quinta-feira, 9 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11545: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (13): Estórias cabralianas nº 7: Alfero põe catota nova... (Jorge Cabral)


[Foto à esquerda: Lisboa, Sociedade de Geografia, 2008 > O Jorge Cabral. Foto: © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados.]


1. O "alfero Cabral" foi um dos grandes artistas que animou a nossa "tertúlia" nos idos tempos da I Série do blogue (que vai de 23/4/2004 a 1/6/2006)... Simplesmente genial este camarada da tropa que,  se não existisse, teria que ser inventado...  Ele trouxe, na época, à nossa caserna virtual  o outro lado do espírito do blogue, que podemos descrever como sendo  o  lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, saudavelmente louco... dos camaradas da Guiné.

O "alfero Cabral" foi uma criação do Jorge Cabral, uma espécie de "alter ego" do Jorge Cabral, ex-alf mil art, comandante do Pel Caç Nat 63, que esteve destacado, há muitas luas, nos idos tempos de 1969/71, em Fá Mandinga e depois em Missirá, na zona leste, no setor L1 (Bambadinca)... Na portuguesíssima província da Guiné, longe do Vietname... Hoje, República da Guiné-Bissau, pátria de outro Cabral, que não tinha, nem de longe, o sentido de humor, a ironia fina, e o talento para contar histórias, do seu homónimo lisboeta... Aliás, discutia-se, no meu tempo, quem era "o Cabral mais Cabral da Guiné"... Seu contemporâneo e vizinho na região, eu nunca tive dúvidas de que "Cabral só há [, havia,] um, o de Missirá e mais nenhum"... Mesmo que dele se dissesse coisas manifestamente exageradas como "consertador de catotas, engatatão de bajudas, anfitrião da putaria, oferente de soutiãs, e pai de todos os mininos da tabanca"...

O melhor elogio que se pode fazer deste brioso "alfero Cabral",  é dizer que ele, no TO da Guiné, foi  "pau para toda a obra": para além de oficial miliciano e comandante de um pelotão de caçadores nativos, era homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, poeta, contador de histórias, antropólogo, cherno, mauro, enfermeiro, médico, sexólogo, confidente de bajudas, advogado e não sei que mais, um verdadeiro Lawrence das Arábias da  Guiné... Mais: não tinha inimigos, nem nas fileiras do PAIGC!... E a prova disso é que, no seu tempo, nem Fá nem Missirá foram atacadas ou flageladas.

Pois bem, foi este homem quem começou a escrever, na I Série do blogue, as famosas "estórias cabralianas" que já vão no nº 76... Pensando nos seus fãs, mais antigos ou mais recentes, e em tempo de comemorações do nosso 9º aniversário (*),  reproduzimos aqui a nº 7 dessas "estórias cabralianas", que tem a ver com um delicioso anúncio que apareceu um dia,  cravado no poilão da Tabanca de Fá Mandinga: " Alfero poi catota noba, dam trez bintim"...

Se não foi o melhor negócio da vida dele, "alfero Cabral",  foi seguramente a melhor "boa ação" psicossocial levada a cabo no tempo do Spínola, e que muito terá contribuído para uma Guiné Melhor... Pelo menos, em Fá (Mandinga), sempre que lá fui,  nunca vi  bajudas com ar infeliz... (LG).


2. Estórias cabralianas > Alfero Cabral põe "catota nova" (**)...

por Jorge Cabral


Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois [, com sede em Bafatá,]  referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.

Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…

Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, as mulheres eram compradas, alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos!  Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero odjo grosso era procurado para remediar o que parecia irremediável.

Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo (!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.

O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia. Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado deram um resultadão.

Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.

Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero poi catota noba, dam trezbintim.

Texto: © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados

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Notas do editor


(*) Último poste da série > 7 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11539: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (12): Fima Siga, a enfermeira do Morés (Virgínio Briote, ex-alf mil comando, Brá, 1965/67)

10 comentários:

Luís Graça disse...

Querido "alfero": agora percebo por que é que, qaundo fui gerente da messe de Bambadinca (tocava um mês a todos...), nunca arranjava galinhas em Fá Mandinga... O "alfero", que era também o chefe da tabanca, tinha dado "ordens terminantes" às mulheres grandes para manter sempre um elevado "stock" de galináceos, disponíveis para o supremo sacríficio da noite de núpcias... Ele tinha "esperto no cabeça"...

Torcato Mendonca disse...

Olá boa noite, eram tempos diferentes estes, não de partir catota ou de a recuperar. Não, refiro-me ao blog e aos conteúdos; ao blogue e a quem por cá andava, escrevia, comentava.
Já lá vão uns anos, as recordações foram confrontadas e tavez tenham ficado mais próximo da realidade outrora vivia e não a que hoje ou no principio do blogue era descrita. A mim daquilo restam-me memórias e, porvezes, não sei se se assim aconteceu, se efectivamente lá estive.

Fico aqui e vou reler outros assuntos pois amanhã é sexta e tenho que discuti-los. Até e
Um ab,T.

Anónimo disse...

Palavras nostálgicas as do Torcato :"ao blogue e a quem por cá andava,escrevia,comentava".Quase as diria "lapónicas"..... Um grande abraço.

Anónimo disse...

Ler (reler) estes textos do J. Cabral, é um agradável exercício mental, nunca será demais elogiar os mesmos.

Abraço
Manuel Marinho

Cherno Baldé disse...

Caro "Alfero Cabral",

Bonita descricao de factos de uma realidade vivida. O homem é plural.

O conceito da virgindade e a pratica de testes de comprovacao entre os povos islamizados da Africa deve ter as suas raizes nos antigos usos e costumes arabes.

Nao concordo com o uso da palavra "compradas". Aqui fica melhor falar de dote, porquanto o valor total dos bens com que a noiva é dotada (o seu capital inicial) é sempre superior ao pretenso "valor da compra" e, em caso de incompatibilidade comprovada, a noiva é livre de voltar a casa dos pais e se for por justa causa, a familia da mulher nao é obrigada a devolver o dote ou valor da "compra".

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Eu sei Cherno.Mesmo em Portugal existiu o dote. E se consultarmos o velho código civil, lá encontramos o regime dotal. Quanto à virgindade, a falta dela,conduzia à anulação do casamento...Outros tempos...

Abraço Grande!

J.Cabral

Torcato Mendonca disse...

Olá Joseph Belo, já deve ter começado o degelo na Lapónia...aqui , neste nosso País, t~em-no gelado, humilhado e ofendido tanto que, a assim continuar, talvez o tornem mais frio do que "árticos e antárticos"...precisa de "aquecimento".Thor e outros deuses o protejam de tão nefastas gentes...
Vim reler o que ontem escrevi. Pode ser nostalgia, pode ser ou, porque não o sentir um certo resfriamento - hoje estou frio,eu, e há Sol lá fora - ou sentir o relato do acontecimento de outrora, com quarente anos, tão diferente da minha memória desse mesmo facto. Exemplo? Pois fixemo-nos no conto do nosso camarada alfero 1000 Cabral e o modo como esse mesmo conto, essa estória é sentida e, será eufemismo (?), pelo nosso amigo Cherno, homem que aqui nos relata bem a Guiné, de outrora e de hoje, a cultura,usos e costumes desses Povos, principalmente os Fulas.
Eu tinha memória diferente sobre a mulher que eu conheci"" nas Tabancas guineenses, eu recordo a mulher sofrida, a mulher trabalhadora, mulher mãe e objecto (no sentido de ser relegada para segundo plano).Cá, em certos países do Ocidente, só aos poucos vai tendo a plenitude de direitos...não é, por cá, herança Árabe, é machismo...não só.
Bem, porque falei em Árabes, em países Árabes e por aí não devo entrar, aqui, paro. Vidas...de tantas vidas.

Abraços p/Lapónia, Guiné,Lisboa...

Ab, T

JD disse...

Camaradas,
Rio-me deliciado com mais uma estória deste alfero bem adaptado.
Os elogios estarão quase todos na apresentação feita pelo Luís Graça, e já nos dão ideia, e despertam a curiosidade, para o homem grande com génio na cabeça.
Um grande abraço
JD

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Jorge Cabral,

Obrigado por concordar comigo, obrigado pelo bom humor e não esqueça de fazer a devida correcção antes da publicação do grande Best-Seller que se adivinha com as Estórias Cabralianas.

Como dizia o outro Cabral, as manifestações culturais são sempre o produto de uma época (tempo) e de um espaço bem determinado.

Desde criança que não me sentia bem na pele de um nubente fula por causa destas "provas" materiais a quente, que me pareciam humilhantes, ridiculas e injustificadas do ponto de vista humano (social) e economico (por causa do desperdicio).

Assim, muito cedo, comecei a pensar numa estratégia para não me sujeitar a estas práticas que considerava caducas.

Quando voltei dos estudos, pensei que podia dar a volta, convencendo a minha namorada fula para um casamento discreto, sem barulho e sem a habitual cerimónia. "Niet!", ela, ao principio concordou, mas rapidamente mudou de ideias, influenciada pela familia e colegas. Ela, uma menina ainda "virgem" (o que não era verdade), não podia ir a casa do seu homem assim as escondidas como se fosse um embrulho, nunca.

Com este primeiro desaire, compreendi que devia matar os germes do tribalismo que habitavam em mim, da mesma forma que habitam um pouco em cada Guineense, e ultrapassar os esteréotipos "raciais" alterando os gostos e as convicções interiorizadas na mente, como quem toma medicamentos amargos para sarar uma doença crónica mas curável. Mudei de perspectiva e comecei a ver as mulheres com outros olhos.

Foi assim que comecei a namorar com a minha actual mulher e companheira, com a qual vivo há mais de 20 anos. Não estando sujeita a mesma pressão social das mulheres fulas, ela aceitou, sem dificuldades, a minha proposta.

Com ela consegui fugir da exposição pública da nossa intimidade, mas em contrapartida fui obrigado (eram as suas condições) a formalizar três casamentos: Apresentação do "Cabaz" à familia (o pacto da etnia Papel, da parte dos pais), "amarra" (pacto muçulmano para satisfazer a parte materna - Nalú- e a minha familia) o casamento civil junto ao Tribunal com escritura e tudo.

No computo geral, acabei por pagar mais caro, financeiramente, do que seria normal e, apesar de tudo, ainda é cedo para concluir que a minha decisão foi acertada, pois o casamento misto, na Guiné e em qualquer outra parte do mundo, é um desafio com muitos imponderáveis. Foram muitas as vezes que surpreendi a minha esposa a questionar a honestidade do pacto que esteve na base do nosso casamento e, as vezes confessa para as amigas: "Se eu soubesse que estava a tratar com um economista, educado no mundo comunista..." enfim, com muitos "ses" e "istas" no meio de dúvidas e interrogações.

Na altura, a minha familia discordou, a minha mãe barafustou, mas como não tinham que pagar nada, acabaram por aceitar.

E tudo por querer fugir do barulho da multidão de mulheres curiosas (são as verdadeiras guardiães da tradição)e 5 minutos de stress sexual com truques e "mesinhas" a mistura para a perpetuação dos usos e costumes e, também, para a manifestação da virilidade masculina de ser homem, "macho".

Um grande abraço,

Cherno Baldé


Anónimo disse...

Obrigado Cherno!

Embora Alfero Nativo, não passava de um tuga ignorante,que muito aprendeu e continua a aprender..Na Guiné usava (e continuo a usar)

vários amuletos ou mezinhas que me protegiam de tudo, desde as balas
do Inimigo,

às fúrias do Comandante. Ora sempre pensei que eram fulas.Pois há uns meses fui de urgencia para o hospital onde fui atendido por uma médica da Guiné,que achou muito curioso, tais amuletos nos braços e na barriga do Velhote e os identificou como mandingas...Fulas ou mandingas, o certo é que funcionam..

Abraço Grande

J.Cabral