sexta-feira, 5 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11804: Notas de leitura (497): Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2013:

Queridos amigos,
O nosso confrade Leopoldo Amado fez bem em coligir sob a forma de livro cerca de cinco dezenas de textos que vão desde a historiografia a intervenções públicas enquanto cidadão guineense.
O livro inclui alguns dos seus textos obrigatórios como “A literatura colonial guineense”, “Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau” ou “Guiné-Bissau: 30 anos de independência”.
Deve-se também a Leopoldo Amado a análise da literatura da guerra colonial, no caso da Guiné foi pioneiro.
É um acervo enorme, razão pela qual desdobro a recensão acerca de um livro cuja leitura é de grande importância para entender a luta de libertação e as disfunções do Estado, ao longo destas décadas.

Um abraço do
Mário


Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado

Beja Santos

Como escreve Inocência Mata no prefácio, “São 51 textos de proveniência vária, desde ensaios e recensão de livros a artigos de opinião, crónicas e apontamentos reflexivos (…) Esses textos focalizam assuntos vários (da história à literatura, da sociologia à antropologia, da ciência política à sociologia da cultura), tratados com uma transversalidade disciplinar e revelando uma abordagem muito atualizada das problemáticas do seu país e do seu continente. A intensidade com que vive, perceciona e reflete sobre a realidade guineense revela, se alguém ainda sobre essa matéria tivesse dúvidas, que não se estar geograficamente no país não significa não contribuir para o desenvolvimento do país através de uma participação ativa e construtiva”.

O historiador Leopoldo Amado, nosso confrade, na coletânea recentemente dada à estampa, edições Vieira da Silva, 2013, recupera alguns dos seus ensaios mais emblemáticos, de leitura obrigatória no contexto dos eventos da luta armada, da literatura colonial e da guerra colonial, do balanço sobre décadas de independência, a saber: a literatura colonial guineense; da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné Bissau; Guiné-Bissau: 30 anos de independência; simbólica de Pindjiguiti na ótica libertária da Guiné-Bissau; diapasão e persistências na novíssima literatura da guerra colonial: o caso da Guiné-Bissau.

O seu trabalho sobre a literatura colonial guineense foi pioneiro, pela primeira vez se procedeu a um arco histórico sobre eventos do último quartel do século XIX até ao início da luta armada que permitiram medir o pulso à vida intelectual em Bolama, às mudanças operadas pela República no conceito de autonomia, ao aparecimento de Fernanda de Castro na produção literária-colonial com destaque para o seu best-seller “Mariazinha em África”; e também a importância de “O Comércio da Guiné”, onde escreveram Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Alberto Gomes Pimentel, entre outros. O aparecimento de Afonso Correia e o seu livro Bacomé Sambú, a história de um nalú assimilado pelos brancos, definido por conceitos ocidentais de miséria e felicidade e inserido num ambiente de cores guineenses sempre com as marcas de água da fauna selvagem, do exotismo, do mistério e do tédio. Segue-se Fausto Duarte e o seu livro Auá, um livro importante de alguém a quem a Guiné muito deve, ele foi o responsável por dois livros de leitura obrigatória, Os Anuários da Guiné de 1946 e 1948. A chegada de Sarmento Rodrigues traz uma viragem que deu pelo nome do “Boletim Cultural da Guiné Portuguesa”. Impuseram-se títulos de grande significado como os “Contos Fulas”, por Pereira Gomes, os “Contos Mandingas”, por Manuel Belchior e os "Contos de Caramó”, por Viriato Augusto Tadeu. “Terra Ardente”, de Norberto Lopes, e “Guinéus”, de Alexandre Barbosa, são outros títulos importantes a registar.

Já virado para a literatura da guerra colonial, Leopoldo Amado chama a atenção para “O Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, “Tarrafo” de Armor Pires Mota, e queda-se por aqui. O estudo sobre o nacionalismo guineense é de primordial importância, faz parte aliás da investigação que Leopoldo Amado desenvolveu para a sua tese de doutoramento que o IPADE publicou em 2011 sob o título “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974”. Recria o ambiente dos anos 1950, em Bissau, regista o nome dos intervenientes dos nacionalistas de vária índole, a criação do PAI, o MLG, a atividade política de Cabral na Guiné e depois na clandestinidade, a absorção de parte do MLG pelo PAI, os primeiros anos de Amílcar Cabral em Conacri, a criação de campos de treino, os primeiros atos de subversão, a prisão dos nacionalistas pela PIDE, o papel desempenhado por François Mendy, a fundação da FLING, as rivalidades entre o PAIGC e o MLG, etc. A única omissão de relevo que se pode encontrar neste laborioso trabalho diz respeito às ações subversivas que foram desencadeadas em 1962, no segundo semestre, se é verdade que o primeiro ataque a um quartel data de 20 de Janeiro de 1963, as sabotagens, destruições, emboscadas e confrontos já tiveram lugar em 1962, há registos espúrios como é o caso do fuzileiro Manuel Pires da Silva no “Homem Ferro”, de que aqui já se fez menção. Este foi o início bem-sucedido do PAIGC no Sul, daqui se espraiou por toda a Guiné, onde foi evoluindo de feição favorável.

“Guiné-Bissau: 30 anos de independência”, é uma das mais longas incursões que o historiador faz à volta dos eventos da República da Guiné-Bissau. Estuda os antecedentes que levaram à independência e detalha-os. Enumera fraquezas, como a incapacidade do PAIGC em não ter sabido gerir o aparelho estatal colonial, dizendo que “ao caráter excessivamente centralizador do Estado colonial juntou-se no período pós-independência a feição não menos centralizadora com que o PAIGC administrava a estrutura político-militar e civil nas áreas libertadas através do centralismo democrático. Consequentemente, a macrocefalia dos principais centros urbanos e sobretudo de Bissau, a capital, foi um elemento desmobilizador de consideráveis franjas das regiões rurais”. Mesmo recusando o rótulo de marxista-leninista, os princípios fundamentais do PAIGC na criação do Estado assentavam na direção coletiva, no centralismo democrático e na democracia revolucionário. A crise de 14 de Novembro de 1980 deixou claro que existia uma tensão racial, insanável, a par do reconhecimento de uma deriva de natureza económica e do agravamento das condições de vida, isto para já não falar das promessas que nunca se concretizaram, como a questão dos combatentes da liberdade da Pátria. No final da década de 1980, anunciou-se uma abertura quando Nino Vieira em discurso proferido na Assembleia Nacional Popular se referiu à necessidade premente de se edificar na Guiné-Bissau um Estado de Direito. Iniciara-se um período que conduziu às primeiras eleições multipartidárias, o PAIGC manteve-se no poder mas cedo se detetaram graves enviesamentos do sistema democrático, o aparecimento do PRS (Partido da Renovação Social, que parecia trazer um largo equilíbrio étnico, veio a revelar-se um partido dominado pela etnia balanta que com a eleição de Kumba Yala fez ocupar toda a esfera do poder por balantas, o que gerou novas tensões sociais. Pelo meio, fica o conflito político-militar, depois o enfraquecimento do Estado e os permanentes ciclos de instabilidade política. No termo deste seu trabalho, datado de 2005, Amado chama a atenção para a crise política profunda, a crise económica sem precedentes e a crise de liderança que tinha transformado a Guiné-Bissau numa nova Somália, apelando à necessidade urgentíssima de se proceder a uma profunda moralização da vida pública e a modernização do aparelho de Estado caso se quisesse conferir credibilidade interna e externa ao Estado. Escusado é dizer que este seu apelo não foi ouvido, pelo menos por enquanto.

Toda a obra está polvilhada pequenos textos e anotações, algumas delas cheias de ternura, caso do que escreveu sobre José Carlos Schwarz, a sua música patriótica, pontilhada pelo amor, a evocação da mulher, das crianças e do sofrimento. Schwarz, como é do conhecimento de todos, morreu apenas com 27 anos, na sequência de um acidente de viação. E Amado escreve: “Com o seu desaparecimento físico, transformou-se rápida e indistintamente num misto de herói e de mártir, não apenas porque a ele se deveu a modelação da música moderna guineense, em que revelou os rasgos do seu génio criador; não apenas porque lhe coube a proeza de ter desafiado como poucos as autoridades coloniais, mas porque a longevidade das suas “verdades” no imaginário coletivo guineense chocavam e ainda chocam com a mundividência hipócrita dos que, agindo em sentido contrário, apresentam as suas “virtudes” como únicas, absolutas e inquestionáveis”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11785: Notas de leitura (496): O Império Africano 1890-1930, coordenação do Prof. Oliveira Marques (Mário Beja Santos)

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