terça-feira, 12 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11243: Do Ninho D'Águia até África (57): Andava desesperado (Tony Borié)





1. Quinquagésimo sétimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 57


Aos vinte e três meses de estadia no aquartelamento em Mansoa, o Cifra andava num desespero quase fora de controle, continuava a fazer as suas tarefas militares, mas o seu tempo livre era passado em actividades que lhe fizessem esquecer um pouco o local onde se encontrava.

O seu grupo de amigos estava nas mesmas condições, andava revoltado, pouco se comia, bebia-se muito, fumavam-se cigarros feitos à mão e  falava-se pouco. Quando falavam, as palavras saíam da boca mal pronunciadas e com alguma agressividade, parecendo mais que discutiam, não tinham cuidado com a sua higiene pessoal, tinham todos um aspecto de militares quase abandonados, o rádio portátil era um seus melhores companheiros, mas também motivo de algumas zangas, pois alguns queriam sossego e outros só para contrariarem colocavam a música, ou notícias, o mais alto possível, aumentando a poluição sonora, já deveras alta no dormitório, estava a ser difícil viver em comunidade, estavam fartos de se verem uns aos outros.

Agora o procedimento era ao contrário, antes, quando os militares de acção, chegavam das patrulhas e operações, o Cifra perguntava como tinha corrido, agora, quando o Cifra entra no dormitório, logo lhe perguntam se tinha recebido alguma mensagem, ou se sabia quando embarcariam de regresso, até já havia boatos de que o Cifra “tinha dito”, ou os radiotelegrafistas diziam que tinham recebido uma mensagem do comando da capital da província, que era enviada ao comando do Agrupamento, com informação a todas as unidades que tinham quase dois anos de estadia e estavam estacionadas na zona do Oio, portanto o Cifra sabia, mas era um “traidor”, pois não dizia nada.


A mais pequena notícia de que “tinham ouvido”, ou o “furriel falou”, ou o Cifra estava sobre influência e disse “isto” ao Trinta e Seis, era logo alterada e já sabiam a data e tudo, alguns corriam logo direitos à zona da sua cama e começavam logo a fazer e refazer os embrulhos, sacos e malas, tudo na ânsia de saírem dali, alguns colocavam-se na posição de joelhos, com as mãos juntas viradas para cima, e numa linguagem que mais parecia um choro, com uma cara transfigurada, mostrando alguma angústia, cantavam:

Avé, Avé, Avé Maria!,
Vou sair daqui,
E Deus me alumia,
Está quase a chegar
O bendito dia,
Vai tudo correr,
Tal como eu queria,
Obrigado Mãe,
Minha Virgem Maria!.

Depois, como não era verdade, voltavam à nostalgia, ao desânimo e atiravam mesmo com os embrulhos, sacos e malas para o chão, dizendo mal dos comandantes, dos tiros, das granadas, das bolanhas, dos calções rotos, do café, do arroz com peixe da bolanha, do calor, do governo que os mandou para ali e gritavam alto:
- Isto é um inferno! Quero ir embora daqui! Filhos da puta!

O Cifra começava a evitar ir para a tabanca, onde tinha algum carinho, pois já sofria a ausência das pessoas, que embora vivendo numa profunda miséria, tinham alegria, tinham muito bons sentimentos, eram sinceras e talvez derivado ao ambiente natural onde viviam, eram puras, e como o Cifra já disse por diversas vezes, eram um pouco parecidas com gazelas, pois só depois de verem os sentimentos de outra pessoa estranha, cheirarem o seu corpo e sentirem o sabor da pele, é que se dedicavam, mas quando isso acontecia, não mais largavam essa pessoa, pois já a consideravam parte da sua família.

O Cifra sofria, andava desesperado, andava confundido, não sabia se estava contente por regressar a Portugal ou triste por abandonar as pessoas que já considerava família.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11221: Do Ninho D'Águia até África (56): ...tudo parecia redondo (Tony Borié)

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