quinta-feira, 14 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11250: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (8): O meu "25 de Abril"

1. Em mensagem do dia 6 de Março de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma crónica para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné) 

 


8 - O meu 25 de Abril

No dia 25 de Abril de 1974, logo pela manhã, com uma molhada de documentos debaixo do braço, dirigi-me como de costume, à repartição que possuía o selo branco do CTIG (1ª, 2ª ???) a fim de o apor, nas assinaturas do Brig. Alberto da Silva Banazol, Comandante do CTIG.

Esta repartição era chefiada por um Major do SGE, já de meia-idade e de quem já não me recordo o nome.

Eram talvez 9h30 da manhã, estava eu muito entretido a "trincar" o Banazol com o selo branco e entra o Capitão Cirne (julgo que Miliciano) e, virando-se para o Major, de braços abertos e punhos cerrados "grita", mais ou menos em surdina:
- "vive la revolution, vive la revolution!" - e continua: - O Marcelo refugiou-se no Quartel da GNR, no Carmo e está cercado pela tropa!

Claro que orientei logo as "antenas" para o Capitão Cirne e aguardei o desenvolvimento da conversa, mas este deitou-me um olhar que transparecia alguma felicidade, mas algum receio também, e diz:
- Furriel ...! - como quem diz: - Tem lá calma pá e vê lá o que vais para aí espalhar!.

A conversa pareceu-me ter alguma consistência e como, umas semanas antes, tinha havido aquele episódio da coluna das Caldas da Rainha que avançara sobre Lisboa, fiquei intrigado e, na CSJD tratei de contar aos meus camaradas o que tinha ouvido e aguardar algum "feed back".

Nessa altura já o tal 1º Sargento, a quem o Major Lobão chamava de "gebo", tinha terminado a comissão e tinha sido substituído por um 1º Sargento que usava sempre chapéu de pala. Em 18 meses de Guiné, julgo nunca ter visto nenhum militar do Exército usar chapéu de pala.
O homem tinha mesmo queda para polícia e, tendo ouvido o meu relato, tratou logo de dizer:
- Tenha cuidado com o que anda para aí a dizer, que ainda pode ter chatices.

Claro que eu traduzi para:
- Põe-te a pau que eu conheço uns gajos na Pide e não tarda nada vais até Guiledje tomar conta daquilo sozinho!

Enfiei a viola no saco.

Entretanto o «PIFAS» (Programa de Informação das Forças Armadas - julgo que era assim) dedicava-se à música sinfónica, o que fazia pensar que efectivamente havia qualquer coisa no ar, embora ainda se tivesse ouvido, nesse dia, um discurso qualquer do Ministro dos Negócios Estrageiros - Dr. Rui Patrício. Mas, pasmem-se, também se ouviu, aqui e ali, alguma música do Zeca Afonso! Das mais suavezinhas, é certo, mas - alto lá, que aqui há coisa!

Aguardávamos com alguma ansiedade pela hora do almoço, altura em que o «PIFAS» transmitia um serviço noticioso mais elaborado.
Na messe de Sargentos havia uma aparelhagem de som com várias colunas espalhadas pelo recinto - Bar, Esplanada e Sala de Jantar.
Na sala de jantar as mesas eram para 4 pessoas e, embora não houvesse lugares marcados, os "habitués da casa" sentavam-se sempre nos mesmos lugares.

Numa mesa à minha direita, com outra de permeio, sentavam-se quatro camaradas sui generis, já que dois deles eram completamente fanáticos pelos seus clubes (um do Belenenses e outro do Sporting) discutindo constante e acaloradamente sobre futebol e, os outros dois, aguentavam impávidos e serenos.
O fanatismo era de tal ordem que, tanto um como outro, chegavam ao ponto de relatar com algum pormenor a vida dos futebolistas do seus clubes (onde e quando nasceram, onde moravam, que clubes representaram e em que ano, etc., etc.) numa demonstração de grande cultura futebolística.

Pois naquele dia 25 de Abril de 1974, à hora do almoço, quando toda a gente, em silêncio, aguardava com alguma ansiedade novas de Lisboa sobre o que por lá estaria a passar-se na realidade, estavam aqueles dois "fabianos" em acesa discussão acerca, provavelmente, da cor das cuecas que determinado jogador usou no jogo tal, marimbando-se completamente para o que se estava a passar na Capital do Império!

Nesse dia foram-se adensando as suspeitas de que algo de importante se estaria a passar em Lisboa. Aos poucos as notícias foram chegando, mas nada de oficial. Eram transmitidas de boca em boca e, nessa situação, não havia que fiar e continuava-se a combater no mato.

O Brigadeiro Alberto da Silva Banazol, estaria a banhos na Ilha de Bubaque, mas tardava em aparecer.
O General Bettencourt Rodrigues nada dizia.

Começa a "boatice". Que houve um golpe de Estado liderado pelo Gen. Spínola..., que o Gen. Bettencourt estava contra..., que íamos ficar sem reabastecimentos de Lisboa..., etc., etc..

Baixou a qualidade da alimentação... Faz-se um levantamento de rancho... Fazem-se reuniões por tudo e por nada... A confusão é mais que muita...

O Brig. Banazol desaparece... O QG/CCFAG - Amura é cercado e o Gen. Bttencourt preso.

Em Bissau os estabelecimentos são pilhados... É reforçado o pratulhamento nas ruas... A sede da Pide em Bissau corre perigo ...

Sou escalado para Sargento de piquete e, à noite, põem-me uma HK-21 nas mãos e o respectivo pente de balas... Não sei o que hei-de fazer com aquilo... Mandam-me com mais 6 homens fazer segurança à Pide/DGS... Eu sou Amanuense, mas ninguém quer saber... Eu também já não quero saber... Só quero que ninguém me chateie...

E lá vou eu!

Coloco o pente de balas ao pescoço e cruzo-o no peito, qual Pancho Villa liofilizado.
Seguimos de Unimog em direcção ao objectivo - Sede da PIDE/DGS, em Bissau.

Lá chegados, havia que montar o dispositivo de segurança... Começam os problemas... Nas Caldas da Rainha tinha tido uma formação em HK-21 de cerca de ... 10 minutos e recordava-me bem de como colocar a arma com o tripé no chão, mas como se metia o pente, aí é que já era pior..., tinha-se-me varrido completamente.

Um homem nunca se atrapalha:
- Há aqui algum atirador?
- Eu sou!, responde alguém.
- Então monta lá isso e anda para aqui!

O equipamento estava montado no meio da ruela que passava por detrás da DGS. Havia agora que colocar estrategicamente o pessoal, e assim fiz:
- Sentem-se aí nesse canto e façam pouco barulho - (estratégia para não espantar a caça).

Entretanto, como já me estava a dar o sono por ouvir ressonar, levantei-me e fui andar um pouco para perto da HK, não fosse alguém a "gamar", e vi uma caixa de papelão que me deu uma ideia genial!

A HK ali sozinha, montada no chão, não fazia muito sentido. Era conveniente pôr lá um homem a apontar para qualquer lado (o factor psicológico é muito importante nestas ocasiões). Como a arma me tinha sido entregue a mim, parecia-me óbvio que o homem seria eu. Mas eu sou pacifista e, além disso, tinha de me deitar no chão e ia sujar-me todo naquela terra barrenta.

Desfiz a caixa de papelão e fiz uma espécie de tapete que coloquei atrás da HK.
Chamei o atirador e disse-lhe para se deitar que a cama já estava feita.

E ali estava, em todo o seu esplendor, uma segurança com preocupações estéticas, de higiene e de conforto.

E foi neste quadro burlesco que a força que nos veio render nos encontrou, às 4 horas da madrugada, não se tendo registado qualquer incidente.
____________

Nota do editor

Vd. último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11201: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (7): Patrulhamentos no Pilão

8 comentários:

armando pires disse...

Mais.
Quero mais. Quero ler o resto.
ap

Anónimo disse...

Ironia do destino ! E as coisas a correrem tão perto de ti,camarada .Bastava dares uma mirada ao Agrupamento de Transmissões ,mesmo aí ao lado do QG, onde desde as cinco da matina havia evoluções estranhas ...

Saudações amigas

F.Abreu

Abílio Magro disse...

Camarada F. Abreu:
Realmente lembro-me de qualquer coisa que se terá passado no Quartel de Transmissões, mas não faço a mínima ideia do que foi.
Porque não aproveitas a deixa e "botas pr'aí faladura"?
A malta ia gostar de saber.
Abraço

Luís Graça disse...

Delicioso, Abílio!... Davas um grande psicólogo... Não há dúvida, o que conta, muitas vezes, na paz e na guerra, não é a realidade, mas a sua construção... Ou como a gente dizia na tropa, "as iludências aparudem"...

JD disse...

Caro Abílio,
Não és nada magricela na divulgação da piada da guerra. Lidas bem com o verbo, tanto, quanto com o substantivo e o adjectivo.
Foi assim que se formaram os militares, para o objectivo óbvio de não fazer maldades. E a mesma formação era dada aos que, através de notáveis exames psicotécnicos, eram seleccionados para as mais contundentes acções de defesa da Pátria. Aqueles dez minutos que referes, eram muito ben espremidos.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Pois..

Meu caro amanuense com as "mordomias" de Bissau,certamente não tinhas um radiozito a pilhas e com ondas curtas..bastou sintonizar a BBC..coisa que eu fazia várias vezes ao dia..lá "nos gadamael", às 7 da matina já eu estava a começar a ficar a par da coisa...

A tua guerra com a HK-21..é hilariante..com que então um papelão de protecção para o corpinho e respectiva farda..é a chamada guerra higiénica e limpinha o que só fica bem a um verdadeiro amunense..perdão amanuense.

Ah...a pide merecia mesmo uma segurança altamente qualificada e profissional que só um amunuense poderia fazer.

Um alfa bravo

C.Martins

Hélder Valério disse...

Caro Abílio

Foste para a 'liquidatária', não tens grandes histórias de emboscadas, ataques, etc., mas nem por isso se pode dizer que tivesses uma comissão monótona.
Para um 'amanuense, porra!'acabaste por estar envolvido em vários momentos interessantes e dos quais tens vindo a dar conta à medida que as tuas recordações se vão revelando.

Esperamos por mais,

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

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