mas dar formação ou informação sobre a cultura das gentes da Guiné...nada ...zero. Depois é claro que muita malta seguiu por caminhos errados.
Há ainda o facto que a própria população se foi adaptando a certas necessidades e ela própria tinha os seus esquemas de "sobrevivência" dando assim origem a situações como as que estão a ser narradas.
Tanto na Guiné como cá sempre houve e haverá pessoas de má índole,pois que cá e nessa altura houve muito jovem que foi obrigado a casar só porque determinada menina ou sua mãe diziam que tinha sido "Desonrada" pelo determinado jovem e quando esse jovem era militar ainda era pior ,pois que o "moralista"exército obrigava o casamento e em alguns casos com despromoções á mistura. Note bem que não havia teste de paternidade nem nada,era só a palavra da menina ou dos seus papás.
Na Guiné tive a oportunidade de verificar que havia muito mais injustiça entre população e etnias que propriamente entre tropas e população. Digo mais que no tempo do "Caco" era mais fácil castigar um militar que um civil e na dúvida a razão era dada ao civil em prejuízo do militar.Vi um Furriel Fotocine ser despromovido em parada por ter batido numa lavadeira que supostamente o havia roubado.
Não branqueando o comportamento de alguns ,há que haver muito cuidado com os julgamentos precipitados,sobre o que se passou na altura do conflito.
Henrique Cerqueira