segunda-feira, 8 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11361: Notas de leitura (470): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Dezembro de 2012:

Queridos amigos,
Dá-se por concluída a transcrição de um conjunto de apontamentos organizados pela Mocidade Portuguesa acerca da história e lendas dos Mandingas da Guiné. Tudo leva a crer que foram organizados por Manuel Belchior, antigo funcionário colonial e que recebera meios para estudar os povos do Gabu. Faria todo o sentido reeditar-se os seus livros e entregá-los a um investigador para proceder à respetiva atualização.

Como se vê, trata-se de peças culturais que elogiam o poderio fula quando este migrou do Futa Djalon para o interior da Guiné portuguesa, implicando uma rearrumação étnica, a par da perda de estatuto que tinham os Mandingas.
Estas lendas e canções deixam igualmente perceber como os Fulas, de modo implacável, conduziram as etnias Mandinga e Beafada à região muçulmana.

Um abraço do
Mário


A deposição de Alfá Iaiá

Beja Santos

Os reis não são todos iguais
e nenhum igualava Alfa Iaiá
da família dos Djalo Djére.
A grande árvore tombou
e fugiram os pássaros que ela albergava.
Os nossos olhos choram.
Quando pensamos no nosso amo
os nossos olhos choram
(Da canção de Alfá Iaiá)

Pouco depois de se instalarem no Futa, os franceses puseram em prática medidas que dificultavam as orações. Alfá Iaiá protestou vigorosamente junto do seu amigo Beckmann, afirmando-lhe que os fulas nunca deixariam de gritar bem alto o nome de Deus.

O francês revogou as ordens e mandou que fizessem uma torre muito alta, para que dali gritassem o nome de Alá. Mas, passados anos, os sucessores de Beckmann procederam de maneira que o rei de Labé se convenceu que os franceses não o deixariam reinar e acabariam por prendê-lo. Reuniu, por isso, os chefes religiosos e militares do reino, para lhes expor a situação e perguntar-lhes se não seria preferível a guerra ao enfraquecimento gradual do seu poder e do seu prestígio.

O “caramó” Cutubé, jacanca de Tubá, disse que o facto de estarem os franceses no Futa e noutras regições era a vontade de Deus. Que não devia o senhor do Labé fazer a guerra porque já na sua vida derramara muito sangue e se continuasse pelo mesmo caminho não entraria no Paraíso.

- Se ficares em paz e te deixares prender, obedeces a Deus e lavas os teus pecados, disse o religioso.
- Estes “chernos” fazem arrefecer o meu coração como se fosse um trapo, exclamou, desanimado pelo conselho, Alfá Iaiá.

O “caramó” pediu ao rei que fosse ao seu curral. Se no momento de lá entrar não visse uma vaca preta a lamber o vitelinho de cor branca, então poderia pensar que o seu conselho não era bom e preferira a guerra.

Foi Iaiá ao curral e viu que tudo o que o santo homem dissera era verdade. Resolveu por isso obedecer ao “caramó”, convencido que obedecia à vontade de Deus.

Passado algum tempo, recebeu ordem dos franceses para se apresentar em Conacri. Em sinal de boa vontade e submissão, mandou embrulhar 3 mil espingardas em esteiras e mandou-as às autoridades europeias, dizendo, contudo, que não comparecia à convocação.

Ao saber desta recusa, o “cherno” Cutubó disse-lhe:
- Ou tu aceitas a ordem recebida ou eu vou descalço e pelos caminhos mais pedregosos até Conacri, castigando-me por tua causa. Mas tu fica certo de que não entrarás no Paraíso.

Alfá Iaiá resignou-se e partiu. No último momento, libertou todos os seus escravos, sabendo bem que já não precisaria deles.
Durante um mês, em Conacri, o rei de Labé foi mostrado a quem dava 100 francos para o ver. Por fim, meteram-no num barco e levaram-no para o Daomé.
Chegado ali, o seu último grande gesto foi comprar 40 cavalos e 100 vacas. Quando lhe perguntaram porque fizera isso, disse que a solidão é uma coisa triste e que um Fula não se considera só se tiver cavalos e bois, aquilo que mais adora. E foram estes animais o seu único consolo, até morrer.

Desaparecido que foi Alfá Iaiá, o último grande senhor do Futa, afirma uma canção feita em sua honra, os seus guerreiros dispersaram, tal como sucede aos pássaros que habitam as ramadas de uma grande árvore, quando esta cai.
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(1) - Se bem que Alfá Iaiá fosse Fula, esta canção foi feita por Mandingas, que por ele tinham grande estima. Os homens da sua própria raça não o estimavam tanto, preferindo o seu primo e rival Abubakar.
(2) - “Caramó” é sinónimo de “cherno”, isto é, doutor muçulmano.
(3) - Alfá Iaiá morreu no seu exílio no Daomé em 1906




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Notas do editor:

Vd. poste de 18 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11272: Notas de leitura (466): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (4) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 28 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11325: Notas de leitura (469): Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)”, editado pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963... Usos e costumes: a tecelagem, o arrancamento da pele dos cadáveres, as práticas de necrofagia, o fanado, o choro, o bombolom... (Francisco Henriques da Silva, antigo embaixador)

3 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Mário,

Os Mandingas têm razão quando enaltecem os feitos de Alfa Yaya, pois ele era, do lado da mãe (Koumantio Sané) de origem mandinga (Gáabunké), mas do lado paterno ele foi o herdeiro, por força da intriga e da espada, da casa dos chefes do Diiwal (provincia) de Labé, nascido por volta de 1850 (estou a citar o trabalho de Paul Marty: Histoire de Fouta Djallon, ed. Ernest Leroux, Paris, 1921).

Apesar dos elogios e inúmeras canções em sua honra, o Almamy Alfa Yaya, o último rei de Labé, de acordo com a tradição histórica, distinguiu-se no seu pais, o Futa, particularmente, pela sua bravura, mas também, pela sua brutalidade e traição aos seus irmãos e a causa do estado de Futa, chegando ao ponto de assassinar todos seus irmãos e potenciais rivais a conquista do trono ainda antes da morte do pai e chefe de Labé, Alfa Ibrahima que, conjuntamente com Alfa Oumarou de Timbo, soberano de Futa, destruiram e conquistaram o reino Mandinga de Gáabu.

Sendo o menos letrado dos seus irmãos e privilegiando desde cedo o manejo das armas, logo após a morte do pai, assume o poder com o assassinato do seu irmão Aguibou em meados de 1891.

Alfa Yaya, contra a vontade de Fouta e dos soberanos de Timbo, seus rivais (Bokar Biro), alia-se aos Franceses na guerra contra os seus irmãos de Timbo na tentativa de se apoderar do poder no estado de Futa-Djalon.

Como recompensa seria reconhecido como chefe do Labé, do Kadé e do Gabu, mas por pouco tempo, pois os Franceses não estavam dispostos a apadrinhar um estado fula forte e independente dentro dos seus dominios coloniais e, assim, pouco tempo depois era obrigada, também, a ceder a Portugal, em 1905ao abrigo de uma Convenção de repartição territorial (1886?), o territorio de Gabú onde Alfa Yaya pretendia continuar a exercer o seu poder.

O fim do seu reinado é bem conhecido e documentado, depois de alguma agitação sem grandes consequencias práticas, foi preso em 1905 pelos Franceses e deportado para Abomey (Dahomey), actual Reública do Benim.

Depois de 5 anos de desterro, foi libertado (1910) para novamente ser preso e deportado (1911), desta vez, para Port-Étienne (Mauritánia) onde triste, abandonado e desiludido, faleceu sem honra nem glória, em Outubro de 1912.

Os seus descendentes estão espalhados em toda a região da Senegambia e Dandum, no território da antiga Guiné-Portuguesa, teria recebido parte da sua numerosa familia com o apoio da casa real de Mondjur Embaló, régulo de Gabu, com o qual estava ligado por laços de amizade e de vassalagem desde a conquista de Gabú pelos Fulas.

Um muito obrigado ao MBS por mais esta recensão e um grande abraço a todos.

Cherno Baldé









Antº Rosinha disse...

Uma coisa que pode explicar a falta entendimento que às vezes se nota em dirigentes da Guiné-Bissau, pode ser por influências externas devido a influências familiares e comerciais que extravazam as fronteiras geográficas.

Como se vê pelo comentário do Cherno, etnicamente e familiarmente, aquelas fronteiras geográficas ainda estão muito "diluidas".

Era, e não sei se ainda é, fácil ouvir constantemente que certos comandantes do PAIGC eram de família da Gâmbia, ou de Conacry ou de outros paises vizinhos.

Era estranho ouvir há uns anos, aos guineenses exporem dúvidas sobre fulano ou sicrano ser ou não filho da terra.

Isto tanto sobre o próprio Amílcar como outros comandantes da luta do PAIGC.

Gostava de dizer a Beja Santos que há um jornalista que vende ou troca velhos e antigos livros sobre a (des)colonização e (des)colonizadores, vem no blog "Recordações da Casa Amarela", que o Luís Graça conhece.

Cumprimentos


Torcato Mendonca disse...

Olá Mário B. S.

Um abraço de amizade vinda dos tempos do Leste, da Guiné evidentemente.

Gosto e agradeço mais esta recensão... e porque assim escrevo? Certamente para não teres algum problema com um dos livros de Manuel Belchior. Ele dá-nos a nossa visão da Cultura dos Povos da Guiné, de toda aquela vasta zona que extravasa as fronteiras artificiais dos colonizadores.
O Cherno Baldé complementa e dá-nos novos conhecimentos. Vou novamente procurar um livro, mais do que um, da História dos Povos daquela zona: Mali, Senegal, Gâmbia, Guiné (s) etc
Foi pena,lá, o militar,eu claro, ter-se sobreposto ao "leitor" de História...

Um abração do T.