terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11279: Estórias do Juvenal Amado (47): Aquelas postas de bacalhau eram ouro

Galomaro > Porta de Armas

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 15 de Março de 2013:

Caros Luis, Carlos, Magalhães e restante Tabanca Grande
Gostava que fosse mais uma estória despretenciosa e que ela não carregasse o sentimento de perca que neste momento é praticamente impossível ignorar.
Mas isto também serve para honrar os amigos e para preencher o vazio que ficou. Por outras palavras fazemos o luto necessário ao nosso equilíbrio.
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

47 - AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO

O Caramba* tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, na vez de liofilizado como o recebíamos lá.
Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados, começou logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer, tinha que ter honras de iguaria fina.

Por mim achava que umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.

Eu, oriundo de operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele privei. Ele chegava a trazer do Alentejo as ervas aromáticas e mais os necessários, para fazermos os petiscos em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar. Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região que depois transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.

Mas voltemos ao “fiel amigo” que o pai lhe tinha mandado.

O destino do manjar foi uma p……. de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço inox quem eram usadas no refeitório.
Era o que se podia chamar uma grande tachada.

Nessa noite a partir das oito horas da noite, ele, eu e Aljustrel estávamos de reforço à porta de armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo e foi mesmo ali que fizemos as honras ao dito.

Está claro que não comemos sozinhos, alguns camaradas que regressavam do Regala bem com um ou dois furriéis a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na terrina. Mais tarde até o Santos que estava preso, ajudou a acabar com ela e de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.

O Santos na sua qualidade de preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma pequena mesa e dois beliches, não lhe custou nada ficar de reforço por nós que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o calor dentro daquelas quatro paredes.

O Santos por esperteza era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.

Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.

Voltando à figura do Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto, apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:
- Ora vamos indo não fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo

Dito isto, fez com a boca um trajeto trocista para que não houvesse duvidas, ao que se estava a referir.

Um abraço
Juvenal Amado

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11227: In Memoriam (144): João António Branquinho Caramba, ex-1.º Cabo TRMS da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

Vd. último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11196: Estórias do Juvenal Amado (46): Este gajo não tem uma cunha, tem um barrote

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Muito bem, meu caro Juvenal.

Relato sentido, profundamente humano.
Eu sei que tu tens um coração enorme.

Abraço de admiração e muita amizade.

António Graça de Abreu