sábado, 10 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10646: Do Ninho D'Águia até África (25): O comboio das seis e meia (Tony Borié)

1. Vigésimo quinto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (25)

O comboio das seis e meia 

O Setúbal, cujo verdadeiro nome era Jeremias, como devem de estar recordados, e o Curvas, o tal soldado alto e refilão, que não acatava ordens e gostava de mandar, e que todos diziam devia de ser general, estes dois militares, por actos de coragem e bravura em zonas de combate, foram louvados pelo comando, em cerimónia a preceito, no centro do aquartelamento, debaixo da enorme mangueira, que por sinal tinha sido baptizada com o nome de “Mangueira do Setúbal”, a tal árvore de grande porte, onde existem as tais gaiolas de macacos e periquitos.

Isto tudo na presença de todos os militares, seus companheiros. O Setúbal foi só louvado, mas o Curvas, alto e refilão, foi louvado e agraciado com uma medalha cruz de guerra, que o comandante do comando a que o Cifra pertencia, lhe propôs e que devia de ter vindo receber a Lisboa, por altura do dia 10 de Junho, mas o Curvas, alto e refilão, recusou-se a vir a Portugal, dizendo:
- Não, vou a Portugal, pois não tenho lá família, nem amigos, nem ninguém, toda a minha família e os meus amigos estão aqui, comigo, e quando eles forem, eu também vou. Era assim o homem.

Nesta cerimónia, o comandante falou durante algum tempo, com elogios constantes ao Curvas, alto e refilão, que o escutava, contrariado, e sempre a falar baixinho, e mais tarde, questionado pelo Cifra, sobre a expressão do seu rosto, e o que estava a pensar e a murmurar, ele disse-lhe que era qualquer coisa como isto:
- Deixa-te lá de merdas e dá-me lá isso, que para mim não adianta nem atrasa, se fosse de ouro e a pudesse vender, ou se me arranjasses mas era um bom emprego, quando deixasse esta guerra, e que pudesse criar uma família, é que me ajudavas, pois eu sei que quando daqui sair, se sair vivo, vou continuar a ser um desgraçado, a carregar a caixa de engraxar sapatos, e enquanto limpo os sapatos, com o estômago quase sempre vazio, alguns pensando que são pessoas importantes, com o estômago cheio de bifes e outra iguarias, arrotam e cospem para o chão, e às vezes até me acertam, mas se isso voltar a acontecer, vou matar um, lá isso vou, e sei que vou parar à cadeia e continuar sem família, desprezado por todos. A única família que vou ter, vai ser a caixa de engraxar sapatos.

E o Cifra viu-o fechar os olhos um pouco, abrindo-os de novo, pestanejando, pois o sol batia-lhe na face, e ele disse que o seu pensamento não parava, quase que falava alto e murmurava qualquer coisa como isto:
- Anda lá comandante, dá-me lá isso, que estou cheio de sede, pois estou aqui a apanhar sol, sem necessidade.

O comandante, quando acabou os elogios, coloca-lhe a medalha, no peito, que o Curvas recebeu, mas sempre a falar baixinho, com uma cara de quem queria matar alguém. Só se riu um pouco quando viu o Trinta e Seis a chegar junto dele e abraçá-lo, e logo lhe disse:
- Estou cheio de sede, temos que ir beber qualquer coisa, deixa eles continuarem, enquanto estão aqui todos reunidos, vamos à enfermaria roubar o frasco do álcool ao “Pastilhas”, para mais tarde misturamos com água e gelo e uma azeitona salgada, que o Cifra vai trazer da messe dos sargentos.


Em seguida o comandante voltou de novo aos elogios, mas desta vez, ao Setúbal, e entre outras coisas diz:
- Homem bravo e com coragem, arriscou a vida para salvar os seus companheiros, debaixo de fogo, lutou, sem virar a cara às balas, bendita a nação que tem filhos destes, blá, blá, blá.

O Setúbal, envergonhado com tantos elogios, olhava o Cifra, tentando piscar o olho e abanar a cabeça, em sinal de desconforto, ao mesmo tempo que pensava, pelo menos foi o que disse depois ao Cifra, qualquer coisa como isto:
- Nação que tem filhos destes, alto lá, pára lá com isso, eu sou filho da minha mãe, pelo menos era ela que me dava de comer e me criou, quando era pequeno.

Afinal o Cifra tem razão quando diz que disseram à mãe dele que ele já não era seu filho, mas sim filho da nação. Quando o comandante acabou de falar, todos bateram palmas e, já com a cerimónia acabada, o Setúbal, tal como tinha antes combinado com o Cifra, depois de fazer a respectiva continência, pondo-se em posição de sentido, dirigiu-se ao comandante, na frente de todos, mais ou menos com estas palavras.
- Meu comandante, se me dá licença, com todo o respeito, queria pedir-lhe se podia ter como prémio, além de todos estes elogios, uma pequena licença de umas semanas e uma possível viagem a Portugal, nos aviões da Força Aérea. Esses aviões por sinal andavam sempre cheios com as famílias de militares importantes, principalmente esposas. Era isto que interessava ao Setúbal, pois queria pedir a namorada em casamento, estar com ela e com os pais. O comandante, na frente de todos, acedeu. E disse que ia pedir à Força Aérea um lugar e que quando houvesse vaga, lhe comunicaria.

Que alegria! Passadas umas semanas, o Setúbal pede ao Cifra para lhe cuidar do seu macaco e do periquito, pede-lhe umas calças e uma camisa, de roupa civil, que lhe ficavam a matar e que ao Cifra eram largas, com umas botas nos pés, que já conheciam o som do rebentamento de granadas de morteiro e de uma metralhadora, e tinham visto por diversas vezes a cor do sangue, alguns mortos em combate, vem para Portugal.

Quando regressou, em conversa normal, pois por muito tempo a conversa entre os dois era só a sua viagem a Portugal, que por vezes chegava a pormenores, em que o Cifra lhe dizia:
- Isso são coisas que só tu e a tua noiva devem saber, portanto cala-te.

Mas ele às vezes insistia e talvez querendo desabafar, dizia:
- Mas a minha mãe desconfia, eu conheço-a e sei ler o seu pensamento, pelo menos na despedida no aeroporto, ela percebeu tudo. Mas continuando com a história, disse ao Cifra que foi o último a entrar no avião e que viajou com o saco do exército, com alguns trapos, sempre em cima dos joelhos, pois o avião ia cheio com as tais pessoas importantes, principalmente senhoras, ia quase urinando nas calças, pois só teve oportunidade de ir uma vez ao quarto de banho, pois ia nos últimos lugares, e as senhoras, parece que combinadas, iam fumar, algumas, fumavam cigarros de cheiro agradável, arranjar o cabelo e as pinturas, e entregavam o quarto de banho, umas às outras.

Em Portugal, entre outras coisas, pediu a mão da namorada em casamento aos pais e talvez mais qualquer coisa, que ele às vezes queria confessar, mas o Cifra não lhe dava oportunidade de falar nesse assunto, fizeram uma grande festa, mostrou algumas fotografias, convive com a família e amigos, anda durante esse tempo, numa vida de herói e depois de fazer tudo o que entendia que devia de ser feito, vem para o aeroporto, com a namorada, que nessa altura já era noiva, a abraçá-lo, não o largando, beijando-o em tudo o que era face, e não só, chorando e sempre que o beijava nos lábios, fazia-o comer alguma baba e ranho, mas era baba e ranho, com sabor a sal e de amor, disso tinha ele a certeza, prometendo-lhe sempre que o esperava, que não só ela, nas suas orações, também a Nossa Senhora de Fátima o iam proteger, pois o senhor Prior todos os domingos iria mencionar o seu nome e de outros combatentes na missa, na altura do Espírito Santo. Quando ele já ia a caminho do avião, ela olha-o e num último suspiro, quase que grita:
- Até breve meu amor, já sou tua e continuarei a ser.

A mãe do Setúbal, ao ouvir isto, não conteve um desabafo e quase em surdina, diz:
- Eu já sabia, minha grande p..., ai, que nem quero mencionar o nome que ia para dizer, que o Santíssimo que está no céu me perdoe e salve a minha alma.

Mas logo em seguida, pega num lenço, que também servia de porta moedas, pois era lá que enrolava os seus míseros trocados, limpando os olhos chorosos, o nariz e a boca, retoma o seu pensamento e diz baixinho:
- Meu Deus, o que eu ia para dizer, pois ela vai ser a minha nora, mas a verdade é que é uma grande descarada, a mãe nunca teve mão nela, era só bailes e festas, e o meu filho todo contente atrás dela nem teve tempo para mim, pois na companhia dela sentia-se livre e andava sempre contente, porque lá na África andou sempre a dar o corpo às balas. Andavam sempre juntos, oxalá não esteja prenha, mas se estiver, logo que a criança venha perfeita, é meio caminho andado, e logo que o meu filho, regresse vivo.

Bem, mas continuando, a mãe, deu-lhe uma saca com alguma coisa para comer, do que ele guardou parte, para dar ao Cifra e regressa ao cenário de guerra, com uns quilos a mais, uma cor de pele diferente, cheio de boas maneiras. O Curvas, alto e refilão, na sua reles linguagem, dizia:
- O Setúbal, regressou um pouco “amaricado”.

A primeira pessoa que vai ver é sem dúvida o seu amigo Cifra. Dá-lhe um forte abraço, e puxando do jornal, que trazia consigo, diz:
- Oh pá, o teu comboio descarrilou, lê este jornal.

No “Primeiro de Janeiro” vinha tudo explicado, com fotografia e tudo. O Cifra, imediatamente reconheceu a locomotiva, ao fundo da encosta. Era a 1135, estava de lado, e duas carruagens a acompanharem-na pela encosta a cima. O seu pai e alguns vizinhos, seus conhecidos, também estavam na fotografia. O Cifra, passou a mão pela fotografia do jornal, com os olhos fechados e o pensamento bem longe, pois o acidente ocorreu a umas centenas de metros da casa onde nasceu o Cifra, que nessa altura se chamava To d’Agar, na aldeia do vale do Ninho d’Aguia, quando o comboio das seis e meia descia, apitando aflito, em direcção ao mar. Naquela encosta, quando criança, o Cifra, que naquela altura se chamava To d’Agar, andava por ali na companhia dos seus irmãos e alguns amigos, que entre outras coisas procuravam ninhos de melro e rouxinol, nas silvas e arbustos em volta do ribeiro que passava ao fundo do vale, e de rola e perdiz, nas terras mais altas.

OBS: - Ilustrações de Tony Borié
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10627: Do Ninho D'Águia até África (24): O nosso Cabo Reis (Tony Borié)

3 comentários:

JD disse...

Parabéns ao Tony,
De facto os seus relatos relativos a uma comunidade de camaradas na guerra, traduzem, não só a simplicidade de jovens agremeados pela tropa, como as motivações e insuficiências de cada um, as iniciativas do grupo, a capacidade de ultrapassarem as diferentes dificuldades, a partilha das alegrias e tristezas.
E tudo numa linguagem singela e que reproduz diálogos com grande fidelidade
Mas o Tony ainda revela o talento para desenhar, e as suas gravuras são excelentes complementos aos textos.
JD

Rogerio Cardoso disse...

A

Rogerio Cardoso disse...

Amigo Tony
De facto tens sido grande na escrita, devido à sua simplicidade e fácil entendimento. Ainda fico mais admirado pela facilidade no desenho que é bem elucidativo.
Quanto á história do avião da FAP e dos lugares serem ocupados pelas senhoras, vou-te contar o que se passou comigo, que confirma isso mesmo.
Fui ferido a 27 de Outubro/65 e dois dias depois, porque o ferimento era grave, estava pronto para evacuação.A 16 de Novembro, eu cada vez mais inquieto porque já tinha uma infecção de tal ordem, que se via o femur e deitava um cheiro nauseabundo, fui visitado pelo meu Com.Cor.Brancamp Sobral. Depois de ele me perguntar como estava, disparei e disse que concerteza iria ficar sem a perna (o que foi por pouco)por culpa dos militares de alta patente, cujas mulheres e empregadas viajavam para Lisboa, para irem ás compras ao Chiado e regressarem uns dias depois, e nós à espera a apodreçer.
Tem calma e espera um pouco, disse ele, e uma hora depois fui levado para o bloco para ser engessado até ao peito, para ser transportado, e horas depois (dia 17) pelas 9,00 h. embarquei no avião que vinha de Luanda, via S.Tomé, Bissau, Canárias, chegando ao HMP pela meia noite. E lá vinham as tais senhoras todas contentes, feridos só vinha eu e um nativo, em macas penduradas no teto. No fim a guerra, para muita gente foi uma maravilha, bom salário, as mulheres arranjavam quase sempre um tacho, como professoras, etc, alojamento, as tais viagens regulares, enfim até dizem que foram os melhores tempos da vida, o que acredito.
Um abraço do teu amigo Roger