sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Caros e prezados amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Recebam o abração de sempre.
Em anexo, uma história tirada do meu caderno de memórias.

Passem bem.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

23 - As emboscadas

A operacionalidade da Companhia de Caçadores 816, certamente semelhante a muitas outras, no terreno, passava principalmente pelas seguintes ações:

Principalmente (e ligadas diretamente à guerra):

- Golpes-de-mão a refúgios do inimigo (as então chamadas “casas-de-mato”) dentro da quadrícula distribuída à Companhia.
- Defesa dos ataques ao aquartelamento
- Saídas para montagem de emboscadas ao inimigo.

Outras (que se relacionavam de algum modo com a guerra, mas não diretamente):

- Patrulhamento (batida ao terreno) na área da periferia adstrita ao aquartelamento.
- Recolha de nativos (operação “psico”) em moranças ou pequenas tabancas “clandestinas” algures no mato e controladas pelo inimigo
- Operações “Vaca” (no Olossato era bife XL todos os dias)
- Idas à lenha e/ou à água.
- Proteção aos nativos nas capinagens, apanha de mancarra, recolha de xabéu, etc..


Falando do 3.º item: EMBOSCADAS

Era das coisas não menos importantes neste tipo de guerra, mas que raramente surtiam qualquer efeito. Era muito difícil intercetar o inimigo no terreno, que ele conhecia muito bem, como as suas próprias mãos. Assim era certo que eles evitavam os carreiros, trilhos e principalmente as estradas, pondo-se assim a coberto de qualquer cilada da nossa parte.

Quando optavam utilizar os trilhos usavam muito a tática de enviar 1 ou 2 homens à frente, desarmados, tipo batedores, e denotando pacíficos caminhantes. Após alguns minutos então vinha o “grosso” da coluna: homens armados, pelo menos alguns, então transportando armas, víveres (normalmente arroz), caixas e cunhetes de munições diversas, livros, prospetos, isto é, diverso material bélico e também didático ou propagandístico.

A maior parte das vezes, no entanto, eles não davam qualquer sinal de vida; conhecedores do terreno como ninguém e sabendo a movimentação da tropa, esta controlada muitas vezes por carteiro adiantado.

Assim, a tropa normalmente regressava de uma emboscada, e, como se costuma dizer, de mãos a abanar. Houve uma altura que a Companhia, no efetivo de um pelotão, fez sucessivas emboscadas em Colissaré baseadas em informações de que o inimigo fazia por ali um corredor para (ou de) Morés. Nada, nada resultou. Eles conheciam bem o chão que pisavam e assim evitavam-nos, ao passo que a tropa via-se normalmente forçada a deslocar-se através dos carreiros e trilhos que havia, senão queria perder-se, ou mesmo por estrada, aqui necessariamente quando auto-transportada. Quero com isto dizer que assim éramos muito mais vítimas de emboscadas montadas por eles, do que algozes das nossas. Podia então bem dizer-se que o mato era deles e as povoações eram nossas. No entanto pode dizer-se que quando havia refrega, mesmo no mato, a vantagem e qualquer que fosse o sítio do recontro, era invariável e nitidamente nossa, pelo menos na zona do nosso domínio e parecia que quase em toda a Guiné. Isto em 1965-67. Em quase dois anos luta da 816 na Guiné pode-se dizer que as emboscadas - e foram largas dezenas - que eles nos montavam normalmente acabavam por debandada deles face ao nosso poderio quer em homens quer na qualidade do armamento e porque não dizer à nossa audácia. Ao cair da nossa primeira morteirada normalmente acabava com a emboscada. Normalmente eles usavam a tática do bate-e-foge. Ressalve-se no entanto e por paradoxal que pareça, que os nossos dois mortos foram-no em emboscadas e em alturas diferentes e feitas em retaliação a nossa “provocação” (leia-se: ataques nossos) e uma delas bastante forte. Foi feita inicialmente à base de arremesso de granadas de mão. Saraivada delas.

Tínhamos já ouvido falar deste tipo de emboscadas. Provaríamos mais tarde deste veneno. Um Furriel miliciano morto e vários feridos foi a consequência desta audácia inimiga.
Dizia-se que os lançadores das granadas que se posicionavam natural e necessariamente muito próximo da picada eram elementos que faziam isso por castigo - castigo por qualquer traiçãozinha na tribo.

Eles também eram duros na sua disciplina, sabia-se. O castigo muitas vezes era pô-los a atuarem como lançadores de granadas em emboscadas às nossas tropas.
A probabilidade de serem atingidos, e foram, era grande, daí uma missão para castigados,… ou drogados (também se ouvia isto).

Verdade se diga, que à medida que os meses passavam eles também ofereciam cada vez mais resistência, pois para além de irem obtendo armamento mais sofisticado, iam sendo mais bem organizados. E depois os cubanos e outros mercenários - O pequeno partido (?) que eles tiravam, então, das suas emboscadas, na altura, talvez fosse mais psicológico, como que a demonstrar a sua força (…), o querer dizer nós estamos aqui e não vos queremos cá, para além de nos fazer gastar munições. Lembro-me que em resposta a uma simples rajada da “costureirinha” (isto nos primeiros tempos), nós despejávamos os carregadores (periquitices). Com o tempo aquela rajada do inimigo, se isolada, não tinha resposta. Ao fim de alguns meses conhecíamos o tipo de tiro ao sair do cano. Aí já não era um sexto sentido mas um sétimo talvez. Era impressionante aí já o feeling da malta com o boom do tiro.

Vou contar, em primeiro lugar, (o assunto é “emboscadas”) o que se passou com uma das emboscadas feitas pelo meu Grupo de Combate, feita não muito longe muito da “casa-de-mato” de Iracunda, mais concretamente em Cudana, e que teve o seu quê de insólito.

( Insólita era a guerra também).
 Estávamos então a 26 de Fevereiro de 1966.

O meu Grupo de Combate foi então incumbido de fazer uma emboscada em certo ponto de um carreiro, em plena zona de Cudana, onde e pelos vistos, presumia-se (informações que chegavam) que passavam por lá elementos terroristas com alguma regularidade. Com o meu Grupo de Combate foram alguns dos nativos voluntários do Olossato que sempre se prontificavam a ir a qualquer espécie de operação, pois isso sempre lhes rendia alguns “Pesos”. Chegados ao carreiro pré-identificado e depois de escolhermos um lugar que nos oferecesse boas condições de êxito, instalamo-nos o melhor possível e eu, fiquei, ou melhor procurei ficar, junto de dois pretos veteranos, os tais que esgravatavam pesos. Perto de mim estava também o “bazookeiro do meu GComb, o “Doutor”.

Eu gostava de estar junto de um ou mais indígenas, daqueles calejados (alguns já andariam há pelo menos dois anos naquilo) e veteranos, pois estes além de silenciosos eram muito atentos, até parecia que nem pestanejavam; pressentiam o inimigo ainda bem longe e até ainda que oculto. Parecia que tinha um “faro” para descobrir pessoas e denunciar ou prever as oscilações climatéricas, isto é, o tempo que ia fazer dali a pouco, ou dali a muito.

Estávamos ali emboscados havia já algumas horas, quando um dos pretos que estavam ao pé de mim me tocou e sussurrou:
- Furriel, vêm aí dois pessoais bandido.

Então, sem me agitar muito, procurei vislumbrá-los entre a folhagem que nos encobria o que com dificuldade consegui, pois vinham ainda muito longe e mal se distinguiam no emaranhado do mato, e então aqui a ideia que eu fazia de que os pretos, pelo menos os mais experimentados e que nos acompanhavam operacionalmente, eram dotados de um sexto sentido incomum, saiu reforçada, pois fiquei deveras impressionado como eles toparam os dois “turras” a tão longa e sinuosa distância. Tomei o devido cuidado pois eles podiam muito bem vir armados, segurei a arma em posição adequada. O silêncio que era quase absoluto até aí, passou a sê-lo mesmo pois então e pelos vistos, entretanto, toda a malta já estava prevenida da aproximação dos dois indivíduos.

Eles vieram pelo carreiro onde nós estávamos emboscados e no seu andar normal. Então e aqui é que tem o seu quê de piadético, qual não é a nossa surpresa, eis que eles, precisamente à nossa frente, numa pequena poça de água, que se calhar ninguém tinha reparado da sua existência, resolvem despir o seu reduzido e rudimentar trajo e aprestam-se para aquilo que seria uma banhoca. Julgo que a poça de água ali foi uma coincidência.

Detrás de uma pequena sebe saltam logo o “Fafe” (mais tarde com grande condecoração e já falecido há algum tempo, já depois do regresso - paz à sua alma), que era sempre o primeiro nestas coisas, outro soldado que não reconheci, mais o Sargento Tavares, que em jeito de far west, de armas sobre a anca e apontadas aos tipos, ordenam-lhes que se rendam. Um então, que era um verdadeiro atleta, tenta logo fugir, mas uma rajada, que lhe esfacelou um braço, faz-lhe gorar os intentos e então deixa-se dominar. O outro, que tremia de alto a baixo, nada tentou e… também nunca mais deixou de tremer. Bom, de qualquer forma, armados ou não, eles seriam sempre apanhados, mas, na circunstância, não havia armas em seu poder. A piada da história está então no raro azar que eles tiveram em lembrarem-se de se refrescarem logo naquele sítio mesmo em frente da tropa emboscada. Trouxemo-los para o Olossato. O ferimento provocado pela rajada não foi de modo a que ele não pudesse prosseguir pelo seu pé, mas, de vez em quando, fazia-se desfalecer e atirava-se declaradamente para o chão. Claro que isto provocava atraso no regresso da coluna e então logo nos apercebemos que a intenção dele era precisamente essa: retardar o mais possível a nossa marcha para que os seus colegas de uma base ali perto, que seria provavelmente a de Iracunda, uma vez alertados com a nossa rajada feita momentos antes, tivessem tempo de vir ao nosso encontro e fazerem-nos uma emboscada. Mas não, nada houve.

Mas, a emboscada de maior êxito, a emboscada que resultou no aprisionamento de mais de 10.000 (!) cartuchos de diversos calibres e no infligir de 4 confirmadas baixas e mais 2 feridos - ficaram aos olhos de toda a malta - foi uma levada a cabo pelo 2.º Grupo de Combate da 816 e que por si só justifica este “Post” . Adiante também o extrato do relatório que regista o acontecimento.

Este Grupo instalou-se num ponto estratégico do trilho que ligava Bissajar a Maqué e intercetou um grupo de 6 terroristas que transportavam à cabeça sacos cheios de munições, na circunstância cartuchos e mais cartuchos.

Foi nesta emboscada que se constatou que eles tinham a tática de mandar uns minutos antes alguém à frente e desarmado. O homem nem sonhou que tinha passado pouco antes por dezenas de G3 apontadas.

Foi uma caçada em grande, que teve o seu quê de insólito, pois tal êxito era de todo em todo inesperado.

Aquela quantidade de cartuchos e cujo destino provável era a base de Maqué, dava para um ataque a um quartel durante uma noite inteira, calculamos nós. Como o quartel mais próximo era o nosso, logo deduzimos que provavelmente aquilo estava reservado para um ataque a Olossato. A 566 (que nós fomos substituir no Olossato), que diga do ataque que lhes fizeram na véspera de deixarem a guerra.

Esta foi então uma emboscada que resultou de uma forma bastante positiva (captura de armamento e baixas ao inimigo) pois, como já disse, na grande maioria das vezes eles nem sequer davam sinais de si a não ser às vezes um ou outro que aparecia, que muitas das vezes nem “turra” era, embora fosse tomado como tal e consoante a zona em que era intercetado.


Um Obus no Olossato, calibre 8.8 (granadas de 11,54 Kg; alcance de 11800 jardas)

Na foto acima um dos dois Obuses no Olossato ao tempo (1965/66). Duas secções de Artilharia superiormente comandadas pelo meu grande amigo Alf. Miliciano M. Brandão que quando o inimigo, para atacar o aquartelamento, se instalava preferencialmente no outro lado da pista das aeronaves e precisamente de frente para os Obuses, dado aquele julgar, erradamente, que eles só batiam zonas distantes, mas aconteceu ser necessário fazer tiro direto, inclusive para junto do arame farpado (trilho entre os Obuses e a pista das aeronaves)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P10701: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (22): O Boby

4 comentários:

Elvas Militar disse...

Camarada Rui Silva.
Venho agradecer a partilha das suas vivenciais do ultramar. Quero-lhe dizer que apesar de ser da sua geração, muito admiro o que a vossa geração viveu e sofreu. Gostei muito de ler a sua historia.
Obrigado pela partilha.
Fernando Laureano

Anónimo disse...

Bravo camarada Rui Silva

Para quem não sabe, o obus 8,8 era de fabrico Inglês e foi muito utilizado pelo exército Inglês no norte de África,durante a 2.ª g.m.
Era essencialmente uma arma anti-tanque e por isso preparado para o tiro directo.
Nunca percebi porque não foi utilizado na defesa próxima dos aquartelamentos,sem desprimor para os infantes podia substituir perfeitamente os canhões s/r e até os morteiros 81 e 120.
No caso em concreto, atacar de frente para os obuses 8,8 era um autentico suicídio,por isso só poderia ser ignorância.

o ex-artilheiro

C.Martins

Luis Faria disse...

Caro Rui Silva

Gostei de te ler.
Connosco e que recorde, tambem nunca nenhuma emboscada nossa resultou.Os "turras"para alem de bons conhecedores do terreno e familiarizados com os sons e odores das matas, pressentiam a presença de estranhos.Daí muitas vezes aquelas pequenas rajadas de engodo,na tentativa de denunciarmos precocemente a nossa localização.Aconteceu-nos várias vezes e digo-te que rarissimamente andavamos por trilhos ou atravessavamos terreno aberto .Só quando não havia outra hipotese.

Bem,a dos "banhistas" deve ter sido no mínimo desconcertante para os "olheiros",mas denota uma emboscada bem montada,no minimo em termos de camuflagem e contenção.

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Rui Silva,
Bem vindo aos relatos da tua epoca (65/67 salvo erro).
Na minha época (68/70), mais se confirmou que as nossas embuscadas tinham reduzido sucesso, mas que também as embuscadas deles às companhias de quadrícula já tinham conhecido melhores dias.
Tive duas excepções ao que acabei de dizer: uma embuscada noturna que fiz na periferia do Olossato com grande sucesso a um grupo inimigo que se deslocava para um ataque ao nosso quartel, e uma embuscada que o inimigo me fez a uma operação já das NT já bem longe de Có. Sempre me questionei sobre o motivo de o IN se posicionar numa zona tão improvável de as NT por lá passarem, quando eles tinham alvos fixos sempre ao alcance. Denúncia antecipada da nossa deslocação ou protecção preventiva ao deslocamento de importante reabastecimento logístico a ocorrer no momento?
Um abraço,
Raul Albino
C. Caç. 2402