domingo, 17 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11265: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (4): Já não sei quem sou

1. Mais um poema enviado pelo Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)


Hospital Militar 241, Bissau

Porque já não sei quem sou
Já não sei p'ra onde vou
Mas também, não sei de onde venho!
Porque, aqui, já nada tenho
E não me venham com desdenho,
Dizendo que aqui é que é bom;
Só sei que tudo é efémero.
E nada muda de tom,
Aquilo que apalpo e vejo,
Tudo morre e tudo nasce
Que nada é o que parece;
Aqui me sinto enganado,
De tanta beleza enojado,
Que, como vem, desaparece;
E, ao passar para o outro lado,
Nada me acompanhará,
Deixarei tudo por cá
Para outro que virá!?
E assim parto sem saber
O que andei aqui a fazer!
E nada me fazer crer
Porque andei sempre enganado!?
marques de almeida

CCAÇ 2548
BCAÇ 2879

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11232: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (3): Homenagem à minha lavadeira em Farim

3 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Ricardo... De repente lembrei-me do José Régio e do seu "Cântico Negro", que em noites de longa espera, entre dois uísques, e muitos cigarros, deve ter ecoado por alguns dos buracos onde (sobre)vivemos... LG

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Cântico negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

Fonte: Com a devida vénia...

http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp

Gumerzindo Caetano da Silva disse...

Bom dia meu Caro Ricardo.O grande poeta de Jubembem.Obrigado por estes momentos de leitura.Creio que tenho o meu computador novamente em ordem estou a faser um teste.Um abraço.Caetano da Silva.Cuntima,71/72.

Anónimo disse...

Caro camarada Ricardo

Pões no papel e em verso muito do que andava pelas nossas cabeças naqueles dias de angustia em que não sabíamos o que podia acontecer no segundo seguinte.Obrigado.

Um abraço

Manuel Carvalho