domingo, 21 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11434: Bom ou mau tempo na bolanha (4): A odisseia (Tony Borié)

1. Quarto episódio da série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), Bom ou mau tempo na bolanha.





Um certo dia, ao cair da tarde, pouco depois do comboio das quatro e meia, o Tó d’Agar, que é como se chama neste texto, de regresso a casa pela estrada principal que levava à vila, depara com um casal que se via aflito para mudar a roda de um carro, cujo pneu tinha furado. Falavam uma linguagem diferente, como se via nos filmes de cowboys. O Tó d’Agar, solicito e vendo o casal em apuros, imediatamente se prontifica a ajudar. Em poucos minutos troca a roda do carro, de seguida, explica:
- A vila é próxima, fica ao sul, lá podem reparar o furo do pneu, naquela casa ali, vive o senhor Jaime barbeiro, boa pessoa, eu vou lá com vocês e podem lavar as mãos e beber água.

O casal, era nem mais nem menos, um diplomata americano, duma cidade do norte de Portugal. Falavam e compreendiam português, pelo menos ele, e na despedida, esse diplomata, muito simpático, deu-lhe um cartão de visita, dizendo-lhe:
- Agradeço imenso a sua ajuda, e estou ao dispor para o ajudar no que for preciso.


À noite, já depois de passar o comboio das dez e meia, no quarto antes de dormir, o To d’Agar conta o sucedido à Margarida. Ambos concordam que era uma boa oportunidade de tentarem emigrar, sair do regime que não mais suportavam, irem para outro país, onde pudessem dar um futuro aos filhos, onde os pobres fossem tratados com mais dignidade, onde não houvesse uma desigualdade tão grande de tratamento entre ricos e pobres, onde se pudesse sobreviver sem encontrar todos os dias pessoas soberbas a olharem, com receio de que não vá algum pobre comer o pão que essas mesmas pessoas soberbas e invejosas, mas com algum dinheiro deixado por alguém, não ganho com o suor do rosto, todos os dias deitam no caixote do lixo.

A ideia ficou a amadurecer no pensamento de ambos, não nessa semana, que havia rega do milho e outros afazeres, mas na seguinte, o Tó d’Agar, não de comboio como gostava, mas na camioneta da carreira, vai a essa cidade no norte, falar a esse diplomata.

Expressa-lhe a vontade de ir como emigrante para os Estados Unidos, a maneira não sabe, mas quer ir desesperadamente, conta-lhe a vontade que tinha de querer ter acesso a trabalho e tratamento com alguma dignidade, explica-lhe a perseguição que sofria, não só pelas polícia do estado, como pelas pessoas com alguma influência no lugar onde vivia. O diplomata escuta-o, pede-lhe todas as informações dele e da Margarida e finalmente diz:
- Como sabes, não sabemos nada a teu respeito, vou informar-me, entretanto, arranja estas certidões, estes documentos, passaporte, caderneta militar e um documento que prove a tua profissão de gráfico. Traz esses documentos e vem ver-me de novo.


O Tó d’Agar veio desanimado, o único documento que arranjaria com facilidade era a comprovação de que era gráfico. Há bastante tempo que descontava para o sindicato, ele mesmo tinha uma carteira do sindicato com a sua fotografia, se fosse ao sindicato na cidade, logo lhe passariam um documento comprovando que era gráfico, disso estava certo. Com alguma dificuldade também arranjaria as certidões, agora passaporte e caderneta militar era impossível, o passaporte era proibido dá-lo aos pobres porque podiam fugir. Muitos seus amigos tentaram ir ao governo civil tirar passaporte e eram corridos pelas escadas abaixo, com a intimidação de que iam avisar a Polícia do Estado e isso o To d’Agar não queria, pois já estava farto de interrogatórios.

O sistema era assim. Não queriam que a mão de obra, ou seja, os humildes trabalhadores, faltasse às empresas dos senhores importantes, em outras palavras, não autorizavam que os pobres deixassem de sustentar os ricos com o seu suor. Alguns, como não conseguiam passaporte, pagavam rios de dinheiro a “passadores” e iam “a salto”, como se dizia, para França e Espanha, muitos morriam nos Pirenéus, abandonados pelos “passadores” e como os companheiros combatentes e não só, talvez ainda se lembrem que o então Cifra era um razoável militar, mas um fraco, mesmo fraco guerreiro.
A caderneta militar, ainda quando se chamava Cifra, e quando entregou os trapos, que eram os restos da farda do ultramar e que teve que pagar vinte e sete escudos e cinquenta centavos, na unidade militar perto de Lisboa, o sargento na despedida, com cara de comandante, diz-lhe:
- Com a especialidade que tiveste na tropa, não podes sair de Portugal durante pelo menos cinco anos.

O Tó d’Agar lembrava-se dessa conversa de despedida.

Já em casa, falando com a Margarida, combinaram: Temos de fazer um pedido a alguém importante, com influência na tropa e no governo civil, alguém que esteja metido no sistema e que queira ajudar-nos, alguém que nos ajude sem exigir quatro vezes mais em troca, como era normal nestes casos, em que as pessoas que pediam favores a alguns senhores com poder, ficavam devedores para o resto da vida, podiam pagar, pagar, que nunca liquidavam a dívida. De contrário, vamos viver aqui o resto da vida, não sairemos da “cepa torta” e da miséria a que nos sujeitam.
Já lá iam mais de quatro anos e ainda não tinha recebido a caderneta militar, o sargento com cara de comandante, tinha toda a razão.

O Setúbal, sportinguista ferrenho, vinha todos os anos ao norte com a família ver o Sporting jogar com o Porto, ficavam em casa do Tó d’Agar, correspondiam-se por carta pelo menos duas vezes ao ano. O Tó d’Agar escreve-lhe um postal, pedindo-lhe se descobria lá por Lisboa, se o nosso comandante ainda era vivo e onde estava colocado. A resposta demorou uma semana e tal, era comandante de uma certa polícia na capital. O To d’Agar, desta vez vai no comboio das seis e meia até à cidade, tomando de seguida o comboio da linha do norte que o levaria à capital, vai à fala com o comandante, ficam pasmados a olhar um para o outro e abraçam-se. O comandante, pergunta-lhe:
- Então oh Cifra, em que problema, em que conflito, te meteste agora, para me vires ver? Não me vais dizer que é por causa das fotografias?

Riram, os dois.

O To d’Agar, explica-lhe toda a situação. Quer um passaporte para ele e para a Margarida e a caderneta militar, quer ir com a mulher para os Estados Unidos.
O comandante olha muito sério para ele e diz-lhe:
- Só se as melhores fotografias forem só para o meu arquivo.

Riram, de novo.

Ficaram à conversa uns minutos e o comandante faz uns tantos telefonemas. Entretanto, para ajudar a passar o tempo, beberam dois copos de Vat-69, servidos pelo comandante. O telefone toca, o comandante atende, fala com voz de comandante durante uns minutos e desliga. Vira-se para o To d’Agar, e diz com cara de satisfação:
- Tens cá uma sorte, és um felizardo. Podes ir levantar a tua caderneta militar ao quartel da cidade, a partir da semana que vem, pois vai ser enviada para lá por estes dias. Quanto aos passaportes, diriges-te pela manhã ao governo civil, falas com este personagem dizendo que vais da minha parte, pois já está avisado e vais trazê-los no mesmo dia. Combinado, oh Cifra, e mais uma coisa, não vás para os Estados Unidos, vender fotografias da guerra.

Estas últimas palavras, foram ditas com ar de alegria. Abraçaram-se, e despediram-se.


Tudo aconteceu, como o comandante disse: “Tens cá uma sorte, és um felizardo”.
Algumas semanas depois o Tó d’Agar tinha passaporte para ele e para a Margarida, assim como a caderneta militar nas mãos. Foi de novo falar com o bondoso diplomata, que entretanto já tinha todas as informações a respeito do Tó d’Agar e da Margarida. Ambos eram pessoas honestas e trabalhadoras, embora o diplomata, e o Tó d’Agar nunca soube porquê, a esse respeito lhe fizesse jurar que não se ia meter no futuro em assuntos de política, o que o To d’Agar erguendo a mão direita aberta, jurou. Entregou-lhe os documentos que tinham sido pedidos, incluindo uma comprovação do sindicato em conforme era gráfico. O diplomata, analisou-os e tirou fotocópias, apontou vários números, por fim explicou:
- Está tudo em ordem, o processo vai decorrer e no futuro vamos necessitar de mais documentos, mas serão simples e não vai haver qualquer complicação, praticamente vai ser aprovada a tua ida como emigrante para os Estados Unidos, precisavam lá de pessoas novas, honestas e trabalhadoras, toma lá este livro, que contém a história do país para onde vais emigrar, tem algumas palavras que tens que aprender, aprende, pois quero começar a falar contigo no idioma que lá falamos.

No ano seguinte nasceu um filho de ambos, um grande rapaz, sendo a Margarida, assistida durante toda a sua gravidez por um médico jovem, amigo de infância do Tó d’Agar, acabado de sair da Universidade. Filho de família modesta que compreendia a situação das pessoas com menos recursos, que eram os pobres e com ideias muito parecidas com as que o Tó d’Agar tinha nessa altura da sua vida, pois também teve complicações com a polícia do estado durante o seu tempo de estudante.

A ordem da embaixada, com autorização de visto e restantes papeis de embarque, vem no final desse mesmo ano.

O To d’Agar, lembrou mais uma vez o comandante: “Tens cá uma sorte, és um felizardo”.
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Nota do editor:

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11414: Bom ou mau tempo na bolanha (3): O Tótó e o vinho (Tony Borié)

8 comentários:

Anónimo disse...

´(...sair do regime que não mais suportavam, irem para outro país...

onde se pudesse sobreviver sem encontrar todos os dias pessoas soberbas a olharem...)

Pois recolhi estes "respigos" das lembranças do To d'Agar, porque além de colon também fui Retornado e emigrante, e como te compreendo, embora saiba que tem que ser mesmo assim.

Tony Borié, li algures que os portugueses não emigram, é Portugal que se purga.

Parece que estamos novamente numa dessas.

Cumprimentos

Antº Rosinha disse...

Todos sabem quem é o retornado, penso eu!

O anónimo foi lapso.

Anónimo disse...


O Tó d'Agar teve cá uma sorte!...

De facto não era muito fácil emigrar para os EUA sem petição, vulgo Carta de Chamada. Pelo que pergunto se o Tó d"Agar foi encaixado na Cota de Emigração ou se foi integrado num processo de Carta de Trabalho? A materialização destes dois processos eram, quase sempre, muito mais prolongado. Por vezes levava anos.

Se a memória não me falha, os EUA concediam cerca de 2000 vistos anuais para estes dois últimos tipos de emigração. Esta, a mais antiga para os EUA, foi muito baseada nesses processos. Também se pode juntar alguma emigração clandestina, esta protagonizada pelas frotas baleeiras americanas que demandavam os portos dos Açores, Madeira e Cabo Verde. Nas ilhas contratavam pessoal para substituir os doentes e mortos sofridos durante as prolongadas fainas da caça ao cachalote.

Com o vulcão dos Capelinhos, na Ilha do Faial, os EUA abriram as suas portas a um fluxo maior de Açorianos, acabando a Carta de Chamada para familiares ser o processo mais utilizada e que aos poucos se estendeu a todo o País.

O processo completo para conjugues e filhos menores durava cerca de três meses. De pais para filhos maiores e solteiros era de cerca de seis meses – o meu caso. Entre irmãos poderia ir até cerca de um ano.

A partir de certa altura os mancebos que atingiam os dezasseis anos de idade ficavamm impedidos de emigrar antes do cumprimento do serviço militar obrigatório. Eu fui um dos felizardos abrangidos por essa lei.

Quanto à Licença Militar para emigrar, para além de caríssima, era do conhecimento comum que os "Cifras" não se podiam ausentar para fora do País antes de decorridos cinco anos após o cumprimento do serviço militar.

A nível de graduados,se a memória não me falha, os militares envolvidos nos Serviços Secretos podiam ficar impedidos de se ausentarem do País por tempo ainda mais longo.

Um abraço para o vizinho da Florida.
José Câmara

Bispo1419 disse...

Simples, escorreita, sem demagogias panfletárias, aqui está mais uma imagem bem verdadeira duma certa época deste país.Obrigado Tony por fazeres lembrar aos mais distraídos, ele há tantos!,algo que se passava num Portugal recente. Só desejo que os arautos do regresso a esse passado, tão atarefados hoje andam na sua missão de fazerem acreditar que eram uns belos tempos em comparação com os de hoje, não consigam vencer.

Um grande abraço, meu caro Tony
Manuel Joaquim

Tony Borie disse...

Olá camaradas amigos combatentes.
Agradeço os vossos comentários compreensivos da vida a que estava sujeito naquele tempo.
Ao vizinho José da Câmara, pois neste momento encontro-me um pouco mais perto dele, pois estou no estado de Pennsylvania, para onde me desloquei para assistir ao nascimento de mais um neto, que é muito lindo e como todos os avós babados dizem que é parecido com os avós, eu emigrei para os USA, baseado na cota de emigração, depois de me qualificar como profissional, e claro, a boa compreensão do tal bondoso diplomata, que me facilitou todas as oportunidades que a lei exigia, e no mínimo espaço de tempo, também baseado em razões de perseguição política, recebi o desejado visto e demais papeis necessários para desembarcar em Nova Iorque e receber toda a documentação legal para transitar, trabalhar e viver nos USA, onde passados cinco anos de excelente comportamento fui convidado a receber a cidadania dos USA, que aceitei, para um melhor futuro meu e dos meus filhos.
Lembrando a frase do meu antigo comandante, "Tens cá uma sorte, és um felizado!", foi verdade, fui um felizardo, numa certa medida, pois também tive muitas dificuldades no início, pois estava sózinho num grande País, que as contarei no futuro com muito gosto.
Um grande abraço, Tony Borie.

Anónimo disse...

Amigo Tony. Foi duro na Guiné, passaste as passas do Algarve depois, mas venceste que é o mais importante.
E se para nenhum de nós, os jovens desse tempo,a vida foi fácil, resta-nos saber que estamos unidos e como sempre, esperançados num mundo melhor para os nossos netos, pois que também tenho (ou julgavas que eras só tu?) dois mas já grandotes. Um abraço do
Veríssimo Ferreira

Rogerio Cardoso disse...

Amigo Tony
Quando um individuo tem uma boa formação moral, que é o teu caso, a chamada "sorte" vem ao de cima. Lutaste e acreditas-te num futuro melhor e podes crêr que dignificas-te o nome valoroso do trabalhador português. Como sabes melhor do que eu, vocês são o exemplo do estrangeiro em terra alheia. Bem hajas
Um abraço do teu amigo Roger
Cart.643-AGUIAS NEGRAS

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