sábado, 25 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11626: In Memoriam (151): À memória do meu companheiro ex-combatente José Carvalho de Sousa do 4.º Pelotão/2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com data de 21 de Maio de 2013:

Amigo e camarada Carlos Vinhal:
Envio-te em anexo um texto, destinado ao nosso blogue, em homenagem a um companheiro de luta de Jumbembém José Carvalho de Sousa (4.º pelotão).

Gostaria que este mesmo texto tratasse de outro assunto mais alegre como forma de fazer a minha "prova de vida" no blogue, visto que, como sabes, e desde que comecei a escrever o livro "PRECE DE UM COMBATENTE", não tenho enviado "material", embora acompanhe de forma mais ou menos assídua a "literatura" dos nossos camaradas. Porém a vida,ou a morte neste caso, principalmente a partir da nossa idade, prega-nos estas partidas.

Enviando-te este texto, de que darei conta este ano no convívio, dia 1 de Junho em Fátima, aos meus companheiros de campanha, foi a forma que encontrei para exteriorizar o que me vai na alma pela perda deste nosso saudoso companheiro.

Um abraço
Manuel Sousa


À MEMÓRIA DE UM COMPANHEIRO EX-COMBATENTE

No dia 26 de Maio de 2012, teve lugar o último encontro de ex-combatentes, relacionado com a minha 2.ª Companhia do Batalhão 4512, cuja comissão decorreu nos anos de 1973 e 1974 em Jumbembém, Farim, na Guiné.

O evento teve lugar na freguesia de Ruivães, Vila Nova de Famalicão.
O ponto marcado para a concentração da maior parte do pessoal, para seguir depois todo junto até Ruivães, foi no parque de estacionamento do Jumbo da Maia.

À medida que uns e outros iam chegando, sucediam-se os efusivos cumprimentos entre todos os companheiros de luta, uns pela saudade acumulada durante o último ano, outros, pelo menos um, por ter sido a primeira vez que se juntavam a nós.

Nestas alturas é incontornável falar-se de episódios de guerra, e não só, que nos marcaram durante a nossa comissão em campanha durante dois anos da nossa juventude.

Nestas recordações entre todos, fui ficando atento à descrição do Pinto, o padeiro, e o Libânio, o fiel do depósito de géneros, da forma subtil e ardilosa com que apanhavam uns cabritos da população que deambulavam pelas instalações do quartel, para umas “tainadas”, cujo método também era adoptado, segundo me apercebi também no local, pelo nosso “mata e rouba”, o Miranda do 4.º pelotão.

Como parte de vós já sabe, editei o livro “PRECE DE UM COMBATENTE”, que retrata precisamente essa nossa vivência em campanha, que inclui um texto relacionado com outro método de apanhar os cabritos por parte do meu pelotão e pelos condutores, a que dei o título de “O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS CABRITOS”.

Naquela data já o livro estava na fase de edição em Lisboa, o que me levou a telefonar para a editora nos dias imediatos, logo que pude, para ser incluído no livro mais um texto de última hora, com o consequente aditamento que tive de fazer no registo da obra no IGAC (Inspecção Geral das Actividades Culturais.

Precisamente o texto do irresistível relato que decidi fazer destes deliciosos detalhes, do Pinto e do Libânio, com que os bichos, num ápice, desapareciam.
Daí que no mesmo livro eu descreva dois episódios que envolvem os cabritinhos, como, aliás, parte de vós, quem já o leu, se deve ter apercebido disso.

Portanto, para quem não conhece o livro, aí vai este episódio, o último texto que ali escrevi:

“CABRITO À PADEIRO" 
UMA ESPECIALIDADE GASTRONÓMICA EM JUMBEMBÉM

Uma das principais actividades na economia de subsistência da Guiné, entre a produção de arroz, mancarra, milho, extracção de alguma madeira, pesca artesanal etc., era a pastorícia de animais das espécies bovina e caprina.
Era o principal suporte alimentar da população, e refiro-me particularmente à de Jumbembém, já que lhe proporcionava o abastecimento diário de leite e de alguma carne.

Além disso, como já referi no “MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS CABRITOS”, a posse do maior número possível de cabeças de gado conferia aos seus detentores um destacado estatuto de poder económico.
Constituía, pois, o pecúlio dos “homens grandes” da tabanca, não só na área da alimentação, como servia também de moeda de troca nas suas transacções comerciais.
Eram também esses animais utilizados, em número negociado, como dote a entregar aos pais das bajudas que os referidos “homens grandes” adquiriam até disporem das sete mulheres que a sua cultura lhes permite.
Todo este gado era ciosamente preservado pelos seus proprietários que, por muito que se lhes pedisse, dificilmente alienavam um animal aos militares ali estacionados, um cabrito, por exemplo, para fazer parte da ementa numa festança de aniversário, de qualquer outra comemoração ou mesmo para suprir a fome nos dias em que o rancho não era substancial.

Como já tenho referido, muito a custo vendiam um bovino ou outro ao vagomestre responsável pela logística alimentar da companhia para o rancho geral.
Só cediam porque tinham necessidade que este lhes fornecesse alguns produtos alimentares, nomeadamente, entre outros, arroz, farinha, feijão, óleo.
Assim, diariamente, manadas e rebanhos destes animais eram vistos em liberdade na periferia do quartel e da tabanca da população anexa, a alimentarem-se no abundante pasto que lhes proporcionava a época das chuvas.
No tempo da seca, com mais escassez de pasto, entravam no interior do quartel, principalmente as cabras e os cabritos, à procura de restos da nossa alimentação.

A actividade dos padeiros da companhia, o Nicha, o Brito e o Pinto, desenvolvia-se, normalmente, durante a noite a cozerem o pão para o dia seguinte. Porém, algumas vezes, em circunstâncias excepcionais, durante o dia coziam algumas fornadas lá no forno rudimentar, instalado num rústico barraco coberto de chapas de zinco, aliás, era a cobertura comum a todas as instalações.
Quando os mesmos padeiros decidiam comemorar entre si fosse o que fosse, e porque, como já referi, havia dificuldade em que lhes fosse vendido um cabrito para o efeito, punham em prática um método muito peculiar e eficaz para suprirem esta contrariedade.

Uma estratégia muito mais avançada do que o amadorismo que foi utilizado pelo meu pelotão e pelos condutores a que já me referi no “MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS CABRITOS”.

Os cabritos, juntamente com as cabras, diariamente deambulavam ali pelo quartel.
Para os atraírem ao forno, colocavam pedacinhos de pão, como isco, alinhados ao longo de alguns metros para o exterior, a partir do interior das instalações do forno, cuja porta ficava aberta e atrás da qual ficavam os mesmos padeiros de vigia pelas frinchas a aguardarem pelo momento certo. Os cabritos, uma vez atraídos pelo cheiro, ávidos, em competição uns com os outros, rapidamente abocanhavam a enfiada dos pedaços de pão, o que os levava a precipitarem-se no interior das instalações do forno.

Era-lhes fatal!
Rapidamente a porta se fechava.
Num ápice o animal seleccionado, visto que às vezes entrava mais do que um, era sacrificado e preparado, cujas vísceras e a pele, para não ficarem visíveis os vestígios do “crime”, eram incinerados nas chamas de aquecimento do forno.
O resto, ou seja, o fornecimento das batatas, dos temperos e dos condimentos, era “requisitado”, à socapa, ao fiel do depósito de géneros, ao Libânio, que, claro, também participava depois no festim.

Cerca de quarenta anos depois, em 2004, eis o que resta das instalações do forno, invadidas pelo mato, um dos palcos do “extremínio” dos cabritos aqui relatado. 
Foto: © José da Rocha Sousa (ex-combatente)

À parte a macabra sorte dos animais, convenhamos que era notável a estratégia destes militares, cuja especialização não se limitava à de padeiros.
Atentos os contornos desta história, a sua especialidade era muito mais abrangente!
Porém, a mesma técnica era também posta em prática pelo 4.º pelotão ao fazer desaparecer igualmente alguns cabritos, que tinha como executante, entre outros, o Miranda, “ternamente” apelidado, talvez por isso, por “Mata e Rouba”, ficando assim a dúvida a quem pertenciam os direitos de autor de tão avançado método de apanhar cabritos.
Acredito que esses direitos de autor pertenceriam aos padeiros, dado que não deixavam sinais dos despojos dos cabritos ao serem incinerados no forno.

Enquanto que o 4.º pelotão, ao enterrá-los ali próximo da caserna, um dia em que o quartel foi atacado com foguetões, um deles, por coincidência, abriu uma cratera com a explosão precisamente onde os restos dos cabritos foram enterrados, deixando-os a descoberto.
Estava assim, por azar, desvendada a autoria do “crime”.
Todavia, os “acusados”, mesmo perante esta evidência, apresentaram os seus argumentos de defesa, de tal forma eloquentes e convincentes, que nem da cartola de um ilustre e sagaz advogado seria de esperar tão brilhante alegação: 
- Foi o foguetão que fulminou os cabritos!

Com o amadorismo do 3.º pelotão e dos condutores a que antes fiz referência, com o “profissionalismo” e sofisticação dos padeiros e do 4.º pelotão ora relatados e na eventualidade dos 1.º e 2.º pelotões terem feito também a sua parte, dá para perceber que grande parte da população de cabritos de Jumbembém foi dizimada.

Era a irreverência de jovens de 22 anos de idade, associada muitas vezes à fome que se passava, principalmente à noite em que o jantar era invariavelmente arroz com salsichas, que nós passámos a designar ironicamente por “arroz com p… de macaco”.

A necessidade aguçava o engenho. Faziam jus à máxima da época de que “a tropa manda desenrascar".

(Pág. 271/276 do livro "Prece de Um Combatente - Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial" - Edição de Autor - 1.ª Edição-Julho de 2012)

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Depois da concentração, à hora marcada, partimos para Ruivães, onde fomos recebidos pelo anfitrião organizador da festa, na sua própria vivenda, o também ex-combatente, nosso companheiro, José Carvalho de Sousa.

Este nosso companheiro era emigrante na Suíça que, juntamente com a esposa e a filha, D. Goretti e Alzira, respectivamente, ao longo de vários anos em que estes encontros se têm vindo a suceder, viajava expressamente daquele pais para Portugal e vice-versa para se juntar a nós nestes dias.
Era um companheiro alegre e bem disposto que nos brindava e mimava com os chocolates da Suíça que com satisfação nos distribuía, ora no autocarro em viagem para o local previamente estabelecido, ora já no restaurante da festa.

No ano anterior, em 2011, no decorrer do encontro na Mealhada, o nosso amigo José Carvalho de Sousa manifestou o desejo de ser ele o organizador da festa de 2012.
E assim foi.
Esperava-nos então em Ruivães um encontro inesquecível:

A recepção aos ex-combatentes foi feita com a contagiante alegria deste nosso anfitrião na sua bonita vivenda que construíra com as suas poupanças de emigrante em local nobre da freguesia de Ruivães, ali junto ao adro da igreja paroquial.

Fotografia dos ex-combatentes junto à vivenda do anfitrião José Carvalho de Sousa, assinalado pela seta.

Seguiu-se a homilia habitual naquela igreja em homenagem aos nossos companheiros já falecidos e, à saída, para nossa surpresa, assistimos à exibição da fanfarra dos Bombeiros Voluntários locais.

Entrámos depois no salão paroquial, paredes-meias com a mesma vivenda, onde nos foi fornecido um lauto banquete por uma empresa de restauração, abrilhantado, para mais uma surpresa nossa, por um conjunto musical lá da terra.
Seguiram-se algumas intervenções de camaradas que, invariavelmente, aludiam à excepcional organização da festa por este nosso companheiro, perante a sua esfuziante alegria e alguma emoção que nos contagiou a todos.
Eu próprio intervim, revelando a todos o projecto em curso do meu livro, prestes a ser concluída a sua edição, cujas histórias ali relatadas eram comuns a todos nós.

O nosso amigo anfitrião comeu, falou, dançou, transpirou, emocionou-se, distribuiu os habituais chocolates, ofereceu lembranças, entre as quais umas garrafas de bom vinho.
Enfim, era manifesta a felicidade que lhe ia na alma pela festa que nos proporcionou, totalmente a expensas suas, pois não aceitou um cêntimo que fosse de ninguém.

Terminada a festa, nos dias imediatos, regressou à Suíça com a família de onde tinha vindo propositadamente para organizar a festa, embora com o apoio de dois camaradas, o Bastos e o Carneiro.

Volvidos cerca de dois meses, nos primeiros dias do mês de Agosto, voltávamos a Ruivães em circunstâncias bem diferentes!:
Fomos despedir-nos do nosso inesquecível camarada José Carvalho de Sousa que acabava de ser “mobilizado”, desta vez para integrar o exército de Deus lá no Céu.

Ele tinha-se despedido de nós, de facto, conscientemente ou não, há dois meses atrás quando, rejubilando de alegria, nos recebeu.

Já não tive oportunidade de lhe oferecer um livro, visto que o primeiro que recebi foi precisamente no dia do seu funeral, quando regressei a casa.
Fiz questão de o oferecer mais tarde à família.

A sua figura ficará gravada de forma indelével nas nossas memórias enquanto por cá andarmos.

Até um dia companheiro.
Maio de 2013
Manuel Luís Rodrigues Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11578: In Memoriam (150): Henrique Rosa (1946-2013), ex-fur mil inf, Op Esp., CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Nhala e Qubeo, 1969/71), e ex-presidente da República da Guiné-Bissau, interino (2003/05) (Francisco Barroqueiro / Manuel Amaro)

2 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Manuel L. R. Sousa,

Não sei se o pessoal da tua companhia foi o primeiro ou o ultimo, mas não foram os únicos a utilizar a mesma tecnica
para roubar cabritos.

Na maior parte das vezes, quando a pratica era sistemática, a população acabava por desconfiar da tropa, mas o que podiam fazer?

Na realidade a tropa nao roubava, confiscava, porque tinham a seu favor o argumento da força.

E diga-se de passagem que nem sempre corria da melhor maneira, lembro-me de um caso ocorrido em Fajonquito, em que alguns soldados tinham sido obrigados, pelo comandante, a pagar o preço de um vitelo que tinha sido atropelado numa picada e que de seguida tinham transportado ao quartel para uma boa fornada.

A população tinha sempre muita relutância a vender os seus animais porque, no meio em que viviam, o gado tinha maior valor de uso e de troca do que o dinheiro enquanto valor fiduciário. Ao contrario do dinheiro que era muito volátil, podiam conservar e multiplicar o gado, diminuindo assim os riscos ligados a economia da subsistência baseada numa agricultura dependente do aleas climático.

A vida de famílias inteiras dependiam da boa gestão do seu gado que representava a riqueza acumulada de muitas gerações.

Por outro lado, o numero máximo de mulheres que a religião muçulmana preconiza para os seus fieis é em numero de quatro, mas ao mesmo tempo, as condições subjacentes são tao draconianas que equivale a dizer que, de facto, não se autoriza mais que uma mulher (quem quiser aprofundar, pode consultar um muçulmano letrado ou Cherno).

Um grande abraço,

Cherno Baldé


Manuel Sousa disse...

Amigo Cherno Baldé:
Foi com alguma emoção que vi o teu comentário a este texto da minha autoria, que li atentamente, visto tratar-se, a avaliar pelo nome, de um guinéu.
Querendo saber um pouco mais sobre ti, já que foi a primeira vez que me deparei com este nome, deambulei um pouco aí pelo blogue e concluí que, ainda jovem, viveste em Fajonquito, como parte integrante da população nativa, creio que na zona de Bafatá, convivendo no teu dia a dia com as tropas portuguesas destacadas no local.
A propósito do episódio que eu descrevi sobre a forma de “roubar” os cabritos por parte de alguns militares de Jumbembém, que tu comentaste, creio que, como natural da Guiné, nas circunstâncias já referidas, estás em situação priviligiada de avaliar a conduta das tropas portuguesas em relação às populações.
Nesta condição, creio que estarás de acordo comigo que, de uma maneira geral, as unidades militares em campanha na Guiné, no decorrer da guerra colonial, prestavam apoio social às populações locais (saúde, ensino, alimentação, transportes, etc.) que hoje, nas zonas mais isoladas, não terão.
Portanto a regra era a sã convivência entre os militares e as populações, quer no contacto directo com elas, quer no aspecto mais formal através dos seus representantes, régulos ou chefes de tabanca, de cuja relação se criaram laços de amizade que têm levado alguns ex-combatentes, quarenta anos depois, a visitar essas populações com quem conviveram, encontros esses marcados pela emoção recíproca.
Claro que havia a excepção à regra de um ou outro abuso que não posso escamotear.
Esta história dos cabritos, e é aí que eu queria chegar, em relação à qual foste crítico no teu comentário, seria eventualmente uma delas.
Contudo, no meio de tanta adversidade do ambiente de guerra que nos envolvia, a fome e a irreverência da juventude, a isso nos levava.
Até porque não era só a população a visada por estes “furtos”. O próprio vagomestre, o responsável pela logística alimentar, foi vítima das nossas “investidas, aliás como descrevo no referido livro PRECE DE UM COMBATENTE.

Foi um prazer ver o teu comentário
Um abraço
Manuel Sousa