segunda-feira, 18 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11271: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (22): A guerra no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 4612/72, entre fevereiro e junho de 1973


1. O António Graça de Abreu  esteve em Mansoa, no CAOP1, entre inícios de fevereiro de 1973 e meados de junho de 1973… Foi lá fazer os seus 26 anos. [Foi "apanhado na rede" no 3º ano da Faculdade de Letras, daí a diferença de idade em relação à média etária dos milicianos...].   Em Mansoa conheceu a guerra por perto, mas ainda não teve o seu batismo de fogo, que só chegaria aos 17 meses, em Cufar, no sul, na região de Tombali.

No seu Diário da Guiné (Lisboa: Editora Guerra e Paz, 2007),  o  António Graça de Abreu dá-nos conta do recrudescimento da atividade operacional do PAIGC, no setor de Mansoa,  com  (i)  ataques ao destacamento de Cussaná, nas imediações de Mansoa; mas também às guarnições de (ii) Braia, Infandre, Jugudul e Bissá;  assim como  (iii) emboscadas na estrada Mansoa-Mansabá-Farim e ainda (iv) emboscadas e flagelações na estrada Jugudul-Bambadinca (em construção)… 

O nosso camarada esteve lá, em Mansoa,  no tempo do BCAÇ 4612/72,do Jorge Canhão e do Agostinho Gaspar. Em finais de junho de 1973, o CAOP1 é transferido para Cufar. A 38ª CCmds [, do Amílcar Memdes,] estava nessa altura afeta ao CAOP 1, tendo vindo de Teixeira Pinto para Mansoa, com o António Graça de Abreu e o pequeno staff do CAOP1, que era comando pelo cor pára Durão.   Eis aqui a descrição, no seu diário, de escaramuças entre o PAIGC e as NT, no setor de Mansoa, de que resultarão diversos mortos e feridos.


[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu,   CAOP 1, junto ao obus 14, Mansoa, 1973. Foto: António Graça de Abreu ]



(...) Mansoa, 3 de Fevereiro de 1973 

As minhas mãos doem, estão inchadas. Tanto trabalho! A cabeça está boa, a laborar em pleno na aprendizagem das novas coisas da guerra.

Carregámos vinte e quatro Berliets com os materiais do CAOP 1 e da 38ª. de Comandos. Tanta tralha, dos armários e secretárias aos dossiers, aos cunhetes de balas! Foi empacotar, levar para as viaturas, chegar aqui, descarregar tudo, conferir o destino de cada peça, instalar.

O Tomé, que também teve de transferir o material das Transmissões – rádios, antenas, sei lá que mais! – dorme sossegado a um metro de mim. Temos um quarto minúsculo, o Cravinho safou-se da mudança, está de férias em Portugal. Quando regressar, vai abrir a boca até à nuca ao saber que tem Mansoa à sua espera.

A viagem correu bem. Saímos de Teixeira Pinto às sete e meia da manhã. Viemos com dois pelotões da 38ª. de Comandos - cerca de sessenta homens, - que nos deram segurança durante o percurso. Vim sentado num Unimog, a meio da coluna, de camuflado, a espingarda entre os joelhos, com bala na câmara. Só entre o Pelundo, Có e Bula era possível uma emboscada. Mas tudo sossegado.

Atravessámos o rio Mansoa de jangada, num lugar chamado João Landim e depois, já não muito longe de Bissau, em Safim, cortámos para a estrada até Mansoa. Três quilómetros antes de Mansoa fica uma aldeia chamada Jugudul onde os guerrilheiros, há dez dias atrás, destruíram cem tabancas acabadas de construir pela NT, destinadas a realojar população. A povoação está num estado miserável, toda a gente fugiu. Isto aconteceu por causa da estrada em construção que começa exactamente no Jugudul, vai até Porto Gole e irá terminar em Bambadinca, uns sessenta quilómetros a leste. As estradas novas, alcatroadas dão sempre problemas, os guerrilheiros tentam obstar à sua construção.

Mansoa é diferente, mais pequena, pobrezinha e feia do que Teixeira Pinto. O quartel também é mais fraco. Tive uma surpresa, vivem cá cinco ou seis mulheres de oficiais e dez de sargentos. Connosco, na coluna trouxemos a mulher do capitão Pancada e a esposa com os dois filhos, quatro e dois anos de idade, do capitão da 38ª. de Comandos. (...)
            

[Foto à esquerda: O alf mil António Graça de Abreu  CAOP 1, em Teixeira Pinto, setembro de 1972. Foto de António Graça de Abreu]


Mansoa, 9 de Março de 1973

O general Spínola encontra-se aqui próximo, em Jugudul a três quilómetros de Mansoa. Esta manhã há cerimónia de imposição de insígnias a novos milícias africanos. Jugudul precisa de ser defendida. A 10 e 23 de Janeiro deste ano, os guerrilheiros foram lá e quase arrasaram a povoação, queimaram tabancas, entraram nas casas dos que mais colaboravam connosco e limparam-nos. Ainda estávamos em Canchungo e esta terá sido uma das razões que motivou a nossa transferência para Mansoa, com carácter de urgência.

Os ataques de Janeiro foram muito bem planeados. Mansoa tem o grosso da tropa, antes de nós chegarmos e trazermos a 38ª. de Comandos já eram cerca de 400 homens, depois à nossa volta encontram-se 70 militares em Jugudul, 40 em Braia, outros tantos em Infandre, na estrada para Bissorã. Pois nos dois ataques de Janeiro, os guerrilheiros atacaram simultaneamente Mansoa, Braia e o Jugudul, com uma finalidade simples, fixar a tropa de Mansoa dentro do quartel enquanto, com sucesso, concentravam meios sobre Braia e o Jugudul. 

Nesta última povoação visitada hoje pelo Spínola, queimaram mais de cem casas das cento e cinquenta existentes, e provocaram uma dezena de mortos entre a população. Nos nossos aquartelamentos, o costume, nem mortos nem feridos, só estragos materiais. Os homens do PAIGC não são capazes de tomar um aquartelamento português, mesmo pequeno e relativamente isolado como Braia ou o Jugudul. Atacam e fogem.

Esta zona aqueceu muito por causa da construção da estrada alcatroada que ligará a Bambadinca e a Bafatá, a segunda cidade da Guiné. Os guerrilheiros tentam impedir a construção de estradas e intimidar as populações que estão com as NT. A segurança nos trabalhos da estrada é levada a cabo por grupos de combate do Batalhão 4612, estacionado em Mansoa, e este nosso pessoal anda naturalmente nervoso, preocupado. (...)




Foto s/ nº > Constantino Veira da Rocha, sold cond auto, da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72




Foto s/ nº > Constantino Veira da Rocha com outro camarada


Foto s/nº > "O troféu" [presume.-se que este grupo seja de  militares da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72]


Foto s/ nº > "A tempestade" [ Instalações militares de Mansoa, depois de um temporal]


Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (1)


Foto s/ nº > "Guerrilheiro morto" (2)

Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74) > Fotos do álbum do Jorge Canhão, ex-fur mil, da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72 (Mansoa e Gadamael, 1972/74)-


Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados

Mansoa, 12 de Março de 1973


Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.

Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.

Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece. (...)


Mansoa, 19 de Março de 1973


Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPGs, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas. Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel. (...)

Mansoa, 13 de Maio de 1973


Esta manhã, dia 13 de Maio, na hora da missa e do adeus à Virgem de Fátima, tivemos uma surpresa. Todas as noites estamos à espera do tal ataque das tropas do PAIGC e ele não vem. Agora, em pleno dia, com todo o descaramento, resolveram chatear. Canhão sem recuo e morteiro 82 contra Cussaná, a 800 metros do centro do nosso quartel. Daqui reagiu-se com as armas do costume, obuses e morteiros. Eu, muito calmo entre a tropa, a ver a movimentação dos soldados, a nossa capacidade de resposta numa flagelação deste tipo. O ping-pong não teve consequências, nem eles acertaram, nem nós. Escrevo quase a brincar, hoje tudo isto foi inofensivo, não passou de barulho.

A vida sexual das NT. Dizem-me que aqui em Mansoa há uma puta negra que a troco de comida, ou algum dinheiro, abastece todo o Batalhão. (...)


[Foto à direita: O alf mil António Graça de Abreu  CAOP 1, de G3 e máquina fotográfica, na estrada Mansoa-Porto Gole, 1973. Foto de António Graça de Abreu]


Mansoa, 21 de Maio de 1973 


Eu não quero, mas só oiço guerra, vejo guerra, sinto guerra. Hoje foi pior -  já não sei bem o que é pior! -  do que os três comandos mortos pela explosão dos dilagramas, em Teixeira Pinto. Atacaram, emboscaram a coluna de Mansabá para Mansoa, aqui abaixo de Cutia. Ainda há menos de duas semanas lá passei quando acompanhei os nossos condutores e os dois grupos da 38ª de Comandos na viagem sem regresso para o David Viegas. Todos os dias a tropa se desloca para cima e para baixo, armada, evidentemente, mas quase à vontade. 

Esta tarde, às três horas foram emboscados, a dezassete quilómetros de Mansoa. Nos primeiros disparos houve logo quatro mortos, um furriel e três soldados da companhia de Mansabá que está a um mês de regressar a Portugal. A tropa daqui foi dar uma ajuda. Quando lá chegaram, os guerrilheiros tinham retirado após incendiarem um Unimog e quase destruírem um camião Berliet. Os feridos foram chegando a Mansoa, os hélis não os vão buscar ao mato, mas voam até aqui. De Mansoa a Bissau é zona pacificada pelas NT. Vieram dois hélis e três DOs.

É difícil imaginar o que é a chegada das viaturas carregadas de mortos e feridos, os intestinos saídos para fora das barrigas, os tóraxes atravessados por balas, braços cortados, estilhaços e sangue por todo o lado. Os companheiros de armas não conseguiam suster as lágrimas. Colocaram-se os rapazes destroçados em macas, prestaram-se os primeiros socorros possíveis, os frascos de soro, as ligaduras de ocasião manchadas de sangue. Dez soldados, todos brancos, alguns em estado gravíssimo, foram evacuados para Bissau. Estive no transporte dos homens da enfermaria para a pista, para o heliporto. Sujei as mãos, a farda de sangue. Nunca tinha sentido a boca tão seca e, na garganta, uma espécie de coágulo de poeira e sangue.

A vida continua para os que continuam vivos. (...)

Mansoa, 11 de Junho de 1973

Dois pelotões da 38ª. de Comandos foram dar uma ajuda à tropa do batalhão que fazia a segurança nos trabalhos da estrada Jugudul-Bambadinca e foi flagelada. Houve contacto com o IN e os Comandos, que não sofreram feridos, fizeram quatro mortos. Para o CAOP, trouxeram as armas dos guerrilheiros, três Kalashnikovs e uma Simonov de fabrico russo e chinês. Eu escrevi:


Quatro armas frias,
puras do húmus da terra,
de sangue ainda fresco,
num pano de lona verde.

Uma a uma,
tomei nas mãos as Kalashs,
culatra atrás, bala na câmara,
patilha de segurança.

As armas dos homens que tombaram,
outra vez caídas,
silenciosas, mortas. 
 O canto doloroso da razão. (...)

_______________

Nota do editor:

25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11000: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (21): A morte de Amílcar Cabral e a mudança do CAOP1 para Mansoa

5 comentários:

Luis Faria disse...

Caro António Graça de Abreu

É sempre um prazer ler-te.

Abraço
Luis Faria

Luis Faria disse...

Caro António Graça de Abreu

É sempre um prazer ler-te.

Abraço
Luis Faria

Tony Borie disse...

Olá Luis.
Finalmente, alguém mencionou a minha terra de dois anos!.
Li, e lembrei o nome daquelas aldeias vizinhas de Mansoa, no que relatas do livro do António Graça, onde fala de Mansoa, o local onde estacionei dois anos e apelidei de "posto avançado de fronteira", pois era a partir daqui, que havia a verdadeira guerra, pois em Mansoa e vizinhança, resumia-se naquele tempo, a ataques nocturnos ao aquartelamento, e nós, que já tinha-mos alguns abrigos, era só fugir para eles, que com alguma sorte, íamos sobrevivendo.
Quase dez anos depois, os locais onde algumas vezes, durante o dia andava a passar o tempo, falando e convivendo com a população local, estava a "ferro e fogo", havia ataques, mortos, e até houve um temporal!.
Antes era tudo um pouco diferente, mas a partir do ano de estadia naquele local, já era um pouco difícil andar pelos carreiros, a que chamavam estradas.
O nome de Mansoa, traz-me sempre recordações, embora estas que mencionas, sejam de tristeza.
Um abraço.
Tony Borie.

Jorge Canhão disse...

Camaradas do blogue
é para fazer uma rectificação: na foto em que aparece um grupo de militares junto a uma árvore abatida para construção da estrada Jugudul/Bambadinca,são um grupo muito esquecido na guerra colonial,são eles os SAPADORES.Neste caso são da CCS do 4612/72,e neles reconheço o ex-alferes e ex-furriel Mendonça e Pauleta respectivamente,este ferido e evacuado para Portugal.
Fazem parte de um pequeno grupo da 3ª e CCS que de 3 em 3 meses,faz uma jantarada em Outurela-Oeiras
Abraços
jorge Canhão

Carlos Monteiro disse...

Estou nessa foto ao pé da arvore agarrar a cabeça a um camarada. Sou Carlos nuna mais vi os meus camaradas.