terça-feira, 11 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11694: Da Suécia com saudade (37): Falando com jovens médicos militares, no círculo polar ártico, sobre a preparação dos nossos médicos no tempo da guerra colonial... (José Belo)


1. Mensagem do José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia [, foto à esquerda], com data de 30 de maio


Caro Amigo e Camarada.

Em primeiro lugar, espero que os Melech Mechaya em Estocolmo e Helsínquia tenham tido por parte do público a resposta merecida. As "críticas-musicais" de Estocolmo foram mais do que positivas.(Se fizeres o favor de enviar o e-mail do teu filho, poderei mandar-lhe algumas recordacöes escandinavas). 

Quanto à parte guineense do assunto, relacionada com a medicina tropical e de guerra....Tropas Especiais finlandesas, norueguesas e suecas, estão a realizar manobras dentro do Círculo Polar, depois de acentuado aumento da presença militar russa nesta imensa área. 

Como por aqui não vive muita gente (o meu vizinho mais próximo está a 279 quilómetros da porta da minha casa!), dois jovens médicos militares suecos bateram-me à porta, curiosos por conversar com os "nativos".

À volta de uma fantástica aguardente velha de medronho, guardada para visitantes inesperados, acabámos por conversar sobre as guerras de África, a medicina tropical e a preparação específica dos jovens médicos que acompanhavam as nossas tropas. 

Confesso ignorar dados concretos sobre o assunto, e ter talvez ideias muito erradas sobre ele. Terão surgido depois de conversa com médico, então colocado em Aldeia-Formosa (1969?), segundo a qual ele não estaria preparado para as doenças tropicais locais e iria, a título pessoal, comprar livros sobre o assunto aquando das férias em Portugal...

Para não dar informacäo errada aos visitantes, prometi informar-me o melhor possível e, com melhores respostas, enviar-lhes um e-mail. Por certo,  de entre camaradas médicos (ou não) do Blogue, alguns terão respostas concretas sobre o assunto. 

Um grande abraço do José Belo.


PS - Nova mensagem, com data de hoje, vinda da Tabanca da Lapónia:

Foram-me apresentadas algumas perguntas por jovens médicos militares suecos sobre qual a preparação específica (medicina tropical, e também relacionadas com teatros de guerra) que teriam os médicos portugueses mobilizados para as guerras coloniais.

Não desejando dar respostas fáceis, mas menos concretas (ou correctas), procurei ajuda junto dos amigos disponíveis, e para tal habilitados. Daí vos ter enviado um SOS. Entretanto foram por mim já recebidas respostas detalhadas sobre o assunto, pelo que não se torna necessário incomodar mais camaradas. Sempre ao vosso dispor. José Belo.

2. Comentário de L.G.:

Saudações da Tabanca Grande para a Tabanca da Lapónia!... Camarada lusolapão: Sobre os Melech Mechaya, grupo musical cá da nossa terra (e de que faz parte o nosso tabanqueiro João Graça), e das suas andanças por terras escandinavas, ainda não escrevi mais nada (nem tinha que escrever ) neste espaço... Tenho, no entanto, que te agradecer, publicamente, a tua generosa hospitalidade, de que foi objeto o meu filho e os demais membros da banda...

E,a  propósito, quero deixar aqui registado o mail que me mandaste em 25 de maio último:

 "Caro Amigo. Foi com muito orgulho nos nossos jovens que terminei, alta madrugada, o encontro com o teu filho e companheiros do grupo musical. Muito (e de muito) se falou. Creio ter conseguido dar-lhes uma ideia das realidades que aqui nos rodeiam,e também das perspectivas históricas que levaram ás mesmas. Vivendo totalmente afastado, já há quase quatro décadas, de Portugal, este contacto com as novas geracöes lusitanas foi uma experiência riquíssima. Um encontro, para mim, a registar. Um grande abraço. José Belo".

Quanto ao dossiê "Medicina Militar no Tempo da Guerra Colonial", confesso que não dei, por falta de tempo, a devida atenção ao teu pedido (que era urgente). Temos uma série Os nossos médicos, com mais de 80 referências ou marcadores... Temos, inscritos na Tabanca Grande, vários médicos que conheceram o TO da Guiné como jovens clínicos... Espero que eles possam (e queiram) escrever sobre este tema que me parece não ter ainda sido devidamente abordado e tratado no nosso blogue: afinal, que preparação (clínica) levavam para o teatro de operações ? Que sabiam eles de clínica geral, medicina interna, doenças infetocontagiosas, saúde pública, higiene e medicina tropical, emergência médica pré-hospitalar, politraumatalogia, saúde mental, estomatologia, oftalmologia, otorrino, dermatologia... só para falar de alguns especialidades relevantes num teatro de operações como o da Guiné ?

Receio bem que os jovens alferes milicianos médicos (em princípio, havia um por batalhão, ou seja, 1 para 600 militares, não contando com os cirurgiões e outros eventuais especialistas do HM 241, de Bissau) tenham ido muito mal preparados para a "guerra do ultramar". Muitos deles eram chamados às fileiras do exército, mal saíam das faculdades de medicina (Lisboa, Porto e Coimbra). Nessa época, ou pelo menos até 1971, não havia "carreiras médicas" (, uma figura criada com a reforma da saúde de 1971), nem verdadeiros internatos médicos.

Uma estimativa grosseira minha  aponta para cerca de 1600 o número de médicos mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique, na base do rácio 1 médico / 600 militares (=1 batalhão = 4 companhias)... Estamos a pensar num total de 800 mil militares (metropolitanos) mobilizados para a "guerra do ultramar" entre 1961 e 1975...  Temos ainda que contar com a dotação dos hospitais militares (por ex., HM 241, Bissau, cujo quadro de pessoal médico desconheço). Além disso, não podemos esquecer as missões civis: no meu tempo, o médico do batalhão de Bambadinca tinha ainda à sua responsabilidade uma população de 15 mil habitantes (, estimativa para o setor L1, sem contar com mais 5 a 6 mil almas no "mato", algumas das quais também vinham, nas calmas,  ao nosso posto sanitário)...

Recorde-se, por outro lado, que a demografia médica estava então a passar por uma grande transformação, tanto quantitativa como qualitativa. Em 1960, o número de médicos era já de 7075. Dez anos depois, tinha crescido 15%: era de 8156 em 1970. Na década seguinte, no simples espaço de dez anos (1970-1980), irá ter um crescimento exponencial, chegando quase aos vinte mil (19327, em 1980), em grande parte como resultado da democratização e massificação do ensino universitário a partir do início da década de 1970, com a reforma Veiga Simão e com o 25 de abril.  Hoje (2011) são 42796...

Em 1960 havia um médico para 1256 habitantes... Em 1970, o rácio era de 1/1064, em 1980 de 1/505... Hoje (2011) é de 1/247...

Quanto a especialidades médicas, só temos estatísticas a partir de... 1990! (Fonte: INE, e Pordata)

Enfim, conto que os nossos camaradas médicos aqui atabancados digam da sua justiça e experiência. Estou a pensar em nomes como Amaral Bernardo, José Pardete Ferreira, Mário Bravo, Manuel Valente Fernandes... que foram alferes milicianos médicos no TO da Guiné. Mas também noutros que se formaram depois, como o Ernestino Caniço, o Caria Martins, o Vitor Junqueira... E estou igualmente a pensar nos nossos outros camaradas que pertenciam aos serviços de saúde militar: furriéis enfermeiros, primeiros cabos auxiliares de enfermagem...

Sobre este assunto, queria ainda recordar que Portugal tem um nome ilustre que deu importantes contributos para o desenvolvimento da saúde pública, incluindo a saúde ambiental e militar: o beirão e estrangeirado Sanches Ribeiro, um dos grandes vultos intelectuais da nossa história!


[Imagem à esquerda: Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699 - Paris, 1783)]

Português, nascido no seio de uma família de comerciantes cristãos-novos, é o nosso maior médico do séc. XVIII. Grande espírito do século das luzes, foi conselheiro de Marquês Pombal para a a reforma do ensino médico em Coimbra (1772). Médico do exército russo (1735) e do corpo de cadetes de S. Petersburgo, segundo médico da Corte (1740) e Conselheiro de Estado (1744) da Rússia, foi pioneiro saúde ambiental,  da saúde pública e da saúde militar com o seu famoso  Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (1756). É autor de muitas outras obras. E o único português com uma entrada na célebre enciclopédia de D’Alembert e Diderot.  Era especialista em doenças venéreas (eufemisticamente chamadas, na época, "males de amores"). Deixou a Rússia em 1847, fixando-se em Paris. Os príncipes russos vinham, de propósito, consultá-lo por causa dos "males de amores"...
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9883: Da Suécia com saudade (36): Quando os mortos choram os vivos (José Belo)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Vamos lá ver uma coisa: os médicos (tal os capelães) passavam por Mafra, como soldados cadetes...

E depois ? Onde é que faziam a "instrução de especialidade" ? Num hospital militar ? Em Lisboa, em Coimbra, no Porto ?

Anónimo disse...

Ora então medicina tropical coiso e tal...

Melhor que ninguém serão os nossos camaradas já médicos quando incorporados que poderão esclarecer este assunto.
Faziam a recruta em mafra como cadetes e a seguir eram colocados tanto em hospitais militares como nas unidades já graduados em "aspirantes".
Quanto à formação muitos já eram especialistas e estes eram chamados a cumprir o serviço militar com trintas e muitos anos.
Os outros eram no mínimo incorporados com 27 ou mais anos e eram estes que serviam nas unidades no mato.
Sobre a medicina tropical convém lembrar que a medicina portuguesa tinha talvez,nessa altura,conhecimentos científicos do mais alto nível mundial, sendo o Instituto de Higiene e Medicina Tropical uma referência mundial.
Nas escolas médicas eram estudadas as doenças tropicais.
A nível individual não posso responder mas julgo que qualquer médico, quando incorporado, procuraria certamente saber e estar
actualizado.

Obrigado ao L.Graça por referir o meu conterrâneo Ribeiro Sanches,um dos "históricos" da medicina portuguesa.

P.S.
Devido à concordata os Sr.Padres "capelães" eram após a recruta imediatamente graduados em alferes..pois tinham muitos encargos familiares..eeehhhhh..

Lembro ainda que muitos médicos eram da carreira militar.

Julgo que em 73, foi mobilizado para a Guiné um médico com 50 e poucos anos e uma das "barracas" entre muitas nesta situação parece que foi a dificuldade em atribuir-lhe a graduação..julgo que acabou por ser tenente-coronel.

C.Martins

Anónimo disse...

Caro Luís Graça. Os jovens médicos militares suecos já receberam respostas detalhadas ás suas "curiosidades.Não sei se terão ficado surpreendidos com as mesmas....eu fiquei!Aparentemente,era maior a preocupacäo em preencher as necessidades dos quadro-médicos dos Batalhões do que a preparacäo adequada dos mesmos para o que iriam encontrar,tanto em doenças tropicais,como em situacöes traumáticas täo normais em teatros de guerra.Dispondo de um Hospital de Medicina Tropical com renome internacional;dispondo da vasta documentacäo médica-militar acumulada pelo Corpo Expedicionário Africano durante a Primeira Guerra Mundial;disponde de alguns especialistas mais do que capazes....o nosso tradicional "desenrascanço" a tudo se sobrepôs.Os jovens que pagaram com a vida,ou graves consequëncias crónicas até hoje,mais não foram que a tal "Poeira dos Impérios". Quanto ao meu S.O.S,e a ser-me permitido citar clássicos da nossa juventude..."It's to late babe,now it's to late" (Carole King/letra e música).De qualquer modo, grato pela atencäo.Um abraço.

Anónimo disse...

Caro camarada J.Belo

Sem querer ser mais papista do que o Papa,convém esclarecer que a medicina em geral naquela época não pode ser comparável com a actual,tanto a nível de conhecimentos científicos como na disponibilidade de meios.
Pode parecer que estou a ter uma atitude corporativa mas não é verdade.

Apesar de não ser médico na altura julgo que posso afirmar que atendendo às circunstâncias e limitações da época os médicos incorporados cumpriram de uma forma geral as suas obrigações.

O actual H.Egas Moniz era na época designado por H. do Ultramar e tinha e tem o serviço de infecto-contagiosas de grande nível.

Pessoalmente fui hóspede do H.Militar em Bissau e não tive nenhuma razão de queixa.

Quero esclarecer que em relação às ditas doenças tropicais não se evoluiu tanto como noutras áreas,pelo simples facto de que é nas regiões tropicais onde a pobreza é maior e os grandes institutos de investigação não estão interessados em gastar dinheiro sem retorno.
Pobre não pode pagar ..né.

Julgo ser um pouco injusta a critica de que os médicos não iam preparados para o que iam encontrar.

Sem querer ser corporativista e apesar de reconhecer que a afirmação até terá alguma verdade,julgo poder afirmar que de entre todos nós provavelmente seriam os médicos os que melhor preparados iam para o exercício das respectivas funções.
Se os médicos não iam..ui..então que dizer da preparação dos restantes..infantes..atiradores..artilheiros..armas pesadas..transmissões..amanuenses..e outras morteiradas..

Um alfa bravo do tamanho.. daqui até à lapónia.

C.Martins

Anónimo disse...

Diz-me o J. Pardete Ferreira em mail interno, com data de ontem:

Caro Luís Graça,

Tenho duas correcções a fazer e alguns informações suplementares:

1 - Em princípio seguiam 3 médicos por Batalhão.

2 - As Carreiras Médicas iniciaram-se em 1956, com a referida reforma e, antes dela já havia carreira nos Hospitais Civis.

3 - A estimativa peca por defeito pois com 3 médicos por Batalhão os 1600 passam para 4800.

4 - O HM241 tinha em média 35 médicos.

5- A "instrução de especialidade" faiza-se no Hospital Militar Principal: eram cerca de 6 meses...