quarta-feira, 3 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

Vista aérea de Bajocunda
Foto: © Amílcar Ventura, com a devida vénia

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Junho de 2013:

Olá Carlos!
Já há algum tempinho que não dava notícias sobre a minha "guerra".
Hoje, subitamente, aflorou-me uma estória que passo a descrever.

Para ti, e para o tabancal, vai aquele abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

63 - INVASÃO EM BAJOCUNDA

Ainda hoje eu durmo profundamente, e passo entre 8 a 10 horas a dormir. É conforme. Também aguento menos, quando é preciso, mas por norma tenho um grande apego à cama. Naqueles tempos da juventude galdéria, se o corpinho era generoso a despender energias, também não abdicava das condições de recuperação, entre elas a de dormir profundamente, fosse debaixo do firmamento diamantino das noites guineenses, fossa no colchão de espuma da Manutenção Militar. Durmo, mas é raro roncar. Sou como um menino.

Tinha mudado para o quarto das traseiras, onde os ruídos da manhã levavam mais tempo a chegar, e eu permanecia sem dificuldades no limbo de sonhos quentes.

Uma ocasião, imprevistamente a meio da noite, senti uns abanões e abri os olhos sem força para reagir. Mas o que vi? Nosso Senhor! À minha frente, empunhando a espingarda-automática G-3, com o cinturão a pender da cintura, mas sem tapar o órgão genital, apresentava-se um contra-guerrilheiro, que identifiquei logo pela voz que, apesar de contida e assustada, permitia-me reconhecer um bravo combatente oriundo do Minho remoto, de Perre, mais propriamente, que adiantava: "eles estão cá dentro!".

Nem pensei no terrível significado daquela informação de alerta a exigir uma valente reacção, ou teria respondido para os mandar sair imediatamente, e que se pusessem na alheta para prosseguir a justa soneca. A minha displicência valeu-me um novo empurrão, e aí o Morais falou-me sério: "eles já estão cá dentro, mexe-te!". E dirigia-se à minha pessoa, não restavam dúvidas.

Soergui a cabeça e vi um autêntico homem-de-guerra, com uns chinelitos chineses enfiados nos dedos dos pés, fardado à pai Adão, feições rígidas, e equipado para matar. Pulei da cama, procurei a "canhota" e o cinto dos carregadores de municiação. Ainda procurei a boina, mas não era necessária. Nos quartos havia um bulício surdo. Estaríamos ali meia-dúzia de valentes furriéis à rasca com a situação. "Se eles já entraram, sabem que nós estamos aqui", disse um. "Foda-se!" respondeu outro. Com jeitinho cauteloso, alguém tentou abrir a porta para tentarmos constatar a situação no exterior, mas aquela merda velha e colonial, rangia com a deslocação e dava conta da nossa presença na casa.

Para que uma cabeça pudesse alcançar o exterior e perscrutar no escuro, foi preciso insistir no ranger da porta descaída, e logo soou um aviso sensato e acagaçado: "Não façam barulho com a porta, carago!". O Tito, que já usava uns óculos de lentes grossas, e estava dispensado das saídas noturnas porque se atirava paro o chão espampanantemente de cada vez que tropeçava numa ervinha, era, obviamente, o mais habilitado para proceder à observação.

Talvez por incapacidade para conter o nervosismo, ou para assustar o IN naturalmente surpreendido com a insólita decisão, começa a correr na direcção do pau-de-bandeira, na parada à nossa frente. Estupidamente solidário, atirei-me em correria atrás dele para lhe contar os balázios no caso do IN responder com artilharia. A meio caminho, já ultrapassados uns 20 metros de território beligerante, parámos surpreendidos pela total ausência de tiros.

"Foda-se! onde é que os gajos estão?" - interrogava-se um intrépido furriel miliciano, desejoso de aplicar uma valente lição nos irritantes perturbadores do sono alheio. Reorganizada a tropa como força de combate, dirigimo-nos para junto do Posto de Rádio de onde vinham vozes.

Estava lá o capitão Trapinhos, já antes alertado para a guerra e à procura de um lugar seguro, como seria o abrigo das transmissões, e mais alguma tropa de "especialistas". Ficámos então a saber, que o sargento David, movido pela insónia, ou pelos efeitos de alguns vapores etílicos, estava junto da porta da secretaria a contar carneiros que não acabavam, e viu umas silhuetas ao longe, a deslocarem-se com cargas destruidoras às costas em direcção aos obuses.

Ainda havia tempo para lançar o alarme, pois ainda nada tinha ido pelos ares. E foi o que fez. Dirigiu-se às Transmissões onde foi muito bem acolhido, e de onde, diligentemente, saíram os alertas para o capitão e oficiais. Ainda hoje não faço ideia como é que os furriéis foram alertados para a ameaça destruidora, mas lá que há bruxas, há!

Mais uma vez dei prova de uma estupidez descontrolada, e perguntei a s.exa. o capitão Trapinhos, se já tinha providenciado uma batida na aldeia, no sentido de evitar o pior. Não, não tinha. E logo me incumbiu de ali recrutar uma força para o efeito.

Lá fui com uma dúzia de bravos cozinheiros, mecânicos de viaturas e armamento, o escrita, o corneteiro, o básico, e mais alguns que não posso identificar. Dei uma instrução simples e fundamental, sobre a acção surpresa que íamos desencadear, sobretudo que não dessem tiros, ou teria que foder os cornos a algum gajo, para mais dos nossos.

Logo à segunda morança, talvez, entrei numa tabanca, pus a mão num cesto com milho, remexi, mas não achei nada além dos grãos. Na esteira, os olhinhos surpreendidos dos moradores, miravam-me estupefactos. Ainda havia um pequeno ajuntamento de panos, que segurei, mas nada de grave aconteceu. Entretanto, entrara atrás de mim, sem que disso me tivesse dado conta, um sacana que batisava as bajudas todas, e ao pousar os olhos sobre um gajo que ali estava encostado à parede de adobe, referiu que aquele não era dali. Confiado pelo absoluto conhecimento e identificação dos moradores, por parte daquele militar, aquela informação indiciava que ali havia coisa.

Disse ao desconhecido para sair comigo, o que o senhor fez sem protestos. Depois, já no exterior, chamei dois homens da força, e encarreguei-os de conduzirem o prisioneiro. "Para onde?" queriam saber. Caraças, em Bajocunda nem havia prisão! Mas, espertinho como sou, logo me lembrei de um local adequado, e mandei-o para o abrigo dos "auto-rodas", com a recomendação de que informassem o Pedro, que o cavalheiro ia ali passar a noite.

Depois, lembrei-me de como tudo tinha começado, e, conforme a informação, teria partido de uma constatação do sargento David, homem experiente de muitas guerras. "Pronto, malta! Vão mas é dormir, que já chega desta merda!"

E o pessoal destroçou. Eu regressei à cama onde me preparava para recomeçar a divagação de sonhos, quando começo a ouvir rajadas, que rasgavam chagas nas trevas da noite. Mas era do outro lado de Bajocunda, lá para o portão de acesso a Pirada. E os tiros continuavam numa cadência de uma arma solitária, com ligeiros intervalos, e dava-me conta que iam mudando de posição, e já pareciam vir do lado do portão de Amedalai.

Com frequência regular, percebia-se que a carga passaria em breve pelo arame do lado norte, e cheguei a pensar ir às traseiras da nossa casa, armar uma emboscada ao atirador, ou atiradores, que perturbavam o direito dos cidadãos ao merecido descanso.

Acabei por adormecer. No dia seguinte, fui acordado por um elemento da mecânica, que me transmitiu a pergunta do furriel Pedro sobre o destino a dar ao preso. "Ele que o meta num orificio", foi mais ou menos o que respondi. Depois levantei-me e fui tomar o valente "breakfast". Estavam lá dois ou três "gentlemen" mais madrugadores e muito bem informados, que comentavam os acontecimentos da noite.

Segundo eles, o bezanado quadro do exército português estava estacionado na varanda do edifício do comando, que também era sede da secretaria, e, nas traseiras, acolhia Jesus, o dedicado gerente do bar. Por entre desconformes raios visuais deve ter reparado em algum movimento de pessoal, provavelmente de militares do pelotão de artilharia que, oriundos da tasca em frente ao Silva, se deslocavam para junto dos obuses. Daí à operação mortífera sobre as NT foi só uma questão de extrapolação. Depois de desfeito o equívoco, o dito militar, não satisfeito, ainda decidiu lançar uma campanha de intimidação sobre o IN, pelo que convocou um condutor, e sobre um "unimog" circulante decidiu-se à perigosa tarefa de despejar carregadores atrás de carregadores, enquanto davam a volta à localidade, numa prática de despesismo em material de guerra, que deve ter ficado plasmado numa informação a letras de ouro, sobre a acção de rechassamento de uma qualquer suposta força inimiga.

Quanto à minha intervenção heróica, fiquei a saber que tinha capturado um parente de uma família residente, em passagem para um qualquer destino, mas de quem não se tinha conseguido a mínima informação de relação com o IN. Por fim, ainda decorrente da heroicidade do meu acto, o furriel Pedro tinha passado a noite de olhos arregalados, com a arma apontada para o inimigo capturado, que mecânicos e condutores lhe puseram à frente, em sinal de respeito e reconhecimento pela liderança na Secção. Andava a propalar que havia de dar-me um tiro nos cornos. Felizmente que ainda não os tinha, e acabou por esquecer o incidente.

Com homens desta fibra, defendeu-se, no meu tempo, a teoria do "direito real" no que respeitava à preservação histórica dos direitos lusitanos, sobre o exercício da posse e manutenção e desenvolvimento da integridade dos territórios pátrios.

JD
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

7 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Para os nossos leitores menos versados em geografia, venho esclarecer que a localidade de Perre, ao contrário do que escreve o nosso camarada JD, não fica no Minho remoto(?). Perre fica a cerca de 8Km de Viana do Castelo, que por sua vez fica a cerca de 75Km da Mui Nobre Leal e Sempre Invicta Cidade do Porto.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Luís Graça disse...

"Ainda hoje eu durmo profundamente, e passo entre 8 a 10 horas a dormir".... Eh!, Zé Dinis, cuidado com o excesso de sono... Ouve o que diz o povo:

"Quatro horas dorme o santo,
Cinco o que não é santo,
Seis o estudante,
Sete o caminhante,
Oito o porco,
... E nove o morto"

Mas o mais importante é a qualidade do sono... e a qualidade e a quantidade de coisas que a gente faz nas restantes horas do dia... de pé, de cócoras ou deitados.

É sempre um grato prazer ver-te por cá e ler os teus escritos... Aquele abraç(ã)o. Luis

Luís Graça disse...

Comparado com o triste circo de hoje, institucional, o teu/o nosso, no século passado, na Guiné, longe do Vietanme, era capaz de ser bem mais divertido...

Lá se apanhava um valente susto ou outro, mas no fim ficava a saudável loucura com que regressámos a "penates"...

Em Bajocunda, em Nhabijões, em Fá Mandinga, em Mansambo, em Buba, em Bula, em Mejo, em Sangonhá, em Canquelifá, em Saré Ganhá, e em mil e outros lugares onde aprendemos a viver com a dose certa, q.b., de loucura, necessária para sobreviver nesta nave de loucos... Mais um abraç(ã)o. Luis

Tony Borie disse...

Olá José Dinis.
Mas que história de guerra mais divertida, onde entram G-3's, granadas, militares com roupa e sem roupa, ou com pouca roupa, guerrilheiros, bajudas, tabancas, abrigos, militares de acção e cozinheiros, alguns tiros, e uma palavra nova, pelo menos no meu dicionário de guerra que é: "contra-guerrilheiro", sim contra-guerrilheiro, que no meu entender é dizer militar de acção, que estava lá naquela altura, do exército de Portugal.
Este episódio, contado com uma certa graça, aconteceu, talvez centenas de vezes em muitos aquartelamentos, pensávamos que era guerrilheiro, e não era!.
Foi um bom regresso, parabéns!!
Um abraço e espero ler a próxima.
Tony Borie

JD disse...

Olá Camaradas!
Boa noite!
Que honrado me sinto entre vós. As mais altas patentes devem ter aberto os robes para aliviar a pressão do jantar, e deram-me a subida honra de se manifestarem sobre uma invasão que descrevo.
Até o circunspecto e parcimonioso Carlos Vinhal não se deixou adormecer perante as notícias sobre o agravamento da crise, apesar do escarninho sobre as minhas confusões em lidar com a carta militar, conjugar latitudes com longitudes, e estabelecer azimutes, e veio fazer o que raramente lhe denoto: comentar a tropa de escribas.
O ComChefe, esse, generoso nos louvores, deixa-me de baba na boca, e na expectativa de vir a ser medalhado por uma qualquer razão que impressione a tertúlia. Mas não vieram sós: deixaram-se acolitar pelo americano Tony Borié, situação que confere o carácter internacional com que ainda hoje se seguem as táticas e a estratégia das NT no cenário da Guiné.
Ainda não me demiti de prosseguir a séria investigação a que meti ombros, pés, joelhos, cabeça, com orelhas e tudo, pelo que vos peço alguma paciência, pelo menos até ao próximo episódio.
Abraços fraternos
JD

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

O "nosso" Zé Dinis é 'um livro aberto'.
Podemos discordar dele. Podemos e devemos! Às vezes é 'um chato do caraças', mas é genuíno, autêntico, embora obsecado....

Nesta história/recordação ressalta tudo o que o Tony salientou e através dela pudemos conhecer (e dar a conhecer) mais aspectos da vivência, das peripécias, que aqui e ali, foram preenchendo a 'comissão de serviço' de muito boa gente.

Desta vez não vou implicar com as já conhecidos 'métodos pedagógicos' do Zé Dinis para manter a disciplina nos homens sob sua responsabilidade (o famoso pontapé no cu), nem sequer 'pegar' na questão do 'soninho', pois isso já o Luís referiu, vou ficar por um outro aspecto que também acho significativo.

Em dada altura o 'nosso' Zé Dinis diz que um tal Tito tomou a insólita decisão de correr pela parada até ao pau-de-bandeira, supostamente 'debaixo de fogo' e que ele, Zé Dinis, "estupidamente solidário" se atirou a correr atrás dele....

Este é um aspecto que quero chamar a atenção: o Zé Dinis é solidário, não é calculista, é antes um impulsivo que quer estar onde pensa que é solicitado. Foi assim ontem e é assim hoje. Mas.... já lá vamos!

É que num outro passo, mais à frente na narrativa, confessa que "mais uma vez dei prova de uma estupidez descontrolada...".
Pois é aqui que está o busílis!
Não, não é na 'estupidez', é no 'descontrolada'!

A sua vontade de intervir, a sua capacidade para querer ajudar é tal que, muitas vezes, 'entra de cabeça', impulsivamente, 'descontroladamente' e assim, aqui e ali, vai arranjando 'inimigos de estimação'. Nada de grave, é certo, porque na vida tudo é transitório e às vezes fico a pensar se tudo isso não será 'treta'.

Já agora, aproveito para apreciar o rigor esclarecedor do nosso Carlos V relativamente à localização de Perre e Viana do Castelo.
Só não percebi foi porque esta última e agradável cidade não foi referida como sendo a "Princesa do Lima", ao contrário de uma outra localidade que precisou de um comboio de cognomes para se tentar perceber a que se referia...

Abraços
Hélder S.

JD disse...

Obrigado Helder,
Fazes-me um perfil psicológico de carácter objectivo (não sobre o subjectivo, que reporta a factos da consciência) muito interessante e elucidativo. Para mais, à borla, o que prova a grande amizade que me despensas. Vou mostrá-lo à minha psicóloga, mas sem me comprometer a revelar a análise dela, certamente carregada de muitos mais pontos negros. Nada de grave, como referes, pois na vida é tudo transitório, e os inimigos de estimação vão-se renovando. Como ainda não os classifiquei em perfis, de momento não tenho nenhum para a troca.
Aquele abraço
JD