terça-feira, 4 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11670: Blogpoesia (343): Recuso dizer uma oração / ao Deus que te abandonou... (José Manuel Lopes, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

 1.  Poema, sem título, do nosso camarada José Manuel Lopes (ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), mais conhecido na região de Tombali pelo seu pseudónimo literário Josema...

Retirado das lides literárias (de resto, eu acho que ele nunca se levou a sério como poeta, embora escrevesse todos os dias alguma da melhor poesia da guerra colonial!), é hoje vitivinicultor na região demarcada do Douro, produzindo belos nectares com a ajuda da sua mulher  Maria Luísa Valente (, uma mulher de armas!) e com o talento do filho de ambos, Vasco Lopes, enólogo (mas também DJ)...

Apesar de já ter sido publicado, no poste P2739, de 20/4/2008, juntamente com mais outros cinco poemas do seu "poemário" (ou do que restou do seu "poemário", em grande parte destruído, num noite de descrença e de fúria),  achamos que é tempo de dar-lhe o devido destaque, agora na nossa série Blogpoesia... 

É um texto, duro, de 1972, escrito em Bolama, no início da comissão... Admito que alguns leitores poderão inclusive achá-lo iconoclasta, se não mesmo blasfemo... Mas quem é que, perante a morte de um camarada no TO da Guiné, não passou por estes momentos de desespero, angústia, raiva ? E, sendo cristão, não chegou mesmo a invectivar Deus e a sua "momentânea distração" ?

É mais um poema do nosso camarada José Manuel Lopes, que vai estar connosco em Monte Real em 8/6/2013, mas que está a passar por um mau momento na sua árdua vida de empresário, tal como a grande maioria dos portugueses, quer trabalhem por conta de outrem , quer trabalhem por conta própria.. Enfim,  é mais  um belo poema do nosso Josema, que merece ser lido em voz alta, pausadamente, nestes dias tristes, de perplexidade e de angústia,   "quando [, citando um poema de Sophia de Melo, do Livro Sexto, 1962, que me acaompanhou no TO da Guiném, em 1969/71 ] a pátria que temos não a temos,  / perdida por silêncio e por renúncia, / até a voz do mar se torna exílio / e a luz que nos rodeia é como grades". Até Monte Real, camarada, amigo e poeta ! L.G.

PS - Muito oportunamente, o António Carvalho, que foi fur mil enf da mesma companhia, e grande amigo do poeta, fez este comentário ao  poste: "Este pungente poema é um brado de dor e revolta em que todas as amarras de ordem religiosa e cultural se quebram num absoluto desafio aos deuses. Não é um insulto ao Criador mas a busca desesperada de uma explicação.O contexto ou o cenário em que este poema foi escrito? Não pode ser outro acontecimento, trata-se da morte do soldado Mata, no acidente com um dilagrama, no dia 10 de Julho de 1972, quando morreu também o alferes Figueiredo do BART 6520. É também para mim um belíssimo poema."


2. Recuso dizer uma oração
ao Deus que te abandonou,
não sei se é do nó
que me aperta a garganta
ou da revolta que brota do meu peito,
só sei que não consigo
desculpa...
sinto ganas de arrancar
o fio preso ao teu pescoço
e atirar dentro da mata essa cruz
no local...
onde encontraste a tua,
onde perdeste a vida
e eu a minha fé, entorpecida;
recuso deixar de pensar
no que aqui nos trouxe,
para onde nos levam,
quero encontrar respostas
a todas as perguntas
que se soltam em turbilhão
dentro de mim,
quero encontrar
algo que justifique,
achar uma razão,
por pequena que seja,
irmão,
para acalmar esta dor
e não encontro
e não encontro... não!

Bolama, 1972
josema

[Fixação de texto: L.G.]
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11648: Blogpoesia (342): Antologia: Poemas de Maio, de Ovar a Mafra, entre o céu e o inferno, com as bolanhas de Tombali ao fundo (J. L. Mendes Gomes)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caros Combatentes:
Este pungente poema é um brado de dor e revolta em que todas as amarras de ordem religiosa e cultural se quebram num absoluto desafio aos deuses. Não é um insulto ao Criador mas a busca desesperada de uma explicação.
O contexto ou o cenário em que este poema foi escrito? Não pode ser outro acontecimento, trata-se da morte do soldado Mata, no acidente com um dilagrama, no dia 10 de Julho de 1972, quando morreu também o alferes Figueiredo do batalhão 6520.
É também para mim um belíssimo poema.
Um abração

Carvalho de Mampatá

Zé Teixeira disse...

O reflexo perfeito de um estado de alma em sofrimento. Creio que a maior parte de nós se revê neste poema. Eu estou lá.
Zé Manel
Quem tem o prazer de te conhecer sabe que tu és isto mesmo,um homem cheio de fé na vida, que ama a vida, que se dá pelas causas justas e vive em revolta constante pelas injustiças que abafam a dignidade do homem.
Parabéns pelo belo poema.
Zé teixeira