domingo, 23 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11749: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (10): "O Nosso Dicionário"

1. Mensagem do António J. Pereira da Costa cor art ref, ex-alf art CART 1692/BART 1914, (Cacine, 1968/69); e ex-cap art e cmdt, CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo) e CART 3567 (Mansabá)  (1972/74):

Data: 19 de Junho de 2013 às 22:19

Assunto: "O Nosso Dicionário"

Olá,  Camarada

Aqui vão 4 páginas de um dicionário de termos militares relativos à Guiné. Foram os de que me lembrei. Se houver mais,  é só acrescentar. Um Ab.

2. A Minha Guerra a Patróleo (10) > 
O Nosso Dicionário Militar

Nota Prévia: Na elaboração deste pequeno dicionário:

(i)  não foram considerados acrónimos e abreviaturas regulamentares incluídas na linguagem militar do tempo;

(ii) Também não se consideraram designações regulamentares de certos materiais, ainda que tenham provindo de alcunhas ex. "jipe", (inicialmente "GP" ou "Jeep"); ex. matador (viatura militar de fabrico britânico da AEC), etc.;

(iii) Não se consideraram expressões de crioulo, pois essa é a língua usada pelos povos da Guiné para comunicarem entre si não constituindo, por isso, linguagem militar;

(iv)  As expressões da gíria militar "oriundas" de outros TO também não foram aceites, bem como as expressões vindas da I Guerra Mundial ou de outras, ex. ameixa de Elvas, (inicialmente pelouro e depois sinónimo de granada) e que ficaram na gíria militar, por que não foram "adoptadas" durante a Guerra Colonial.

Este critério reduziu muito o número de palavras ou expressões características da Guerra da Guiné.


APANHADO (do clima) – Situação do foro psicológico que poderemos comparar a certas situações de stress laboral e que se manifestava por comportamentos absurdos ou inconvenientes. O termo era, muitas vezes usado como chacota, para designar os militares com atitudes hilariantes e bem-dispostas, mas, noutros casos, era indício de um cansaço psicológico que não deixava de se fazer sentir em consequência da permanência na "Província".

ATACADORES DE PARAQUEDISTA (Ou de PM)
– Esparguete. Este tipo de massa era, talvez pela sua melhor capacidade para se conservar e baixo preço, muito frequente na alimentação das unidades militares. Acompanhava carnes, era incluído em sopas, mas há notícias de ter sido consumido de outros modos nomeadamente acompanhado de marmelada.

BANANA
– Rádio portátil de curto alcance normalmente usado para ligação entre grupos de combate e com uma forma bastante sugestiva. Permitia a ligação com a Força Aérea em duas frequências (uma de contacto inicial e outra para utilização subsequente). Inicialmente de origem francesa – o THC 736 de maiores dimensões foi substituído pelo AVP – 1, mais portátil e, sensivelmente, com o mesmo alcance.

BARCOS DE BRAÇO-DADO – Conjunto de duas embarcações que navegavam muitas vezes sem escolta e incluindo uma pequena força de fuzileiros pelos rios da Guiné. O aspecto exterior de ambas era idêntico. Porém, só uma tinha motor. Assim, navegavam solidamente ligadas pelas amuradas. Eram semelhantes a batelões com uma capacidade de carga, a granel, muito considerável. Frequentemente transportavam pessoas em condições bastante incómodas, sobre a carga e com reduzida protecção contra as intempéries.

BATE-ESTRADAS – Aerograma. A fim de simplificar o manuseamento da correspondência para o Ultramar foi criado este tipo de correspondência que já existia noutros países. Este tipo de "envelopes" abertos e consultáveis facilitava a possível acção da censura de guerra. O Movimento Nacional Feminino fazia a distribuição de aerogramas que também podiam ser obtidos noutras fontes, como as juntas de freguesia.

BAZOOKA – Cerveja de 0,6 dl. Exclusivamente para o Ultramar as cervejeiras (Sagres, Nocal, Cuca, etc.) apresentavam a cerveja em garrafas de 0,6 dl às quais foi dado aquele nome por oposição às normalmente comercializadas com 0,33 dl de capacidade e por consequência com maior poder "explosivo" como sucedia com as bazookas, armas anti-carro de calibre 6 cm ou, mais frequentemente, 8,9 cm de fabrico americano.

BIANDA – Comida em geral. Do crioulo arroz, base da alimentação da população.

BICHA DE PIRILAU – Designação comum a todos os TO. Progressão, em coluna por um, mantendo cada homem uma distância regulamentar, adequada à situação táctica, em relação ao que se lhe seguia.

CACO (Baldé) – Alcunha do brigadeiro e, depois, general António de Spínola, aludindo ao monóculo que usava. Diz-se que a lente não tinha graduação e que se destinava a compor a sua figura. Ao cert, sabe-se que o general usava óculos, sempre que precisava de ler. A designação baldé vem da protecção dada às populações e ao esforço que promoveu para a sua captação para o apoio às tropas e à política do governo.

CANHOTA – Espingarda. Inicialmente a espingarda Mauser, de calibre 7,9 mm, cujo desempenho insuficiente obrigou à aquisição de uma espingarda automática – a G – 3 (também de fabrico alemão) – de calibre 7,62 mm.

CAPITÃO-PROVETA – Nos últimos anos de guerra, devido a dificuldades de recrutamento, foram graduados no posto de capitão, oficiais, normalmente licenciados, que, após o curso de oficiais milicianos (COM), embarcavam com o posto de alferes miliciano para um estágio de quatro meses numa unidade operacional e num dos três TO para que pudessem familiarizar-se com o ambiente que iriam encontrar. Ao regressar eram graduados em tenentes, preparavam uma subunidade e voltavam a embarcar, agora como comandantes de companhia. Esta forma de recrutamento de comandantes de companhia entra em vigor quando se esgotou a possibilidade de chamar às fileiras os oficiais milicianos que não tinham sido mobilizados, ou porque a guerra ainda não se iniciara, à data da sua passagem à disponibilidade ou porque, durante o seu serviço militar, não tinham sido mobilizados como subalternos.

CICLISTAS – Feijões-frade. Esta designação estava divulgada na Metrópole e no Ultramar. Resulta da semelhança entre um pelotão de ciclistas a passar pelos espectadores. (todos iguais e movendo-se rapidamente). Julga-se que se deveria ao facto de este tipo de feijões (muito utilizado como acompanhamento de diversos pratos de peixe e conservas) ser cozido e depois a água da cozedura ser escorrida. Sendo todos iguais e movimentando-se depressa nessa altura temos que considerar que a "semelhança" era evidente.

CIFRA – Operador cripto. Até ao nível companhia existiam normalmente dois cabos operadores-cripto que cifravam e decifravam as mensagens, expedidas e recebidas. A alcunha vem claramente da sua actividade.

COSTUREIRINHA – Pistola-metralhadora PPSH de fabrico soviético de calibre 9 mm que equipou os exércitos da URSS e do Pacto de Varsóvia, respectivamente, durante a II Guerra Mundial e durante grande parte da Guerra Fria. Tinha um carregador circular de cerca de 60 munições e distinguia-se pelo som do seu funcionamento que lembrava uma máquina de costura.

EMBRULHAR
– Ser atacado pelo IN.

ENXOTA-PINTOS – Também chamado burro-do-mato ou simplesmente burrinho. Viatura de fabrico alemão Mercedes Unimog 411. Inicialmente era uma viatura agrícola destinada a serviços em pequenas explorações. Trabalhava a gasóleo e tinha um ruído de motor agudo e muito característico. Era uma viatura muito utilizada pela sua potência e manobrabilidade. Transportava habitualmente uma equipa de atiradores.

ESCRIBA – Primeiro-cabo escriturário que trabalhava, normalmente, na secretaria com o primeiro-sargento que "respondia [1]" pela companhia.

ESTILHAÇOS – Carne de frango, normalmente em pequena quantidade e, por isso, muito dividida em pequenos bocados, habitualmente comida misturada com massa ou com arroz.

FERRUGENTO – Qualquer elemento da "ferrugem", secção de manutenção auto, e não só, de uma subunidade.

KIKO, QUICO ou TAPA-CHAMAS – Barrete do uniforme n.º 3 ou do camuflado. Totalmente confeccionado em pano com uma pequena pala, em redondo, para diante, e outra, para trás, que se abria em duas partes, de forma a adaptar-se à nuca. Muitas vezes, para se não perder nos movimentos de progressão no mato, era atado por uma das pontas a uma platina do camuflado. Esta designação generalizou-se e era usada em todos os TO e na Metrópole.

KALACHE – Espingarda automática de fabrico soviético, utilizando o calibre 7,62 (curto) denominada Kalashnikov, nome do seu inventor Mikhail Kalashnikov. No exército de origem é designada por AK – 47 (Avtomat Kalashnikova odraztzia 1947 goda).

LERPAR – Por analogia com o jogo de cartas, significava morrer. Podia também ser usado em relação a qualquer outra coisa que falhasse ou não se concretizasse. (viagem, dinheiro a receber, etc.)

MANGA DE CAPOTE
– Tipo de massa alimentícia que também era assim designada pela própria Manutenção Militar e que aumentava substancialmente de volume, depois de confeccionada.

MÉZINHO ou PASTILHAS – Adoptando uma expressão do crioulo, era a designação dada a qualquer elemento da equipa sanitária da subunidade, normalmente o furriel.

NHARRO – Expressão de significado depreciativo que designava o preto (normalmente interessado em tirar partido da acção da tropa) ou o branco residente e exercendo comércio numa povoação do interior à maneira dos "lançados" no Brasil antigo.

PAGA-DEZ – Grande lagarto de cores vivas, mas inofensivo que se movimenta por pequenos e rápidos lanços. Ao parar subitamente, fazia um movimento com as patas dianteiras semelhante ao das flexões de braços em apoio no solo. "Pagar dez" (flexões de braços) era a punição mais comum durante o treino físico, praxe militar ou em consequência de um qualquer procedimento tido como não regulamentar.

PBX – Designação atribuída a um qualquer elemento da secção de transmissões da subunidade. Corruptela da expressão em inglês Private Branch Exchange (mudança de ramais privados) e que designava, naquele tempo, um centro de distribuição telefónica pertencente a uma entidade que geria, no seu interior, os seus próprios serviços telefónicos.

PERIQUITO ou PIRA – Novato. Todo aquele que tinha acabado de chegar à Guiné para continuação do serviço militar. Esta designação era utilizada noutros sectores da vida e da acção nas unidades ou fora delas.

PICAR (a estrada) – Operação de grande perigo que consistia em progredir por itinerário ou trilho procurando detectar minas (normalmente) ou armadilhas. Uma vez que a quase totalidade das minas usadas pelo inimigo eram de plástico ou de madeira não era possível utilizar o detector de minas. Por isso este trabalho era realizado com recurso a uma vara de verguinha afiada – a pica – que se espetava no solo e pelo som ou pela diferença de textura do terreno encontrada permitia a detecção do engenho.

REBENTA-MINAS – Designação, comum a todos os TO, para a primeira viatura de uma coluna auto, geralmente mais pesada, de cabine recuada e com diversos sacos de areia, visando aumentar-lhe o peso e proteger o pessoal da cabine, no caso de ser accionada uma mina anti-carro.

SALGADEIRA ou SOBRETUDO DE MADEIRA
- Caixão.

SUPOSITÓRIO – Granada de artilharia. Aludindo à forma aerodinâmica deste tipo de munições.

TROPA-MACACA – Unidades do Exército, de quadrícula ou intervenção, formadas na Metrópole ou do recrutamento local, não incluídas na designação de tropa especial (comandos, pára-quedistas ou fuzileiros especiais).

TUGA – Designação pejorativa dada pelo PAIGC aos militares portugueses.

TURRA – Designação pejorativa dada aos combatentes do PAIGC. Abreviatura de terrorista.

VAGUEMONSTRO – Furriel vagomestre da companhia.

VÉLHICE – Expressão designava uma unidade ou grupo de unidades que já tinha terminado a sua comissão ou estava à espera que tal sucedesse, a curto prazo.

VÉLHINHO. – Militar de uma unidade da velhice.

VIÚVA NEGRA
– Mina anti-pessoal PMN de fabrico soviético. De plástico negro e formato circular, apresentava duas tampas que lhe conferiam um aspecto de pequena panela e continha uma quantidade relativamente pequena de explosivos. Era adequada a ser manuseada por guerrilheiros pouco evoluídos como sapadores, já que tinha a particularidade de, uma vez implantada, só ficar activa após algum tempo destinado a cortar com um arame semelhante a uma corda de guitarra uma cavilha de chumbo.
__________

[1] Esta expressão designava as funções gerais administrativas e logísticas do primeiro-sargento de qualquer subunidade. Actualmente estas funções são desempenhadas por um sargento-ajudante.

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone

6 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Tó Zé, pelo teu contributo para o "dicionário" do calão da guerra colonial na Guiné... Seguramente seria uma pena que muitos dos termos que usávamos, no nosso dia a dia, se perdessem... Por exemplo, espero que "nharro" venha a ser grafado nos nossos dicionários da língua portuguesa... O que ainda não acontece: por exemplo, não vem, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa... E é interessante a dupla aceção que lhe dás:

NHARRO – Expressão de significado depreciativo que designava: (i) o preto (normalmente interessado em tirar partido da acção da tropa); ou (ii) o branco residente e exercendo comércio numa povoação do interior à maneira dos "lançados" no Brasil antigo.

Já aqui temos discutido o termo: alguns vêm nele um vocábulo" racista... Mas, como dizes, e bem também se aplicava ao branco "cafrealizado"...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/nharrro

Luís Graça disse...

... Já a palavra "tuga" (corruptela ou contração do vocábulo "português", ou "Portugal", que deu "portuga"...) não era só usada pelo PAIGC para nos insultar... Os meus soldados fulas (da CCAÇ 12) também a usavam, entre eles, quando estavam chateados connossco, graduados metropolitanos....

Temos vários postes com este marcador...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/tugas

Luís Graça disse...

Tó Zé, o "enxota-pintos", para o "burrinho" (Unimog 411), é uma delícia... Não conhecia (ou já não me lembrava), do meu tempo...

O mesmo se passa com os "atacadores de paraquedista" para designar, na caserna, o esparguete!...

Também devia haver um termo de gíria ou calaão para as "cavalas de conserva" (que hoje são produto "gourmet"...).

Obrigado. Luis

Luís Graça disse...

Capitão-proveta pensava eu que era um insulto que o Paulo Santiago usava quando se referia um certo comandante operacional... Afinal, o termo faz sentido do tempo do Tó Zé, ou seja a partir de 1972... No meu tempo (1969/71) ainda não se usava...

Anónimo disse...

Caro camarada A.P.Costa

"Estilhaços"...com que então era com frango.. coiso e tal..

Em gadamael eram peles de salsicha misturadas com uma argamassa a que chamavam arroz..às vezes não eram peles de salsicha,mas sim rodelas de gordura a que pomposamente chamavam chouriço..
A coisa atingiu tais proporções que um dia um furriel ao colocarem-lhe o mesmo de sempre e tendo em frente o vago-mestre ..levantou-se lentamente e atirou as "manápulas" ao "gorgomil" do vago-mestre e enquanto apertava com toda a força que tinha, gritava.."eu mato-te meu cabrão..eu mato-te"..foi complicado retirar-lhe as "manápulas"...

O vago-mestre ainda "arroxeado"..balbuciava.."eu não tenho mais nada para vos dar"..e chorava..
Ora julgo que se fosse "franguinho" nada disto tinha acontecido.

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Pois é Camarada C. Martins.
A malta às vezes "passava-se" e, em relação à comida é difícil um bom controlo. Já disse aqui e noutros locais que a nossa logística era má e que alguns dos nossos decisores partilhavam uma ideia que já estava a ser combatida desde finais do Séc. XIX: " o que é necessário é sujeitar o militar a provações para que fique forte e valente". Sei que alguns "vaguemonstros" tinham falta de imaginação e os próprios cozinheiros não se capacitavam da que as suas tarefas eram importantes. E a verba que era muito reduzida para que a "guerra" fosse mais barata. Enfim, uma grande convergência de (maus) factores...
Um Ab.
António Costa