sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11075: (Ex)citações (209): O fanado, visto por colons e colonizados...(António Rosinha / Cherno Baldé)



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Darsalame (vd. carta de Cacine) > Festa do fanado ou cerimónia de iniciação dos jovens em Darsalame.  Foto da Galeria da AD - Acção para o Desenvolvimento, em Bissau, e parceira do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Esta foto foi tirada em 15 de abril de 2009 usando uma Canon Digital IXUS 90 IS. Foto reproduzida com a devida vénia...

"À semelhança de muitas outras etnias, os jovens balantas fazem das cerimónias de iniciação, os chamados Fanado, momentos importantes da sua vida.

É nesta ocasião que lhes são transmitidos os valores individuais e colectivos tradicionais, os segredos que devem guardar, as normas de conduta social, as leis comunitárias e onde os jovens fazem prova da sua coragem e valentia, relatando e demonstrando actos relevantes praticados antes de entrarem para o Fanado.

Durante cerca de 2 meses, os jovens recolhem-se no meio do mato, na barraca do fanado, onde ninguém os volta a ver, limitando-se as respectivas famílias a levar a alimentação de que necessitam. Antes de entrarem, os jovens brincam, fazem jogos e danças, mostrando os seus trajes de rebeldia, muito apreciados por toda a população."

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados.

1. Comentários do António Rosinha e do Cherno Baldé ao poste P11070:

(i) António Rosinha:

Estas práticas cerimoniais africanas que hoje se pretende eliminar, eram praticadas no tempo colonial, discretamente, um pouco às escondidas das autoridades coloniais, no caso das ex-colónias portuguesas.

No caso da Guiné, após a independência, passaram a ser praticadas publicamente e com datas próprias assinaladas pelas próprias autoridades.

Só que passou a ser testemunhado passivamente, como se fosse um inofensivo folclore, durante décadas pela UNICEF, OMS, AMI, MSF, médicos e paramédicos de Cuba, que apoiavam aquelas autoridades sanitárias incondicionalmente.

Só agora? antes tarde que nunca.

Antº Rosinha

(ii) Cherno Baldé:

Caros amigos,

Este tema já aqui foi objecto de discussão mas nunca é demais voltar a rebatê-lo pois é importante a sensibilização das pessoas a volta dos nossos problemas sociais e culturais.

Sobre esta problemática já Cabral nos dizia, mais ou menos nestes termos: "devemos manter os aspectos bons da nossa cultura, mas devemos combater e abandonar os que concorrem para manter o nosso povo no atraso e no obscurantismo".

Claro que na altura não tinham declarado guerra aberta a estas práticas, suponho que, pelas mesmas razões porque o Governo colonial não o fazia.

Do meu ponto de vista a excisão feminina resultou, históricamente, de uma simples transposição da circunscisão (fanado masculino) por iniciativa e vontade próprias da mulher, como uma instituição social de purificação, como diz o Luis Graça e também de educação ou socialização das meninas para o exercicio da função e do papel de mulher e como tal não podia ser anterior a islamização do mesmo modo que a circunscisão resulta de uma prática bem conhecida e intimamente ligada a religião que remonta até Abraao, este é o primeiro ponto.

Mas, ao mesmo tempo, a excisão feminina não resulta de nenhuma imposição ou fanatismo religioso como, erradamente, se pode pensar e o "fatwa" proferido pelos Imames no Parlamento, é demonstrativo deste facto. Da mesma forma que também ela não resulta de uma discriminação ou imposição dos homens em relação as mulheres nas nossas sociedades.

A luta contra a MGF, antes de mais, deve ser travada no seio da própria camada feminina, mas também no campo do desenvolvimento integral do Homem em geral (homens e mulheres) e, sobretudo, no dominio da educação.

Lembro que o meu pai não era letrado e vivia no campo, mas o simples contacto com comerciantes Lusos (portugueses e Caboverdianos) nos anos 60 foi o suficiente para abrir os olhos e mudar a sua filosofia de vida e o caminho escolhido para os seus filhos numa época em que as forças do obscurantismo ainda reinavam.

Assim, para as novas gerações da Guiné, a batalha contra a MGF e as práticas culturais consideradas nefastas só poderão ser ganhas se o combate contra a pobreza e o analfabetismo for encarado com firmeza e determinação, mas para isso precisamos de mais e melhor organização, de mais e melhor estado que possa conceber politicas e fixar metas que sejam económica e socialmente exequíveis.

Bem, depois de todo esse trabalho, esperamos que, a seguir, não nos venham a dizer para legalizarmos o casamento gay porque, convenhamos, isto dos direitos humanos pode ser uma verdadeira caixa de pandorra.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11049: (Ex)citações (208): Monóculo de Spínola oferecido ao Museu Etnográfico de Silgueiros - Viseu (Amaral Bernardo)

7 comentários:

Luís Graça disse...

A expressão 'colon' é utilizada pelo Antº Rosinha, em sentido auto-irónico... Nunca ele foi um 'colon', apenas um português das sete partidas... E depois da independência da Guiné-Bissau trabalhou como topógrafo da TECNIL... Tem uma especial sensibilidade (que eu chamo sociocultural) em relação a África e os africanos...

Nem o nosso Cherno Baldé, a quem eu trato por amigo e irmão, é um "colonizado", mesmo que ele tenha aprendido a falar a língua que hoje nos une, como "puto rafeiro", infiltraddo no quartel de Fajonquito, nos anos 60/70...

O título do poste é apenas um convite ao diálogo intercultural... E este só pode ser feito se nos colocarmos, todos, hoje, ao mesmo nível de igualdade, ou seja, no plano em que todos temos (e estamos) a prender com todos...

Torcato Mendonca disse...

ALTO LÁ!

Este assunto já foi debatido aqui no Blogue para,tentar com isso, ajudar a abolir a M G F .
A excisão feminina,como se pratica é crime em muitos Países, incluindo o nosso ( pena de 3 a 10 anos de prisão? não sei ao certo), só pela pratica. Se da mesma resultar morte certamente a pena terá o respectivo agravamento.
Aqui defendeu-se essa hedionda prática.

É, quanto a mim assunto a debater com saber no tratamento e linguagem comedida.Tema muito delicado. Para mim revolta-me. Estamos a falar de um crime na sua prática.

Li o que o meu amigo Cherno escreveu e dou-lhe os meus parabéns. Se me o permites subscrevo - lá o casamento gay é assunto dispensável aqui-. Complexo.

Não me alongo e já escrevi demais. Que tema destes, a MGF, não sirva de propaganda.

Abraços T.
---ps: considero a escrita de ontem do Luís Graça -Académica - e muito bem.
O Carlos Vinhal escreveu bem e com o seu sentir, a sua frontalidade.
Que tenho eu que escrever este ps?Nada!

Luís Graça disse...

Obrigado, Torcato, pelo teu conselho sábio e sereno, próprio de um senador da Tabanca Grande...
Este, em especial, mas também muitos outros temas e problemas que por aqui têm sido debatidos - ao lonho de uma longevidade de 9 anos! -, são (ou devem ser) tratados com saber, conhecimento de causa, e linguagem comedida... Agora vou dar aulas até às 22h. Desejo-te um bom fim de semana. Dizem que é Carnaval...

antonio graça de abreu disse...

Fanado e excisão feminina são coisas diferentes. Ou estarei enganado? Os balantas, os manjacos privilegiam o fanado com os rapazes de 10 ou 12 anos, mas não não há mutilação feminina. Ou estarei enganado?
A mutilação genital feminina está mais ligada às etnias que seguem o Islão e faz-se em meninas com um ou dois anos de vida. Ou estarei enganado?

Abraço,

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

António, aproveito um intervalo da aula para responder à tua pertinente pergunta: fanado é termo crioulo que sempre ovi na Guiné, no leste. Mas vem do português: fanado=circuncido... Fanar=fazer a circuncisão.

A festa do "fanado" é um ritual de passagem, aplicável a miúdos e miúdas, na idade da puberdade... O "fanado" não se resume à circuncisão. Estamos a tomar a parte pelo todo. E a "medicalizar" uma prática que é cultural e milenária... A circuncisão, masculina e feminina, é um dos momentos altos da cerimónia, em que os rapazes e as raparigas passam a ser aceites pela comunidade como homens e como mulheres, podendo casar e ter filhos... As cerimónias são completamente separadas.

Em África (e nos povos semitas, os árabes e os judeus) a circuncisão masculina é obrigatória. Nos povos animistas da Guiné também se faz: balantas, por ex...

O termo (científico, técnico, jurídico, erudito, consagrado pelas Nações Unidas, UNICEF, OMS...) Mutilação Genital Feminina ("Female Genital Mutilation", em inglês) é o equivalente à circuncisão feminina, excisão, sunna, fanado (não se distingue o género)...

Como estive no leste e lidei muito com os fulas (mas também um pouco com os mandingas), sempre me interessei por este problema (que era completamente ignorado pelas nossas autoridades incluindo os médicos, e que tem várias vertentes: cultural, sanitária, económica, ética, jurídica...

Um Alfa Bravo. Luis

PS - Há um homem no mundo, o alfero Cabral, que se gaba te ter assistido ao "fanado" das meninas de Fá Mandinga, que lhe terá custado os olhos da cara...

Torcato Mendonca disse...

PALAVRAS PARA QUÊ???

RESPOSTA NO P11078

Ab T.

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Luis,

Como podem notar, sempre que os debates coincidem com os fins de semana, normalmente, eu estou fora porque nao consigo acompanhar em casa por falta de net.

Nao tenho qualquer problema com o titulo, no fundo eu fui e nao fui colonizado, da mesma forma que fui e nao fui Portugués, porque durante a minha infancia as caracteristicas e as formas mais ultrajantes da colonizacao estavam a ser abolidas, em consequencia da guerra do PAIGC e da politica em contra-accao "por uma Guiné melhor" do Gen. Spinola.

Concordo com os pontos de vista, teus e dos outros, exceptuando talvez, o aspecto relativo as origens da MGF: Antes ou depois da islamizacao?

Relativamente ao fanado masculino na Guiné, nao ha que hesitar, é pratica corrente em todas as etnias. Até aqui os Balantas tinham a particularidade de o praticar em pessoas de idade madura, quase velhos, mas actualmente com tendencia para mudar e cada vez sao mais jovens.

Como disse o Eng. Pepito, com a nova geracao esta pratica esta condenada a acabar em definitivo, mas a(s) sociedade(s) precisa(m) encontrar sistemas alternativos de continuar a educar e preparar as jovens para a vida adulta que so podera ser feito atraves do acesso ao ensino e a formacao para todos.

Um grande abraco,

Cherno Baldé,

PS: O Alfero nativo introduziu-se na intimidade do fanado das mulheres em Fa, convencido que se tratava de uma sessao de massagens as mamas firmes de cuja pratica era um especialista.