sábado, 24 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10720: Blogpoesia (307): Não, não havia nada na antiga estrada do Xime-Ponta do Inglês (Luís Graça)

1. Segunda feira, 26 de novembro de 2012, passam  42 anos (!) sobre a Op Abencerragem Candente. 

Por poucos ou muitos anos que eu ainda viva, nunca conseguirei esquecer esse dia. 

A 22, estava a decorrer a Op Mar Verde, envolvendo - entre outros - os nossos camaradas da Companhia de Comandos Africanos, nossos vizinhos de Fá Mandinga; a 24, o Tony Levezinho fazia 23 anos, e celebrámos a efeméride como mandava o RDM de Bambadinca; a 25 mandaram-nos curtir a bebedeira para o Xime, para uma operação a nível de batalhão; a 26, íamos conhecer o inferno...

Dedico este texto poético a todos os meus camaradas da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), da CART 2715 (Xime, 1970/72) e CART 2714 (Mansambo, 1970/72), num total de 8 Gr Comb, que participaram na Op Abencerragem Candente, seis dos quais não regressaram vivos (o Seco Camará, o Rufino Correia de Oliveira, o P. Almeida, o Manuel da Silva Monteiro, o Joaquim de Araújo Cunha e o Fernando Soares) e nove dos quais foram gravemente feridos.

Não, não havia nada na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça

Não, não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.

Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.

Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver.


Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.

Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.

Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!

Não tinha, de resto, razão de viver,
Raison d’ètre, diria a minha copine,
Se eu fosse faltoso, refractário ou desertor
E tivesse dado o salto para França.

Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.

Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub  irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Dos filmes do Faraoeste da tua infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.

Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau tosco,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.

Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À tua espera,
À espera dos teus camaradas.
Às 8h45 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou,
Nem penou,
Nem sofreu,
Nem pecou,
Nem rezou.

O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).

Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.

Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola.

E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da tua galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.

Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor, camaradas, poupem as munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera,
Escreveu um serial killer,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos!


Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.

Lourinhã, 19 de agosto de 2010 / Alfragide, 24 de novembro de 2012

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10719: Blogpoesia (306): O povo a que pertenço (Juvenal Amado)

9 comentários:

Anónimo disse...

Não, não havia nada nem podia haver. No meu tempo já não se ia à Ponta do Inglês e hoje, à distância, não entendo mesmo porque lá se havia de ir. O In não residia alí e se se pretendesse empurrá-lo para Sul não era, de certeza, assim. No meu tempo, no Poindon, (um pouco mais a Norte) o In tinha duas tabancas que serviam para detectar o avanço das NT e servir de "escudos humanos". Ambas foram "desarrumadas", mas creio que não se ganhou muito com essa acção. Os campos estavam extremados e ninguem estava interessado em ceder. No fundo, a inutilidade da "guerra" começava a pesar cada vez mais.
Um Ab e uns segundos de reflexão sobre todos os que ali cairam ou ficaram feridos, numa acção que, a cada dia que passa se apresnta mais inútil, qualquer que seja o ângulo donde se observe.
António J. P. Costa

Hélder Valério disse...

Pois é Luís, há coisas que se procura esquecer mas tal não é possível.

E este teu desabafo, em que aproveitas também para homenagear não só todos os que participaram nessa "abencerragem" como principalmente os que nela 'ficaram', é essencialmente um grito de revolta contra todas essas "abencerragens"...

A cadência do poema e algumas frases fazem-me lembrar um outro poema que falava de Nanbuangongo.

Abraço
Hélder S.

Bispo1419 disse...

Olá, meu caro Luís!
Gostei, muito. Abraço do
Manuel Joaquim

Antº Rosinha disse...

"Por poucos ou muitos anos que eu ainda viva, nunca conseguirei esquecer esse dia".

E pelo teu blog, ficarão registados para a história 13 dos mais significativos anos da História de Portugal.

Uma guerra nos antípodas de Alcácer Quibir.

Libério disse...

Caro Luis
Já não havia nada quando o meu pelotão, no inicio de 1965, bateu, a pé,todo o caminho do Xime à Ponte do Inglês,à frente de uma companhia que ali ia ser instalada.Estava eu nessa altura no Xime.Sempre que saíamos do Xime alguém nos esperava.Em 1964 tentou-se por 2 vezes chegar à Ponte do Inglês mas sem sucesso.
Ainda hoje não entendo porque é que sede da companhia era em Bambadinca e não no Xime.Isso deu origem a que toda a zona a sul do Xime fosse sendo ocupada pelo In durante dois anos.
Enfim, coisas dos grandes chefes.
Gostei do poema.
Um abraço
Libério

Luís Graça disse...

1. Caro Hélder, estás-te a referir ao "Nambuangongo, meu amor" ? Sou leitor de poesia, e a memória literária trai-nos...

_________________

Nambuangongo Meu Amor

Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.

Manuel Alegre
Praça da Canção (1965)
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... De qualquer modo, o MA não dos meus poetas de cabeceira... Leio mais o Cesário Évora, a Sophia, o Ruy Belo, o Alexandre O'Neil, o Álvaro de Campos, e reconheço a sua influência nos meus "textos poéticos"...

Considero, em todo o caso, o "Nambuangomgo, meu amor" como um dos mais belos poemas da nossa literatura do séc. XX...

2. Quanto a esquecer, confesso que não consigo... Perdoar já perdoei a quem nos mandou para aquele vespeiro, três dias (a 25711/70) depois da invasão de Conacri (a 22) em que queríamos decapitar o PAIGC!... Nessa altura, todas as forças da guerrilha, no interior da Guiné, já estavam em "estado de alerta" e desejosas de vingança... Além disso, os páras tinham feito estragos, recentemente, neste subsetor do Xime...

Luís Graça disse...

... O Cesário é o Verde e não... o Évora!... Troca tintas!

Manuel Moreira disse...

Caro Camarigo Luis , gostei do poema que fala de um nome que marcou a minha vida na Guiné, Ponta do Inglês, pois vivi seguramente 5 dos 23 meses de Comissão , sabe Deus como !!!!!!
Abraço e Parabéns pelo Poema .

Luís Graça disse...

Manuel Moreira:

Obrigado pelo teu comentário... Sei que tiveste também o teu bocado de inferno na Ponta do Inglês, até à retirada do destacamento, em novembro de 1968 (se não estou em erro)...

Para além do que já aqui publicaste, não tens mais fotos, documentação, dados, relatos, impressões... ?

Um questão: no teu tempo (1968/69), as viaturas do Xime ainda usavam a antiga estrada, ou vocês só eram abastecidos pela Marinha, em LDM ou LDG ? Alguma vez tomaste banho na Foz do Corubal ? A Marinha entrava no Corubal e, se sim, ia até onde ? Lembras-te da Op Lança Afiada (março de 1969) ? Já estavas nessa altura no Xime...

Um abraço grande!... Luis