domingo, 6 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10904: História da CCAÇ 2679 (58): Fisicamente recuperado (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 4 de Janeiro de 2013:

Bom dia Carlos,
Acabo de regressar de umas mini-férias no Alentejo profundo, de um local a 2Km da aldeia mais próxima, servido por uma picada sem minas, sem água da rede, sem rede para o telemóvel, mas com diferentes tipos de passarada que me proporcionam alvores de diferentes chilreios, e regresso farto de amanhar ervas, de compor o nível da entrada para que o carro não tropeçasse no batente do portão, de apanhar umas tângeras de muito bom paladar, de me sentar com vacas e ovelhas nos terrenos verdes e ondulados, enfim, venho bucólico.

Contra isso, para me adaptar depressa à guerra da cidade, hoje envio novo fragmento sobre a História da 2679, desta vez dedicado ao nosso ilustre camarada Hélder V. de Sousa, não porque contenha muitos pontapés nos cuzes, a acção violenta que ele tanto aprecia, mas porque retrata cenas caricatas, condicionadas por tensões de ordem amorosa e ruptura do dever de camaradagem. Nada que não tivesse tido a solução adequada e afectasse as relações no Foxtrot, pois ainda este Natal recebi uma mensagem de um dos intervenientes (infelizmente, o outro, há anos que nos deixou) e falei com ele ao telefone.

Para ti, e para o Tabancal, com renovados votos de bom Ano Novo, envio um grande abraço
JD

Vista aérea de Bajocunda 
Foto ©: Amílcar Ventura


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (58)

Fisicamente recuperado

No regresso de Bissau onde dei baixa ao hospital e passei vinte e seis dias em tratamento, fui logo informado com alguma insolência, que o pelotão abandonara Tabassai, a aldeia onde fora colocado em auto-gestão durante aquele período. Ouvi e fui averiguar junto de alguns Foxtrot, sobre a veracidade e razões para o que teria acontecido. Fiquei a saber que o pessoal recebia as refeições naquela tabanca, por deslocação de uma viatura, diariamente, com os alimentos confeccionados.

Durante os primeiros dias, pouco depois das doze horas a comida chegava à tabanca. Ao anoitecer, com o reforço chegava o jantar. Mas começaram os atrasos com a chegada do almoço, e o pessoal protestava com recados, ora transmitidos aos condutores, ora transmitidos aos comandantes das escoltas e do pessoal dos reforços. Aquelas reclamações, porém, não mereceram especial atenção, e os almoços continuavam a ser disponibilizados já pelo entrar da tarde, pouco antes da chegada do jantar, chegando ao ponto de quase jantarem sem acabar a digestão dos "almoços".

Como diz o povo, a cantarinha vai tantas vezes ao poço, que um dia parte. E foi o caso: a canteirinha, ou seja, a paciência do pessoal esgotou-se com a manifesta situação de desprezo a que estavam votados. Um belo dia tomaram a decisão, e todos os elementos rumaram a Bajocunda pelo meio-dia para tomarem a refeição a horas normais no refeitório. Foi um banzé. Toda a gente quis assistir à querela que se estabeleceu entre o Trapinhos, provavelmente apoiado por outros quadros, e o Foxtrot que não vacilou na defesa das suas razões. Ainda perguntei se tinha havido alguma punição, mas não, não tinha havido, apenas ameaças disto e daquilo. O pessoal ainda reafirmou a sua disposição para repetir a atitude, se a façanha de servir o almoço a horas tardias voltasse a repetir-se. Mais tarde o Morais foi deslocado para Tabassai onde permaneceu a exercer o comando.

Não achei razões para qualquer reprimenda, e como a coisa tinha tido um final feliz, nem percebi a insinuação que me fizeram sobre a indisciplina que alguém atribuiu reincidentemente ao pelotão, que, aliás, devia ser contraposta à indisciplina e à falta de solidariedade de quem tinha a responsabilidade sobre a preservação de um ambiente harmonioso na companhia. Logo referi que apoiava a atitude do Foxtrot, e deixava o recado de que quem quer ser respeitado, também tem obrigação de respeitar. Ficou assim. Recentemente o Morais disse-me que não teve qualquer problema enquanto esteve com o meu pelotão. Naturalmente, o Morais foi sempre uma simpatia, ponderado e competente.

Algum tempo mais tarde estavam os diferentes pelotões a alternar uma semana em Tabassai, mas com autonomia para cozinhar numa panela improvisada de meio tambor de gasolina. Para ali foi deslocado um cozinheiro, e os artigos de despensa necessários. Os dias corriam numa pacata modorra, e à noite chegava uma secção de reforço. A minha actuação era no sentido de alterar na distribuição de tarefas, com vista a contrariar as rotinas. Um belo dia destaquei dois elementos para a orla da mata, na estrada para Pirada, onde deviam observar os movimentos de pessoas e o que transportavam. Quando o almoço foi servido pelo cozinheiro, cada um atacava o respectivo "tacho". Eu apresentei-me mais tarde e perguntei se aqueles dois vigilantes já tinham comido. O cozinheiro levou as mãos à cabeça pois tinha-se esquecido deles e já não havia nada preparado. Mas à sombra de uma árvore estavam dois pratos cheios. Aliás, todos tinham comido substancialmente. Eram os pratos de dois outros elementos.

Mandei chamar os vigilantes, e disse ao cozinheiro para dividir aquela comida e a que me estava atribuída pelos cinco, eu, os vigilantes, e os que estavam identificados para quem aqueles pratos se destinavam. Logo após a minha ordem apareceram os dois destinatários da comida guardada, alertados por alguém, que vinham reclamar os seus direitos. Pois foi de direitos que lhes respondi: que por um azar o almoço fora mal distribuído, mas que todos tinham direito a comer, e assim devíamos dividir a quantidade remanescente pelos cinco. A reacção de um deles não podia ser pior, que não, ninguém mexia no prato dele e que não tinha culpa do que acontecera. Voltei a referir que tinha que partilhar, que era preciso satisfazer a todos, tanto mais que àquela hora já não havia solução. Aquele Foxtrot não mostrava compreensão nem bom senso. Dei-lhe ordem para não comer sem se proceder à divisão. Mas aqueles dois pratos cheios destinavam-se a partilhar refeições com as namoradas, e ele obstinava-se, enquanto o outro, visivelmente aborrecido, aguardava pelos acontecimentos. Quando o mais incompreensivo esboçou intenção de agarrar no prato, aproximei-me e disse-lhe para se afastar e aguardar a redistribuição, e disse-o já farto da conversa sem vacilar.
Respondeu-me com ar de desafio:
- Meu furriel não me bata!

Respondi no mesmo tom para lhe fazer saber que haveria pancadaria se ele não obedecesse:
- Pois então não mexas!

A alimentação foi dividida pelos cinco e o caso resolvido no momento. Mas não ficou resolvido na mente dele. Aqui há uns anitos veio ao continente, e visitou-me em minha casa, onde jantou comigo e com a minha filha. Lembrou-se, ou já trazia na ideia, de referir o episódio, deixando uma observação de que eu não o tinha respeitado, ao que lhe respondi com a devolução da apreciação. Depois, sozinho, reconstituindo as coisas, cheguei à conclusão de aqueles dois bons elementos tinham sido influenciados pela atracção do belo sexo, pelo carinho que trocavam com as bajudas da aldeia, não sei em que condições, nem com que convencimentos.

Ainda nesse período aconteceu outro episódio, quando durante a tarde chegou uma secção de outra companhia para reforço do mini-pelotão Foxtrot. De repente aconteceram umas rajadas, três ou quatro, da metralhadora que cobria as entradas da estrada, nos sentidos de Pirada e de Bajocunda. Irritei-me com aquilo e fui averiguar o que acontecera. Quando cheguei ao espaldar em abrigo cavado para a metralhadora, estava um elemento da secção de reforço a quem interroguei sobre os motivos das rajadas. Respondeu que estava a experimentar a arma. Disse-lhe que ali ninguém experimentava nada sem a minha autorização, e que ele devia ter tido em consideração que podia haver gente civil ou militar na orla do mato. Que imaginasse se ali estivesse um camarada dobrado sobre os joelhos. Calou-se. Mas quando voltei costas e iniciava o regresso ao interior da aldeia, ouvi-o dizer entre dentes que quando os turras atacassem havia de lhe dar autorização para reagir.

À insolência e cobardia, reagi lançando-me para ele que não aguentou o impacto. Estava a ver no que dava, quando veio muito aflito o furriel daquela tropa. Disse-lhe só que não admitia abusos, que repetisse essa mensagem ao atirador, e que em futuras circunstâncias lhe daria dois murros. Esta cena que pode mostrar alguma brutalidade da minha parte, quero ressalvar, que foi provocada por uma insolência daquele militar, impreparado e imprevidente, que não fora capaz de medir as consequências do seu acto, e cobardemente desconversava com desprezo sobre a minha chamada de atenção. Só que eu ouvi, e não fingi o contrário.

Não vou agora falar daquela disciplina das paladas e de suas excelências, mas da disciplina que era fundamental para quem usava armas e estava em ambiente de guerra. Sempre me fez muita confusão o gosto de disparar em rajada, pois não só não treinava nada em especial, como não significava uma acalmia ao stress que a guerra provocava. Se alguém pretendia experimentar uma metralhadora, antes, devia desmontá-la, limpá-la, e pedir autorização para a experiência, prevenindo riscos desnecessários.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)

3 comentários:

Tony Borie disse...

Olá José Manuel.
O teu texto exprime, um jovem com formação, talvez dos bancos da escola ou de alguém que cresceu em família, que estava em cenário de guerra, demonstrando bons princípios de justiça em favor dos seus companheiros, frontal, objectivo e "sem papas na língua" .
Gostei, Tony Borie.

Luis Faria disse...

Amigo José Dinis

Pelo que te tenho lido nas estorias ,na primeira pessoa, sobre a tua CCAÇ e o teu "Foxtrot", estou certo que foste um condutor/aglutinador/motivador de homens,exercendo um comando consciente e justo,onde a disciplina indispensável e o
apoio aos teus comandados,andaram de mãos dadas e sem ambiguidades.

Abraço
Luis Faria

Hélder Valério disse...

Caro Zé Dinis

Obrigado pela dedicatória.
Deixa-me que te diga que considero a disciplina um elemento fundamental para se atingir um objectivo.
Sem ela, pode-se caminhar rapidamente para a 'grande bandalheira'. Sem ela, nesse teatro de guerra, rapidamente se poderia passar a 'fronteira' entre um grupo de homens armados com linha de comando de acção para o 'bando armado'.
Acho que fizeste bem.
Acho que, de um modo geral, conseguiste comandar os teus homens, aqueles que tinhas a responsabilidade directa, de uma forma envolvida e conseguida.
Quanto à piadinha dos 'pontapés no cu' isso surge porque, como sabes, e eu sei disso através dos teus relatos, parece-me ser esse o teu 'método pedagógico' favorito, aquele em que és 'useiro e vezeiro', mas que também parece ter dado resultado.
Abraço
Hélder S.