domingo, 3 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11048: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5): O dia em que a minha mala voou

1. Em mensagem datada de 30 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861,Bula e Bissorã, 1969/70) enviou-nos mais uma das suas histórias:


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5)

O dia em que a minha mala voou

A coluna estava pronta para se pôr em marcha. À frente o rebenta minas, logo atrás uma das Panhard’s do EREC 2454, depois um Unimog com munições para o Óbus 14 e as restantes viaturas.

Eram seis camionetas civis que, vindas de Bissau, tinham sido cambadas, uma a uma, através do Rio Mansoa para João Landim e daí escoltadas até Bula, onde foi organizado o comboio militar que iria levar os reabastecimentos ao aquartelamento de Binar.

Além das Panhard’s, a da frente, outra colocada a meio e uma terceira a fechar a coluna, acrescia à segurança o 2º grupo de combate da CCAÇ 2466.

Cheguei-me à frente para tomar lugar no Unimog das munições. Fui para me sentar ao lado do condutor mas estava lá o Alfredo Miranda, soldado radiotelegrafista da minha CCS. Arrepiei caminho, mas ele, saltando da viatura, gritou-me:
- Ó Furriel, venha para aqui que eu vou lá atrás.

Seguiu-se, entre mim e ele, um jogo de cortesia, muito estranho para aquela hora da manhã e para aquelas circunstâncias, com o Miranda a querer dar-me o lugar e eu a dizer-lhe que não senhor, vai tu aí que lá atrás sento-me eu, a coluna presa, salvo seja, por tanta cerimónia, quando ele encontrou uma solução:
- Ó furriel Pires, então deixe ir aqui este nosso furriel que vem agora do hospital.

Sentei-me atrás, no chão do Unimog que ia sem taipais, com a chapa de matrícula a servir-me de apoio para os pés. Ao meu lado o Miranda e o Carlos Senra, também soldado radiotelegrafista da CCS. Dois homens do Norte, do Porto, com um sotaque daqueles nascidos e criados às portas do Bolhão.

Eram assim uma espécie de Roque e a Amiga. Sempre juntos.

Estiveram ambos em Binar, durante cerca de mês e meio, ao serviço da CCAÇ 2404, em substituição de dois radiotelegrafistas que tinham ido a consultas médicas em Bissau. Por lá fizeram e deixaram amizades, a tal ponto que sempre que havia uma coluna lá iam eles contribuir para o aumento das receitas do bar.

Iniciámos a nossa marcha e o Miranda explicou-me quem era o furriel a quem cedemos o lugar, lá à frente. Era um operacional da 2404 que fora ferido com estilhaços de um roquete, tinha sido evacuado para o Hospital Militar de Bissau e agora, que tivera alta, estava de regresso à sua unidade.

Contou-me ainda o Miranda que tinha saído com eles numa operação de segurança aos trabalhos de campinagem na estrada Binar, que deram voltas e mais voltas mas campinadores nem vê-los. Talvez porque… a única coisa que viram, ouviram e sentiram, foi a chuva de balas e de granadas que sobre eles choveram, vindas do lado do Choquemone. O tal furriel, que estava ali “mesmo à beira” do Miranda, foi atingido por vários estilhaços mas, felizmente, sem gravidade de maior.

Até se lamentou o Miranda que o rapaz era um dos “convocados” para a futebolada que, à tarde, iam ter lá em Binar. Cabe aqui dizer que o Miranda era bom de bola. Um centro campista com peito para o que fosse preciso, com pés capazes de meter a bola onde fosse necessário. Ou não tivesse sido ele da escola do grande “salgueiral”, o Sport Comércio e Salgueiros de belas memórias.

O Carlos Senra, que ia ali ao lado, é que não era metido na conversa. Bola para ele, só se fosse daquelas de Berlim.

Íamos nestas divagações, passámos a mata dos cajueiros, acenei ao Teixeira, o meu soldado maqueiro que saíra, ainda noite, com três secções da 2466 que ali emboscaram, em segurança aos sapadores que foram picar a estrada, aproximávamo-nos daquela mata, à esquerda da estrada, onde já “cheirava” a Choquemone, quando pelo ar viajou até nós o som cavo da saída de uma morteirada.

Impulsionado pela travagem brusca do Unimog e pela acção que exerci com os pés na chapa de matrícula, voei sei lá que distância nem com que peso bati no chão.

De um lado e do outro, o fogo era intenso.

Chamaram por mim e eu procurei a minha mala de enfermeiro.
- A mala, porra? Onde é que está a mala?
- Qual mala, furriel? – era o Miranda a perguntar.
-A minha mala, merda. Tenho ali um ferido e não sei da mala.
- Furriel, está aqui – foi o Senra a descobri-la.

Mas a mala estava vazia. No descontrole do voo fui acompanhado pela mala. Pelo ar perdeu-se tudo o que lá ia dentro.

Então, o Miranda, o Senra e eu, naquela posição em que é mister dizer-se que foi como a Alemanha perdeu a guerra, começámos a procurar e a juntar frascos de soro e garrotes, “saiam daí, merda”, ligaduras e maços de algodão, e o fogo não parava nem de um lado nem do outro, ampolas de anticoagulantes e de narcóticos analgésicos, “saiam daí”, gritava a voz, mas o Miranda e o Senra não paravam de me ajudar a apanhar tesouras, pinças e o mais que eu precisava, porque tinha ali um ferido à minha espera.

Consta do relatório de operações que aquela emboscada durou trinta minutos. E todavia, do nosso lado apenas um ferido sem grande gravidade e um outro militar com um tornozelo de todo o tamanho.

Enquanto se “limpava” o terreno, o capitão Monge, do EREC 2454, que comandava a coluna, sugeriu que dada a pouca gravidade do ferido, e a relativa pouca distância a que estávamos de Bula, em vez de se perder mais tempo com a chamada de um heli para a evacuação, que eu levasse o ferido e o coxo a Bula, num Unimog, com uma Panhard a proteger. Lá fui, e avisado pelo rádio o Machado, meu cabo enfermeiro, veio ao caminho, na ambulância, recolher os dois homens.

Eu voltei à coluna que já estava, de novo, a meter-se em marcha.

Mal chegados ao canal da bazuca, tornámos a encher.

Ainda hoje não sei quem lhe deu o nome nem porque foi que lho deram. O assim chamado canal da bazuca, era um trilho aí com uns duzentos metros, ladeado de árvores, o que lhe dava um aspecto de túnel, que ido da estrada desembocava dentro da mata do Choquemone. Era, por assim dizer, o ponto de encontro com o IN.

Aqui voltámos a ter feridos. Dois, já com uma certa gravidade. Mas do lado do PAIGC as perdas foram grandes e uma delas de enorme significado.
Foi abatido o capitão Nhaga, chefe do 1º bigrupo do Choquemone, e feitos prisioneiros os dois homens que tentavam resgatar o corpo.

Desta vez não houve que sopesar circunstâncias.

Eu com os feridos num carro, o corpo do Nhaga e os dois prisioneiros noutro, regressámos a toda a velocidade para Bula. À tarde, quando a coluna regressou de Binar, o Miranda passou pela enfermaria a cumprimentar-me:
- Então furriel, está tudo bem? Olhe que você teve uma sorte do caraças. Acabámos por embrulhar a terceira vez.

Não era preciso ele dizer-mo. Eu tinha sabido via rádio. Tinha sabido, sobretudo, que dessa vez não tivéramos baixas. Mas lá que foi uma manhã complicada, ai isso foi.


Infelizmente, há já alguns anos que o Carlos Senra nos deixou. Mas o Miranda, o Alfredo Miranda, está aí na sua cidade do Porto, muito debilitado na sua saúde, mas a malta da Gloriosa Tabanca de Matosinhos já foi umas três vezes a casa buscá-lo, para que com eles partilhasse as memórias e a camaradagem que teimamos em não querer perder.
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores

9 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Armando Pires

Há dias assim, em que o ditado se cumpre.
Qual ditado? "Não duas sem três"!
E tu, meu ribatejano, fadista, devias saber isso!
Por isso devo considerar que te 'baldaste' à terceira! Não se faz!
Onde está o espírito de solidariedade ribatejano?

Pronto, sei que há a atenuante do material de enfermagem ter ficado espalhado e certamente que durante a sua recolha ficar a precisar de ser desinfectado etc. e tal, mas mesmo assim....

Um abraço
Hélder S.

armando pires disse...

Ó Valério.
Mas não digas nada, pá.
Não me estragues a reputação.
armando pires

Luis Faria disse...

Caro Armando Pires

"Canal da bazuca",sinónimo de respeito,atenção e prevenção!

Estrada de Binar,dividia-se a picagem por Bula e Binar.Não era uma zona agradável!Foi asfaltada no meu tempo,creio de reordenamentos.
Um abraço

Luis Faria



Luis Faria disse...

Caro Armando Pires

"Canal da bazuca",sinónimo de respeito,atenção e prevenção!

Estrada de Binar,dividia-se a picagem por Bula e Binar.Não era uma zona agradável!Foi asfaltada no meu tempo,creio de reordenamentos.
Um abraço

Luis Faria



armando pires disse...

Caro Luís Faria.
Muito obrigado pelo0 "aditamento". De facto, também no meu tempo a picagem era feito "pelos dois lados". Não o referi no meu texto por pensar acrecentar muito pouco à história. Mas, de facto, e depois de ter lido o comentário aqui feito pelo camarada Helder Valério, que me "provocou", evidentemente, percebi que me faltou uma explicação. Que não é de todo dispicienda. Qual seja, no segundo contacto, quando tivemos os três feridos, eu regressei a Bula com eles, deixando a coluna, pela simples razão de que, a partir daquele ponto, ela contava com o apoio do enfermeiro que estava no grupo de combate que fazia segurança aos sapadores vindos do lado de Binar. Eis como estes comentários têm, para além do mais, a vantagem de nos ajudar a corrigir o que à memória não ocorreu.
Ujma vez mais obrigado e um abraço do
armando pires

Anónimo disse...

Caro Amigo Armando Pires, recordar e viver não duvidemos. Manda mais, mas deixa que te diga, que enfermeiro a sério era o da minha CCAÇ 1422. Tal como tu era um despistado, mas sabia um segredo que não revelou e que era o seguinte: Na falta de whyski, ele fazia-o e nós bebíamo-lo. Penso que era feito com o "1214" e água destilada.
Abraços e deves ter muitas mais coisas a escrever. Assim sendo afinfa-lhe. Eu gostei.
De Veríssimo Ferreira !

Hélder Valério disse...

Pois é, meu amigo conterrâneo ribatejano.... a propósito, comungas daquela opinião de que "Portugal é Lisboa e o Ribatejo, é resto é paisagem!"?
Eu concordo, embora considere que se tratam de paisagens únicas, lindas, seja o Alentejo, a Costa Vicentina, o Algarve, o Porto, etc....

Agora em relação à 'provocaçãozinha' acho que correu bem!
Novas e melhores explicações!
'Informações' complementares por parte do Veríssimo!

Já agora, e em termos de 'criatividade' em cuidados de enfermagem, sempre te digo que também 'colaborei' na distribuição de calmantes, comprimidos de sal para funcionarem como 'placebo' no rescaldo duma malfadada operação em Fevereiro de 71 em Piche, quando o pessoal regressou da mesma massivamente em depressão. E colaborei porque os enfermeiros também não estavam em grande forma...

Abraço
Hélder S.

armando pires disse...

Ó Hélder, e tu a dar-lhe.
Numa próxima já te conto quem foi que eu fui encontrar a dar injecções no posto de socorros.
armando pires

JD disse...

Ganda Pires!
Está aqui uma linda peça, sim senhor. Não me atrevo a fazer apreciações técnicas ao desentolar da coluna, conjugadas com as dificuldades que sentiste, para não vir de algum lado um tal de Helder, esgrimista de nomeada, trinchar-me a mioleira, só porque não sei onde fica "aquele" Portugal.
Um valente abraço
JD