segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
As teses apresentadas pelo Doutor Manuel Godinho Rebocho têm suscitado alguma controvérsia e bastantes reparos metodológicos. Segundo ele, os capitães milicianos, genericamente, desempenharam a sua função de modo cabal e a sua qualidade de desempenho residiu nas capacidades pessoais e dentro das inteligências específicas sobressaiu a inteligência emocional e em contrapartida as elites militares constituídas por membros do quadro permanente não esteve ao nível no desempenho das suas responsabilidades.
Estes e outros objetos de análise são contundentes e deviam ser alvo de mais estudos, até na perspetiva de melhorar os processos de seleção, recrutamento de informação das Forças Armadas, como diz o autor.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra

Beja Santos

“A investigação científica que realizei provou que, no decurso da guerra de África, os oficiais do quadro permanente foram-se progressivamente afastando do comando operacional. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os milicianos quem, de facto, comandou as unidades de combates, nos últimos e mais gravosos anos da guerra”. É com esta declaração que Manuel Godinho Rebocho nos apresenta o seu trabalho com base na sua tese de doutoramento ("Elites militares e a guerra de África”, por Manuel Godinho Rebocho, Roma Editora, 2009. Nesta sua investigação procurou igualmente sondar os termo em que se formaram as elites militares e o impacto dessa formação na qualidade do desempenho, na guerra e na forma como se comportaram no “pós-Marcelismo”.

É um trabalho vasto onde o seu autor esclarece aspetos metodológicos e a componente científica da investigação, procede ao enquadramento histórico da guerra para concluir que as autoridades portuguesas não desconheciam, quando se chegou a 1961, as condições naturais e ambientais em que a guerra se iria travar, e a tal propósito estudou a formação dos milicianos; descreve com exaustão a organização militar na guerra, escrutinando um conjunto de unidades de combate; analisa a forma como os oficiais conflituaram entre si, designadamente no período do PREC e apresenta por fim as conclusões. Pelo que é dado verificar em textos que circulam na Net, as teses do sargento-mor Godinho Rebocho estão longe de ser consensuais, tanto pela amostra das unidades estudadas como pela caracterização a que procede sobre os oficiais do quadro permanente ao longo da guerra.

O autor começa por entrevistar um conjunto de comandantes de unidades de combate e pede-lhes apreciação sobre três componentes: formação científica/cultural, vocação e experiência. O critério a que obedecem estas três componentes tem em vista ajuizar qual na prática a componente ou componentes que pesaram no bom desempenho. E discorre sobre a natureza do conflito militar a natureza das elites, as características da liderança, como se processa a cadeia de comando, etc. Na sequência do enquadramento do seu trabalho, repertoria o quadro histórico da descolonização, à escala mundial e as reformas militares ao longo do século XX até ao período que antecede o início da guerra. Do que investigou, concluiu que as cúpulas da Forças Armadas detinham o diagnóstico perfeito da situação quanto à necessidade de orientar o recrutamento e a formação dos quadros, num horizonte de guerra. E perde-se em consideração sobre a origem social do corpo de oficiais, contesta a tese exposta por diferentes investigadores de que os oficiais revoltosos provinham, pela origem social, de extratos humildes, dá por demonstrado que os militares não se comportaram nem se motivaram em função das suas origens sociais. E expende um juízo: “O maior, senão o único, problema das Forças Armadas Portuguesas durante todo o tempo da guerra de África, foi a falta de doutrinadores e reformadores quanto à sua organização e formação. Tudo o resto se resume a pequenas questões, de solução fácil e pontual. Mas a organização e formação tiveram de ser mantidas para satisfazer a classe média, razão pela qual se manteve uma hierarquia baseada nas habilitações literárias, de todo inconsequente. Destaca-se a classe média porque a classe alta nunca teve problemas: os seus filhos estiveram sempre em lugares seguros”. E mais adiante: “A organização e formação militares, durante a guerra de África, estiveram estruturadas e diferenciadas segundo as classes sociais, mas só na componente do serviço militar obrigatório. Na componente do quadro essa diferenciação não existia. A grande clivagem verificava-se entre oficiais de carreira e oficiais milicianos, sobretudo nas patentes de capitão. Tão evidentes e profundas eram essas diferenciações, que foi ali que se iniciaram, ou foi dali que partiram, as movimentações dos capitães: Puros e Espúrios, de carreira e milicianos, respetivamente”. E nada adianta se estas reivindicações e conflitos eram exclusivamente corporativas, de modo a que os capitães chegassem rapidamente aos tais lugares de gestão militar, afastando-se das missões espinhosas das operações.

É uma investigação onde se anda à lupa a saber quem e como frequenta cursos de formação, saber a origem social dos oficiais do quadro permanente no topo ou a caminho do topo. Com uma paragem demorada na Academia Militar em 1959, mas também na Escola Central de Sargentos, nas Escolas Práticas, averiguando qual a natureza da formação complementar por onde os oficiais eram habilitados, e procedendo de idêntica forma para a formação de sargentos e conhecimentos relacionados com formação em ação psicológica, e então detém-se nas tropas paraquedistas, de onde provém, assim as caraterizando: “Estes homens eram submetidos a rigorosas inspeções médicas, físicas e psicotécnicas. Eram provas muito seletivas: só os melhores as conseguiam superar. A formação das tropas paraquedistas, enquanto tropa de elite, acompanhou de muito perto a que foi seguida no Centro de Instrução de Operações Especiais para preparar as companhias de caçadores especiais. Se a formação era em tudo semelhante, o Exército não deu sequência àquela preparação, perdendo assim boas unidades, enquanto os paraquedistas não só a continuaram como a melhoraram progressivamente”. E detalha a formação dos paraquedistas.

E assim se chega à guerra de África e ao desempenho das elites militares. Socorre-se de um trabalho de John Cann, a cuja recensão já se procedeu aqui (“Contrainsurreição em África, O Modo Português de Fazer a Guerra, 1961/1974”*, por John P. Cann, Edições Atena). Aqui havia uma questão central que era a de, numa guerra subversiva, conquistar a população ou tê-la maioritariamente do seu lado, isto a par de manter baixos custos em guerra, o que, reconhece John Cann se ficou a dever à baixa tecnologia da guerra, à baixa intensidade da guerra, aos baixos custos com pessoal. E assim conclui: “A partir do que fica analisado e desenvolvido, forçoso é concluir que os altos comandos militares orientarem estrategicamente a guerra, segundo as melhores perspetivas, face aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e o enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorável. Os erros e a falta de estratégia que influenciaram os resultados da guerra de África são fundamentalmente da responsabilidade dos políticos”.

E daqui parte para uma ponderação do sistema de forças, socorrendo-se de um exemplo extraído da Guiné. Recorde-se que uma das críticas mais apresentadas à investigação de Manuel Godinho Rebocho foi a limitação de fontes, nunca usando qualquer exemplo extraído de Angola, não invocando nada sobre o comportamento da Armada, etc.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 DE SETEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P8741: Notas de leitura (271): Contra-Inssureição em África, 1961-1974, O modo português de fazer a guerra, de John P. Cann (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10710: Notas de leitura (431): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

António Martins Matos disse...

Volta não volta há uns livros (felizmente poucos) que voltam à ribalta com o estatuto de "acabados de sair do forno"; e, no entanto, não passam de re-aquecidos.
No meio destes re-aquecimentos" não sei se é para informar os distraídos se para mentalizar os dissidentes.
Abraços
AMM

antonio graça de abreu disse...

Pois, #assim se fazem as cousas# como disse o nosso Gil Vicente, não o do galo e das futeboladas de Barcelos, mas o do teatro.

Abraço,

António Graça de Abreu

JD disse...

Camaradas,
A obra em apreço corresponde à edição de uma tese de doutoramento, um terceiro grau superior, depois da licenciatura e do mestrado.
Refere o Mário que as críticas incidem sobre a limitação das fontes, por não ter recorrido a exemplos relativos a Angola, e não ter invocado nada sobre o comportamento da Armada. No entanto, o Autor refere uma razoável lista de referências, que pode ser compulsada entre as páginas 475 e 486, para além de vários diagramas, mapas, quadros e anexos intercalados na obra. Deve ainda destacar-se os conjunto de documentos consultados e subscritos por vários oficiais generais e superiores. Por outro lado, no que respeita a Angola e à Armada, o autor terá tido o bom senso de não se embrenhar por terenos que não dominava.
Um dos depoimentos em posfácio é da autoria do Casimiro de Carvalho, que refere "quis o autor pôr factos a nú e acordar certas consciêcias", enquanto eu considero que a obra pode conter alguma pedagogia do âmbito militar, ou sócio-militar, assim se queira prestar-se-lhe atenção, com isenção descomplexada.
O primeiro período da recensão, apesar de retratar uma verdade insofismável, e de parecer marcar o estilo da obra, no que poderia consubstanciar uma refrega pessoal com alguns comandos militares, não lhe tolda a objectividade nem o carácter científico de uma tese de doutoramento.
A obra já aqui foi mencionada anteriormente, e "mereceu" ferozes comentários de individuos que nem a tinham lido, pelo que sugiro ao blogue a solicitação de uma entrevista ao autor por uma equipe de camaradas representativa de diferentes pontos de vista.
Abralos fraternos
JD

Anónimo disse...

Caros camaradas

Concordemos ou não com o conteúdo desta obra,esta foi uma tese de doutoramento,devidamente avaliada por quem sabe e legalmente o pode fazer.

Eu próprio discordo de algumas coisas.

Parabéns ao camarada DR.Rebocho.

C.Martins