quinta-feira, 25 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11466: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (10): Bombeiro (in)voluntário e outras histórias

1. Em mensagem do dia 17 de Abril de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.
A guerra vivida de modo mais soft mas não menos espectacular.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné) 

10 - Bombeiro (in)Voluntário

Tendo cumprido uma comissão militar na Guiné, entre Março de 1973 e Setembro de 1974, apenas ali passei um Natal; o de 1973.

No dia de Natal era habitual, segundo creio, todas as unidades militares na Guiné entrarem em prevenção a 100%, isto é: toda a gente a trabalhar durante as 24 horas do dia.

Dias antes, na CSJD/QG/CTIG onde eu prestava serviço, iniciaram-se as "conversações" no sentido de definir a contribuição que cada um iria dar para a realização de um convívio natalício naquela noite, o que abrangia toda a gente, incluindo o Chefe (TenCor Manuel de Moura).
Imaginava um são e alegre convívio, mas toda a noite sem dormir, comendo e bebendo de tudo um pouco (excepto água), afigurava-se-me uma prevenção a rondar talvez os 5%, na melhor das hipóteses.

Se numa qualquer repartição do QG/CTIG esse facto não parecia diminuir muito significativamente a sua "capacidade de defesa", já no mato não se poderia afirmar o mesmo, mas, ainda assim, parece que o convívio nessa noite também por lá se efectuava, a julgar pelos relatos de alguns ex-combatentes publicados neste e noutros blogues. Seria um Natal diferente, longe da família, é certo, mas onde a camaradagem própria dos militares proporcionaria, certamente, alguns momentos de alegria atenuando minimamente a saudades próprias da época.

Tanto na tropa como na vida civil, um bom desempenho, coragem, grande sentido do dever, e outros atributos que me são característicos e que a minha modéstia me impede de referir, trazem-nos, por vezes, trabalhos redobrados, já que nos momentos mais difíceis somos os primeiros a ser chamados para a "frente de batalha".
E foi asim que, naquele Natal de 1973, me escalaram para o serviço de Sargento de Piquete.

O Piquete raramente era chamado para qualquer tarefa e limitava-se a estar pronto para o que "desse e viesse", mas originou o meu afastamento do convívio natalício com os meus camaradas e superiores da CSJD. Mas se andava algo entusiasmado com a ideia de um Natal diferente passado entre militares, não posso dizer que as minhas expectativas tivessesm saído frustadas, pois acabei por passar uma noite de Natal bem diferente e bem regada, entre militares, população e bombeiros.

Então não é que, a meio da noite, nos colocaram pás e picaretas nas mãos e nos mandaram para o Pilão atacar um incêndio que deflagrara numa tabanca?!

Se com a HK-21 não me entendia lá muito bem, apesar da formação obtida (+/- 10 minutos), imaginem a minha destreza a manusear uma pá, ou picareta sem nunca ter tido qualquer formação, nem tão pouco saber como se puxava a culatra atrás!
- "Os generais devem estar loucos!", pensava eu com os meus botões.

Lá seguimos de Unimog até ao Pilão, armados de pás e picaretas para fazer não sabia bem o quê. Demoramos algum tempo a chegar ao objectivo já que o Unimog se deparava com algumas dificuldades de manobra dentro do Pilão e a tabanca em chamas se situava numa das extremidades do bairro.

Tivemos de circundar o bairro e, chegados lá, encontramos os bombeiros de Bissau a atacar o fogo que se circunscrevia apenas às travessas que suportavam o telhado de colmo que, entretanto, havia já sido consumido pelas chamas. Sentindo-me perfeitamente ridículo no comando de um pelotão armado de pás e picaretas, por ali ficamos quedos e mudos na esperança que o breu da noite encobrisse a nossa triste figura.

O pessoal dos bombeiros era todo guinéu e tendo, provavelmente, detectado a nossa caricata presença, resolveu atacar o fogo pelo lado oposto àquele onde nos encontrávamos e como as agulhetas eram apontadas para as travessas do tecto, a água que não acertava nas mesmas, ia cair direitinha em cima do Piquete, no outro lado da tabanca.

E assim passei o meu Natal de 1973 bem regado, com alguns militares, no meio da população do Pilão e com bombeiros danados p'ra agulheta. (à falta de champagne...!)


Outros pequenos episódios 

1 - Guarda de Honra em julgamento militar 

Nos tribunais militares os julgamentos eram efectuados com a presença de uma Guarda de Honra e durante a minha comissão na Guiné, apenas uma vez fui escalado para comandar um pequeno pelotão numa "cena dessas".
De camuflado, luvas e cordões brancos, sob uma temperatura a rondar talvez os 40ºC e com alguns 80% de humidade no ar, lá fomos para a sala de audiências que não tinha ar condicionado, mas sim uma ventoinha "gigantola" no tecto.

Quando o Juíz entrava todo de branco fardado, fazendo lembrar um vendedor de gelados que ali bem-vindo seria, a Guarda levantava-se, eu dava ordens de sentido-ombro armas-apresentar armas, "comme d'habitude" nestas ocasiões.

Durante o julgamento permanecíamos de pé, de mãos quentinhas e com o suor a escorrer por todo o corpo, fazendo-nos sentir sermos nós os verdadeiros réus a cumprir já parte da pena.
Recordo-me que, nesse dia, foram três julgamentos seguidos (era talvez época de saldos).
A situação lá se foi aguentando (que remédio!), mas na hora da leitura da sentença é que a coisa se tornava feia. Todos em sentido enquanto o homem lia os "preliminares" e, quando proferia uma frase semelhante a: "Determino em nome da lei", eu dava voz de apresentar armas e assim permanecíamos até ao fim da leitura que demorava uma eternidade, fazendo com que as armas aumentassem exponencialmente de peso.

No meu caso a arma era uma FBP cujo peso era bem inferior ao da G3 e cujo apresentar d'armas era sobre o peito aguentando-se razoavelmente a posição, mas o resto de pessoal armado de G3, ao fim de alguns minutos já não conseguia manter a arma firme na vertical, tremendo como varas verdes.
De soslaio, apercebi-me que alguns foram aproximando as respectivas coronhas da barriga, acabando por as poisar no cinturão, transformando a Guarda de Honra num cerimonial com pouca verticalidade.

Segundo me recordo, um dos julgamentos referia-se a um soldado metropolitano que, a caminho de uma qualquer patrulha, saltou da viatura e regressou ao aquartelamento, desobedecendo ao Alferes. Este ter-lhe-á posteriormente aplicado apenas um castigo de alguns "reforços à benfica", castigo esse que foi considerado demasiado brando, o que terá originado, também, um processo disciplinar ao Alferes.
Quanto à pena sofrida pelo soldado, não me recordo bem, mas julgo que foi de alguma dureza.

Num outro julgamento o réu era um civil negro, já com algumas chuvas passadas, baixote, descalço (e eu de luvas brancas!) e de uma etnia qualquer que obrigou à presença de um outro militar, também negro, no papel de tradutor. Não me recordo já de qual o crime cometido por aquele civil, nem da pena a que foi condenado, mas apenas que, após uma pergunta do Juíz, o "intérprete" ter entrado em longa algaraviada com o réu, finda a qual simplesmente respondeu:
- "Ele disse que não"


2 - Certidão de óbito cacimbada 

Como referi anteriormente, quando cheguei à Guiné já lá se encontrava o meu irmão Álvaro que prestava serviço na Secretaria do HMBIS e a quem ainda faltava cerca de um ano para terminar a comissão. Claro que eu, sendo "piriquito fresquinho", fui alvo de muita "música" do "velhinho", nomeadamente com telefonemas sobre os assuntos mais estapafúrdios que se possam imaginar.

Um certo dia encontro num dos processos que me chegaram às mãos uma certidão de óbito que, após a respectiva assinatura, continha mais ou menos, os seguintes dizeres: Panderonga Parabó Lundó Médico Anatomopato

Tratando-se embora de uma brincadeira algo tétrica, não deixei de esboçar um sorriso e associar aquele acto mórbido ao cacimbo entretanto já suportado pelo mano Álvaro.

Telefonei-lhe imediatamente para o Hospital e ele desatou a rir à custa da ignorância do "piriquito".
Afinal - Panderonga Parabó Lundó - era o nome de um médico Anatomopatologista, de origem indiana, que prestava serviço no HMBIS.

Ia lá eu adivinhar semelhante tal!
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Nota do editor:

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11283: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (9): Rancho melhorado

6 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Abílio Magro

Deixa-me que te diga que tens razão quando escreves uma "guerra vivida de modo mais soft mas não menos espectacular".
E fazes bem em revelá-la pois como já tenho escrito, a nossa história da nossa presença na Guiné nãos e restringe apenas às emboscadas, golpes-de-mão, ataques, flagelações, etc., mas ao conjunto de actividades menos 'visíveis' mas indispensáveis para o funcionamento da máquina.

Estas histórias que nos trazes hoje são uma boa prova disso. Realmente, não tinha presenciado nenhum julgamento e fiquei com uma ideia. Também gostei de ver a foto com o Quartel dos Bombeiros que já não me recordava. E a 'confusão do nome' e as brincadeiras do 'mais velho' para com o caçula, também não deixa de ter a sua graça.
Uma recomendação: para não esgotares as tuas memórias de forma rápida e privares os teus leitores, envia uma de cada vez... alimentas o Blogue, dás trabalho ao Vinhal (que anda 'folgado'), nós vamos lendo todas e apreciando-as embora de modo mais prolongado no tempo.

Um abraço
Hélder S.

Abílio Magro disse...

Camarada Valério:
A frase - "guerra vivida de modo mais soft mas não menos espectacular", não foi colocada por mim, mas talvez por alguém que nunca sentiu as agruras de um mancebo com menos de 60 quilos a quem um dia calçaram umas botas de cerca de meio quilo cada, puseram uma HK 21 nas mãos de cerca de 3 quilos e uma fita de balas ao pescoço e mandaram-no proteger a PIDE/DGS.
E quem me protegia a mim, porra?!

Anónimo disse...

Camarada Abilio Magro, continuas o mesmo irreverente de sempre, uplica estas vivências, pois não são histórias , em livro.
Um abraço.
Francisco Jorge de Pinho

Anónimo disse...

Pra já oh..amanuense "duma figa", no mato era "natal todos os dias" se te referes a estar 100% operacional.

Bem feita pelas agruras que passaste, se julgas que tenho pena ,estás muito enganado...

Quanto aos "anatomopato" e já agora "tanato" isso é linguagem médica cifrada para os leigos não entenderem..ou vocês julgam que um gajo anda a "queimar" as pestanas para depois um qualquer saber tanto como a gente que se fartou de estudar..brincamos ...não.

Um grande alfa bravo para ti "meu ganda amanuenselogista".

PS

ANATOMOPATOLOGIA= ciência que estuda as alterações celulares.
TANATOLOGIA=ciência que estuda as causas da morte.

C.Martins

Abílio Magro disse...

Camarada Pinho (cangalheiro-2)

Antes de eu publicar as minhas vivências em livro, quero ver aqui publicadas as tuas, pois hás-de ter muito que contar sobre a vida de um Fur.Milº da 1ªRep/2ªFun/QG/CTIG.

Abraço

Abílio Magro disse...

Camarada C. Martins
Não estava à espera que tivesses pena de mim, mas esperava alguma comiseração por quem levou uma vida inteira a fazer "serviços" e que, talvez pela sua proficiência, tem armagurado a vida inteira nessas tarefas. Ainda ontem estive de Sargento de faxiba a varrer o pátio.

Abraço