quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11029: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (3): Sargento da Guarda ao QG do CTIG

Messe de Oficiais do Quartel General em Sta. Luzia, hoje transformada em Hotel. Ainda dá para ver parte de uma mangueira das muitas que ladeavam os arruamentos.
Foto e legenda: © António Teixeira (2011). Todos os direitos reservados


1. Em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou a terceira peripécia para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)

3 – Sargento da Guarda ao QG do CTIG

Como é sabido, um militar quando se apresenta numa nova Unidade é, de imediato, integrado na escala de serviço da mesma pois, embora colocado na CSJD, pertencia à CCS/QG/CTIG e fazia diversos serviços dependentes desta, tais como: Sargento da Guarda, de Piquete, rondas nocturnas ao Cupilom (vulgo pilão), segurança nocturna à Pide/DGS, etc., etc., tudo serviços adequados a um bravo e experimentado Amanuense.

Assim, sou escalado para Sargento da Guarda ao QG do CTIG logo no segundo dia após a minha “hospedagem no Biafra” e logo após uma noite mal dormida à custa das ”bazucadas”.

No QG da RML já tinha feito alguns “Sargentos de dia”, mas Sargento da Guarda ao QG nunca tinha feito, de maneira que, atempadamente, verifiquei o estado do camuflado, botas, etc. e deixei tudo prontinho, com o camuflado pendurado aos pés da cama para que na manhã seguinte pudesse partir para a “guerra” sem grandes sobressaltos e fazer uma Guarda de Honra condigna ao homem (Brig. Banazol).

Na manhã do dia seguinte levantei-me a tempo de tratar da minha higiene pessoal, barbinha feita, uma última olhadela às “botifarras” e, toca a ataviar como deve ser que o acto é solene!

Vesti as calças e nada de anormal, calço as botas e idem aspas. Quando visto o blusão, começa um batalhão de baratas, composto por algumas 10 companhias a bater em retirada em todas as direcções, tiro o blusão apressadamente, atiro-o para o chão enojado e…, que faço agora? Outro banho, não dá tempo, o outro camuflado deve estar na “Lavandaria”…, bom, pego no blusão, sacudo-o violentamente várias vezes e lá vou eu receber o homem. E se me sai uma baratona daquelas pela braguilha quando o homem se perfilar em frente à guarda?! Vai ser giro vai!

Lá se efectuou o render da Guarda com a pompa e circunstância que é costume e sem nenhum percalço a salientar e, quando entro na casa da Guarda tenho lá uma nota do 2º Comandante – Cor. Tir. Galvão de Figueiredo - a informar que, nas férias do Comandante ele, 2º Comandante, dispensava os “salamaleques”. O homem está de férias! Desta já me safei! A 2ª vez que estive de Sargento da Guarda, o homem ainda estava de férias e a “coisa” também correu de feição. À 3ª, o homem já regressara e, então, a “coisa” correu mesmo à moda de “um desgraçado de um Amanuense periquito, magricelas e que nunca na vida tinha feito os salamaleques a que um oficial-general tem direito quando chega à sua Tabanca”.

Resumindo: após o render da Guarda e hastear da bandeira, fiquei ali pelo portão aguardando que o homem chegasse para que nada corresse mal.

Passaram as 9h00, as 9h30, as 10h00, eu de camuflado, botifarras, 40º à sombra, humidade à volta dos 90% (um homem não é de ferro, carago!), decido entrar na casa da guarda e pôr-me debaixo da ventoinha. Mas os pés também estavam a cozer! Desaperto os atacadores e alguns botões do blusão, sento-me na cama e deixo-me cair para trás. Já estão a ver o filme, né? Foi tiro e queda!

Estava eu muito entretidinho a sonhar com …. (Já não me recordo, esqueçam), quando sou abruptamente acordado por uns abanões e uma voz aflita que bradava:
- “esfuriel, esfuriel, comandanti!”

Saio disparado sem sequer me lembrar dos atacadores nem dos botões do camuflado.

O PM que estava ao portão avisa-me que o mercedes do homem estava parado lá ao fundo, à sombra de um mangueiro, há já algum tempo.

Ao lado do portão de entrada ficava a guarita da sentinela. Em frente à guarita havia um pequeno jardim em forma de semi-círculo.

Eu e o Cabo da Guarda (também europeu) atravessamos apressadamente o pequeno jardim e fomos formar à esquerda da sentinela e, aí chegados, vejo o resto do pessoal (todos africanos), em fila indiana e em passo de corrida cadenciado, contornar o jardim.

Meio aparvalhado, pergunto-me:
- “Onde é que estes gajos vão, carago!”.

Terminado o circuito, os “contornadores” formam à nossa esquerda.

Pensei: “Bom, já fiz merda!” - Lá se fizeram os “salamaleques” da ordem e, terminada a “sessão solene” lá regressamos a quartéis onde o Oficial de dia – um Capitão Miliciano - me pergunta:
- Então Furriel, o que aconteceu?
- Adormeci e dei barraca.

E ele:
- Também eu adormeci e o homem deitou a mão ao bolso da minha camisa que estava desabotoada e perguntou:
- O que é isto?!

E continuou:
- Olhe, ele disse para você lá ir ao gabinete.

Nessa altura, juro que me apetecia responder:
- “Que venha ele cá abaixo porque eu estou de Sargento da Guarda e não posso abandonar o posto!”

Claro que não o fiz porque iria criar mau ambiente na Unidade já que, muito provavelmente o homem iria responder:
- “Não, que venha cá ele que ainda agora acabei de subir e ele tem estado todo o dia ali alapado!”.

E o empurra para cá, empurra para, lá iria durar uma eternidade e, como não gosto de entrar nessas birras, acabei por ir. Contrariado, mas fui.

- Há quanto tempo está na CCS?
- Há cerca de dois meses meu Co…(fui logo interrompido!)
- Pois, vocês chegam aqui, pensam que isto é a bandalheira do mato, não perguntam nada, se perguntassem sabiam que eu às quintas tenho reunião e que chego sempre mais tarde, - rebéu béu, pardais ao ninho, etc. e tal,…blá blá blá blá !

Eu só abanava a cabeça em sinal de concordância tipo: “ya meu, ya meu, ya meu”.

Passados uns dias, quando volto a entrar de Sargento da Guarda, ao fim da tarde vem o Oficial de dia ter comigo e diz-me:
- Querem a sua presença no gabinete do 2º Comandante.
- “Porra, que foi que eu fiz agora?!” - Berrei eu com os meus botões e confesso que, nessa altura, pensei seriamente em pedir a demissão.

Quando entrei estavam lá o Cor. Galvão de Figueiredo, o Major Leal de Almeida (ex-Coordenador do Batalhão de Comandos Africanos e que, inicialmente, se recusou a participar na operação Mar Verde, acabando por ir a Conakry), um Alf. Milº de Op. Esp. em fim de comissão e que aguardava transporte para regressar à metrópole, um outro Fur. Milº de Transportes e um Cabo Escriturário.

Após uma pequena prelecção, o Cor. Galvão de Figueiredo informa-nos que na manhã seguinte teríamos de embarcar para o Sul. O Major e o Alf. Milº iriam de helicóptero e os outros embarcariam num pequeno cargueiro (vulgo barco turra).

No Sul havia “festa da brava” em Gadamael e eu dei comigo a magicar no que um desgraçado de um Amanuense ainda “pira” iria fazer para a “festa” na companhia de um Major Comando, um Alferes OE e um Cabo escriturário?!
Associei a “gentileza” à minha prestação na 1ª Guarda de Honra que fiz ao homem.

AM

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(Próximo capítulo – (4) Curtas férias em Cacine – CCAÇ 3520
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de > 23 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10989: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (2): Colocado na CSJD/QG/CTIG

8 comentários:

JD disse...

Caro Abílio,
Está provado que escreves com uma ironia altamente qualificada.
Conta-nos essas desventuras de Bissau, para concluirmos que a vida no mato podia ser bem mais fácil.
Um abraço
JD

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luis Faria disse...

Caro Abílio Magro

Esou curioso pelas proximas narrativas.
Segundo me contou um amigo que por essas andanças era useiro em Bissau,tinha umas botas (mandadas fazer ou envernizadas) envernizadas para ocasiões similares.

Abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Começo por elogiar a forma simples e bem disposta como narras as situações.

Costumo ser directo e objectivo quando coloco questões, espero consegui-lo e, com a tua ajuda, poder ou não corrigir o juízo que faço desse indivíduo de que falas.

Com o respeito que me merecem todos, ou quase todos, que passaram pelas ex-províncias ultramarinas entre 1961 e 1974, não posso dizer que tenha especial apreço ou admiração por esse sujeito que assinou um tipo de Diploma que me foi entregue, por ter marcado a Guiné com a minha presença entre Junho de 1972 e Agosto de1974, confesso que preferia outra qualquer assinatura.

Decorriam os finais de 1973 quando um camarada meu, do Agrupamento de Transmissões, cujo tempo de Guiné tinha ultrapassado os 24 meses e se encontrava já a aguardar embarque, ostentava com orgulho a sua medalha de fim de comissão, sem castigos, quando numa deslocação a Bissau, naqueles 750metros de estrada que separavam a porta d’armas, assegurada pela PM, dos quartéis em Santa Luzia, se cruzou com um mercedes que seguia em sentido contrário.

Qual não é o seu espanto quando, após a inversão de marcha, o carro parou junto dele, abriu-se o vidro de trás e foi inquirido se não tinha visto o carro e se não sabia que tinha que fazer continência quando passava um oficial…questionado sobre a unidade a que pertencia e após apontado o seu número mecanográfico, seguiu sem mais conversas.

Passados um ou dois dias, saiu em ordem de serviço a punição deste militar com 15 dias de detenção por desrespeito…

Saliente-se que não era possível ver-se, adivinhar-se sim, mas ver-se não, quem seguia nestas viaturas, até porque se a memória não me atraiçoa, este e outros tinham os vidros fumados, fazer-se continência a todos os carros que passassem sem se saber que ía lá dentro era por demais ridículo.

Uma outra história parece ter-se passado com este oficial no Hospital Militar, não assisti, mas foi-me contada por elementos envolvidos na situação, onde, de visita a militares que haviam sido feridos, interrogou um deles sobre se era casado e se tinha filhos, dizendo-lhe “…pois, para a próxima leva uma máquina fotográfica para tirares fotografias e poderes mostrar aos teus filhos…”

Sei que já não está entre nós e não pode defender-se, mas isso não invalida que se fale da sua forma de actuação…

Como privaste mais de perto com essa pessoa, gostava que falasses um pouco sobre a sua maneira de ser e actuar para melhor ajuizar o seu carácter como militar.

Um abraço,
BS

Abílio Magro disse...

Camarada BS:
Como deves calcular, no QG/CTIG havia muito "ombro dourado" e, nós os que por lá andávamos, não podíamos andar permanentemente com a mão na testa e, realmente, só aos mais graúdos batíamos sempre a "pala", já que com eles cruzávamos poucas vezes.
Considerando que o bater da "pala" é um cumprimento militar, o mesmo já teria sido dado no início do dia.
Havia algumas excepções, como o caso do Major Mota Freitas (aquele que esteve envolvido na rede bombista no pós-revolução), que não deixava passar nenhuma, ainda vque passassemos por ele 20 vezes ao dia, mas, mesmo esse, limitava-se a uma chamada de atenção algo ridícula.
Quanto ao episódio que relatas, não me parece que o Brig Banazol, embora alentejano de gema, fosse pessoa para fazer o que relatas, apenas pelo "crime de não bater a pala".
Provavelmente o militar em causa teria tido outros comportamentos inadequados.
Quanto à cena do HMBIS, parece-me
surrealista, mas eu também estive internado 2 vezes naquele Hospital e, numa desses vezes, o Gen. Bettencourt, numa das visitas que fazia sempre aos militares feridos em combate, proferiu, após ter perguntado a um nosso camarada açoreano, bastante ferido, como se passaram as "coisas", esta frase que me deixou possesso:
"Agora vê lá se te pões bom para lá ires dar cabo dos tipos".
Sem mais comentários.

Abílio Magro disse...

Em tempo:
Não dou como certo que a minha ida para Cacine tenha sido consequência daquele "espectáculo" da Guarda de Honra.
Nunca o soube.
Abraço

Anónimo disse...

Abílio Magro,
Obrigado pela tua pronta resposta, que agradeço.
Quanto ao episódio com o militar do Agrupamento de Transmissões foi de facto essa a situação, nem ele seria capaz de ter qualquer outra atitude com um superior, menos ainda daquela patente, mas admito que todos temos dias menos bons e nem sempre felizes.
No que respeita ao do Hospital nada mais posso dizer ou confirmar.
Um abraço,
BS