terça-feira, 9 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11819: Bom ou mau tempo na bolanha (18): Aqueles olhos azuis! (Tony Borié)

Décimo oitavo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Hoje até estava fresco pela manhã, bom para sair e ir dar um passeio pelas redondezas. O agora Tony assim fez. Caminhou à beira do canal onde existe um passeio longo que o contorna, com algumas flores e alguns bancos colocados estrategicamente, para os mais idosos e não só, se sentarem, e de onde se avista parte do canal e algumas terras alagadiças, selvagens, que se parecem muito às nossas conhecidas bolanhas. Vendo passar um grupo de pessoas, onde iam algumas raparigas afro-americanas, logo lhe veio à memória outras,uma das quais se chamava Cumba, e que era a sua lavadeira, que mais tarde veio a saber serem guerrilheiras, e que eram naturais, mas com olhos azuis, que diziam que talvez fossem descendentes dos padres, que antes dos militares, estavam estacionados na vila de Mansoa, num convento de uma ordem religiosa francesa, que mais tarde os militares ocuparam já em ruínas, mas que recuperaram, e onde estava instalado o comando do Batalhão de Artilharia “Águias Negras”.

Nessa altura, também andava por lá uma rapariga, que vivia entre a vila e a aldeia com casas cobertas de colmo, que existia perto do aquartelamento e da estrada que seguia para Mansabá, que pouco mais era do que um carreiro, filha de uma guineense e de pai era natural de Cabo Verde. Este tinha a profissão de marceneiro, e de um tronco de madeira fazia tábuas, tirantes, ripas, tudo a poder de um grande serrote que as suas mãos manuseavam. A rapariga, que devia de andar pela idade de quinze ou dezasseis anos, tinha uns olhos azuis com uma tonalidade verde, que sobressaiam e os cabelos eram entre o preto e o loiro, era bonita e alguns militares ficavam admirados com a sua beleza e comentavam no aquartelamento.

O Tony caminhou mais um pouco e sentou-se num desses bancos, e lá vem de novo ao seu pensamento aquela que quase todos vocês já conhecem. Sim, a menina Teresa, que deu muitas canseiras ao então Cifra, e que quando este chegou a Portugal lhe dava algum trabalho e “muitos favores”, pois era uma desavergonhada, como quase todos vocês se lembram. Mas voltando ao seu pensamento em Mansoa, o então Cifra foi ter com esse marceneiro para resolver o problema da menina Teresa, que era a execução de um “Falo”, ou seja um “Phallus”, ou mais propriamente um “Pénis” em madeira de ébano preta, que ela lhe pediu, e dizia que era para lhe dar melhor sorte na vida, pois era uma “solteirona”, que já tinha passado dos “cinquentas”. O marceneiro acabou por resolver o problema para alívio do Cifra e contentamento da menina Teresa.

Quando foi à oficina do artista não queria crer no que viu. A tal rapariga bonita, olhos azuis, com tonalidade verde, cabelos pretos e loiros, era um “esqueleto”, cara e corpo, seco e mirrado, sentada num banco, amparando-se com um pau, já sem parte dos pés, as pernas embrulhadas em farrapos e com feridas, alguns dedos das mãos estavam tesos e falava aos soluços, pois dava a entender que não podia mover a língua. Contudo os olhos ainda com algum brilho, estavam lá. O Cifra questionou o marceneiro sobre o estado deplorável da sua filha, e este contou-lhe que ela tinha muitas doenças, entre as quais a “lepra”. Que estava à espera de morrer. Que no aquartelamento já sabiam do seu estado de saúde, estando a ser medicada, embora se sabendo que não havia cura possível.

O Cifra ainda foi questionar o Pastilhas, que depois de saber de onde ele tinha vindo e do que tinha encomendado ao marceneiro, mostrou um sorriso malicioso e provocativo.

Depois do Cifra lhe perguntar se ele já sabia daquele caso, ele, então sim, olhou o Cifra, não com os tais olhos azuis, com tonalidade verde, da rapariga bonita, com cabelos pretos e loiros, que agora estava quase a morrer, com muitas doenças mais a doença da “lepra”, mas sim, com os seus olhos bondosos, que escondiam algumas lágrimas, e encolheu os ombros.
Devia de saber deste e de muitos casos, mas nada podia fazer, pois a falta de recursos naquele tempo era evidente, morria-se única e simplesmente, e como era seu hábito e sempre que via o Cifra, puxou-o para fora da enfermaria, talvez julgando que o Cifra tinha fumado algum cigarro feito à mão e que lhe ia roubar o frasco do álcool.

O agora Tony, com estes pensamentos, levantou-se, caminhou mais um pouco, olhou o horizonte, viu as horas, e pensou como o relógio, às vezes é tão lento.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11801: Bom ou mau tempo na bolanha (17): O 4 de Julho nos Estados Unidos (Toni Borié)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Pois é, "Cifra", pois é...

Os olhos.
Dos olhos costuma-se dizer que são "o espelho da alma" mas neste caso amargo que relatas nem "o espelho do corpo" puderam ser.

Presumo que foi pena, mas a vida é o que é (o que se consegue fazer) e não o que se idealiza.

Em todo o caso foi suficientemente marcante a ponto do "Tony" o ir rebuscar ao 'arquivo da memória' e ao relembrá-lo concluir de forma algo nostálgica mas ao mesmo tempo dolorida, que "...o relógio, às vezes é tão lento...".

Abraço
Hélder S.