terça-feira, 13 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10661: Do Ninho D'Águia até África (26): Raízes de agricultor (Tony Borié)

1. Vigésimo sexto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (26)

Raízes de agricultor

A época das chuvas, já lá vai, e com ela foram quase quatro meses. Durante este espaço de tempo, o Cifra cumpriu as suas tarefas com normalidade. Só fez uma viajem de fim de mês, circulando, sempre em zonas de acção, mas não teve contacto com alguma situação que envolvesse conflito. No aquartelamento, a sua vida é quase de rotina. Uma, duas, e até três vezes por mês, são flagelados, durante a noite por granadas de morteiro, seguidas de rajadas de metralhadoras e tiros esporádicos de outra arma, talvez pistola. Isto acontece, principalmente, quando chegam tropas novas ao aquartelamento. Já consideram isto uma rotina, umas vezes, são avisados de possível ataque, outras não.

 Em primeiro plano Iafane, o barqueiro. De pé o Cifra

O Iafane, o “Barqueiro”, foto acima, sentado na sua canoa, olhando para o Cifra, (mais para a frente contaremos a sua história), muitas vezes dizia ao Cifra, nos momentos em que passam juntos, na sua pequena casa coberta de colmo, onde guardava os remos e outros utensílios, junta à ponte do rio, enquanto ele estava entretido, com um cigarro na boca, sem nunca o tirar, até ser consumido totalmente, na construção da sua nova canoa, e o Cifra, fumando e abrigando-se do sol tórrido:
- Cifra, pessoal mau, anda na zona.

E o Cifra, questiona:
- Como sabes.

E ele responde, mais ou menos assim:
- Tu saber, que eu sei, e digo a ti, porque tu és meu irmão, e cala-te, se militar no quartel, sabe que eu sei, estou morrido.

Isso era verdade. O Cifra sabia e o Iafane dizia isto ao Cifra, porque confiava nele e sabia do envolvimento do Cifra com as duas raparigas, que afinal eram guerrilheiras, suas vizinhas quando viviam com a família, na tal aldeia, próximo do aquartelamento, numa morança próximo da sua.

Mas continuando, quando acontece um ataque ao aquartelamento, fogem imediatamente para os abrigos, pois neste momento existe uma boa protecção em abrigos subterrâneos, que não são mais do que valas abertas no solo, da altura de um homem, cobertas com troncos de árvores, geralmente palmeiras, depois cobertos com um bom metro de terra. Há o inconveniente, de por vezes se encherem de água, que depois seca, ou se tira com um balde. À volta do aquartelamento, do lado das matas, em alguns locais, existe uma barreira de terra, afastada mais ou menos dois metros do arame farpado, com cerca de um metro de altura. Dá uma certa segurança. Se as primeiras granadas, não acertam no alvo, passado um minuto, já o pessoal está nos abrigos a proteger-se.

Durante estes ataques, e quando os rebentamentos começam a ser menos frequentes, sai uma companhia de intervenção, ou o pelotão de morteiros, tentando bater a zona, até onde sendo possível, não indo além de uma distância de duzentos a trezentos metros, talvez menos. Não sabem, talvez por sorte, ou uma certa experiência de protecção, não houve feridos ou mortes, além de uma reparação, aqui ou ali, em alguns locais, que foram atingidos pelos rebentamentos. Há uma área, no aquartelamento, que foi flagelada por granadas, que nunca se reparou. É para exemplo, de tropas novas, quando chegam ao aquartelamento.


O Cifra, nas horas em que não tem mesmo nada que fazer, trata de uma pequena plantação de couves e alfaces, que iniciou, próximo dos tais três furos de água quente, muito quente, a cheirar a enxofre, ou coisa parecida, que havia ao sul do aquartelamento. No solo, de cor preto/vermelho, largou a semente, que cobriu com um pouco de terra. Passadas umas semanas, já os vegetais cresciam. Era só regar de vez em quando.

Na altura em que a água tinha contacto com o solo, podia ver-se as alfaces a crescer, a desabrochar, como se fosse um ser vivo. Que espectáculo. Os vegetais eram consumidos no aquartelamento.

O Curvas, alto e refilão, passava muitas horas ao redor desta plantação, fez uma vedação, com paus, em seu redor, e não deixava que ninguém se aproximasse, ou tocasse nos vegetais, e dizia, na linguagem que todos lhe conheciam:
- Até que enfim que vi o Cifra fazer qualquer coisa neste aquartelamento, deviam de pôr essa “tropa fandanga”, que são os cifras, e todos esses, que estão metidos nos gabinetes, a cavar terra, pois assim já podiam dizer que trabalham, porra.

Era assim o homem.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10646: Do Ninho D'Águia até África (25): O comboio das seis e meia (Tony Borié)

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Tony

Pelo que percebi o "Curvas" não desdenhava de comer as 'tuas' verduras...
O que ele 'queria' é que fosses mais 'operacional'.
Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Ó Cifras, se as tuas "bajudas" (balantas, claro) eram "turras", e sabiam que tu eras o cripto, nunca chegaste a ser "raptado" ?...

Olha que era um grande grande ronco e o cabo dos trabalhos para os "tugas"... que lá teriam de mudar os códigos ... Foste duplamente sortudo...

Tony, parabéns pelas ilustrações que começaste a enriquecer os teus postes. Ando com as leituras da tua série atrasadas... mas posso desde já garantir-te que as tuas "personagens" vão ficar na nossa memória e na memória do blogue...

JD disse...

Viva Tony,
Parabéns pela iniciativa hortelã, coisa que na minha companhia nunca foi acarinhada. Uma ocasião "importei" sementes de Portugal, e destaquei dois bravos Foxtrot e bons agricultores para desenvolvimento de uma horta.
A terra era boa junto da cozunha, e foi aí que se deu inicio. As ervas despontavam e cresciam quase à nossa vista, mas o pelotão foi destacado para Copá, a horta abandonada, e não voltei à iniciativa.
Um abraço
JD

Tony Borie disse...

Olá camaradas combatentes.
Obrigado pelos vossos agradáveis comentários.
E como o Luis, fala em personagens, vou revelar em primeira mão, as "personagens", dos meus escritos. Eram todas diferentes nas suas personalidades, o Cifra, andava sempre cheio de mêdo, pois não podia ouvir tiros, o Curvas, alto e refilão, era um valentão, mas só na linguagem, e não queria que lhe dessem ordens, o Trinta e Seis, era um adulto, na sua maneira de pensar, o Mister Hóstia, devia ter sido Padre, pois era uma autêntica "Madre Teresa", o Setúbal, era bom guerreiro e amigo de verdade, o Marafado, era calado e não queria problemas com ninguém, mas também não fugia deles, o Arroz com Pão, era responsável, mas rigoroso em demasia, talvez pela responsabilidade de dar de comer a todos, o Pastilhas, era uma espécie de doutor, mas um pouco invejoso, pois queria o frasco do alcool só para ele, o furriel miliciano, era o que se podia dizer um "gajo porreiro", amigo, fumava, bebia e estava sempre pronto para o combate, o Comandante, era rigoroso, às vezes tinha cara de comandante, e não queria que lhe fizessem a saudação, talvez com mêdo que soubessem que era comandante e que por vezes dava ordens, que sendo cumpridas matavam pessoas, o Sargento da Messe, passava todo o tempo fazendo contas, e sempre estavam mal, pois tinham que terminar em zero, por isso pedia sempre a ajuda ao Cifra, que não era bom guerreiro, mas muito bom a fazer contas, que lhe resolvia esse problema, a troco de algum licor e comida, o Libanês, era um comerciante que havia na vila, e tinha duas filhas "boas como milho"!. Eram estas personagens, que foram verdadeiras, e que ajudaram a fazer a história da passagem do Cifra, por este conflito, que embora estivesse em zona de guerra, passou dois anos dentro do arame farpado!.
Um abraço, Tony Borie.