sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10614: Blogpoesia (302): O teu lenço (Juvenal Amado)



Lisboa, 18 de Dezembro de 1971 > Embarque do BART 3872


1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872,Galomaro, 1971/74), enviou-nos este poema intitulado "O teu lenço":


O TEU LENÇO

O teu lenço acenando 
Tão só numa multidão 
As sirenes esmagam o teu grito 
A dor que permanecerá 
Será renovada em cada embarque 

Choram os teus e meus olhos 
Lágrimas que engrossam o Tejo 
De tanto nos verem passar 
Ficarão para sempre verdes as águas 
Turvas e repositório de saudade 

Os nossos olhos cobrem de nevoeiro a cidade 
As lágrimas perdidas na exaustão dos dias 
A cidade parece-me uma estranha 
Cinzenta sem um grito de revolta 
Cidade que se cansou de nos ver partir 
Permanece bela e fria como fêmea que rejeitou as crias 

Vais perdendo os contornos 
Vais-te diluindo na bruma da madrugada 
O teu rosto em breve confundir-se-á numa amálgama de prantos 
Só agora reparo que há uma parede de rostos e lenços 
O lenço branco acenando qual gaivota tentando voar 
Se essa gaivota me trouxesse o teu último beijo 
Saberia a Mar e à espuma dos anos

Juvenal Amado
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)

5 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Bonito, Juvenal,

É o sentir uma forma de sentir a partida. Foi, para mim, que de piegas pouco tenho, um dia que se mantém bem gravado em nó apertado da memória.
Não quis ninguém em despedida, em sofrimento. Pareceu-me não ter o direito de violentar assim quem de mim gostava. Não. Fui só na véspera "receber" o barco e de madrugada esperava os camaradas. Frio de temperatura e frio cá de dentro. Um homem aguenta melhor só e servia de treino.Era o endurecimento...
Senti de muitos outros o desanimo. Aquilo era uma loucura. Os lenços, os adeus, gritos de dor reprimida em peitos dilacerados.Recordo bem Juvenal.
Ab,T.

Luís Graça disse...

É um gesto que nos persegue há centenas de anos... O adeus, o lenço branco, a dor da separação, a partida das caravelas e das naus, a saudade...

Meu caro Juvenal, meu crao Torcato: Também eu estava sozinho nesse dia, olhando vagamente, distraído com os seus pensamentos, a população de cabeças, xailes e lenços brancos e polícias militares... Mas fez-me bem ler e reler o teu poema, Juvenal... Obrigado. Há momentos, na nossa vida, que nunca se esquecem, ou que só a morte (ou o Alzheimer) irá apagar... E este é um deles, para quem um dia subiu o portaló do "Niassa" a caminho da Guiné e ficou no convés a vê-lo afastar-se de terra...LG

Luís Graça disse...

Citando o Álvaro de Campos e essa obra-prima da nossa poesia que é a Ode Marítima:

(...)Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha. (...)

http://www.citador.pt/poemas/ode-maritima-alvaro-de-camposbrbheteronimo-de-fernando-pessoa

manuelmaia disse...

Juvenal,

No lenço que te acenaram ,tão carregado de sonhos,de esperanças,de carinho,de amor,ia também um querer de todo um povo com filhos,irmãos,namorados,envolvidos na mesma guerra que não queriam.

Tal como o Torcato e o Luís, fui só e não tive ninguém à minha espera.
E se não esqueço o dia da partida ,numa ave de metal,igualmente cheia de esperança e roída já pela saudade dos seus ocupantes, o do regresso foi bem pior porque não chegamos todos,e houve um caso que está gravado tão fundo,que nem que cem anos passassem poderiamos olvidá-lo, (falo no plural,porque todos o sentimos...) até pela proximidade do terrível acontecimento que nos levou dois furrieis cinco dias antes de embarque.
À chegada a Lisboa estavam as irmãs de um deles,açoreano,desconhecendo ainda a realidade( a morte do irmão João Lima,ocorrera dois dias antes e três após o acidente que sofrera juntamente com outros furrieis tendo um deles (Afonso,transmontano) morrido de imediato).
Estudavam em Lisboa, e a brutal informação passada para S.Miguel deve ter traumatizado de tal forma os pais que estes não conseguiram avisar as filhas...

Ainda hoje quando recordo isto, choro por dentro.
Foi horrível...

P.S.
Acabava por me esquecer,(face ao envolvimento) de te dar os parabéns pelo poema.Gostei.
abraço a todos.

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Costumava estar de manhã cedo no miradouro de Santa Catarina (sobranceiro ao Tejo ali sobre a Praça de D. Luís) e várias vezes ouvi o imenso clamor que lá chegava quando o TT (transporte de tropas) fazia soar as suas sirenes e se começava a afastar do cais.

Esse clamor, misto de gritos e de choros, faziam-me dizer para mim mesmo que quando e se chegasse a minha vez não iria sujeitar-me e aos meus a esse deprimente espectáculo.

E assim foi, embora as circunstâncias em que embarquei também fossem 'favoráveis' a evitar tal situação.

Como já relatei aquando da minha apresentação no Blogue, a 'falsa' partida no Ambrizete ocorreu a 26 ou 27 (não tenho agora bem presente), levando a bordo 6 civis e 6 militares e foram apenas os familiares destes que estiveram a despedir-se no cais enquanto embarcávamos numa lancha de transporte até ao Ambrizete que estava ancorado no meio do Tejo pois o atentado ao "Cunene" tinha sido em data recente.

Essa despedida foi digna, com lágrimas mas em choros nem lenços.
Logo que a lancha se afastou da muralha os tripulantes disseram-nos que não iríamos partir porque o navio precisava de afinações.

Só voltámos a partir, e dessa vez de vez, em 3 de Novembro e nesse dia fiz a minha despedida sozinho com a minha namorada, jantando num pequeno restaurante que ainda existe ali junto à Estação de Santa Apolónia, levando-a ao comboio e depois seguindo então para o Cais da Rocha onde tomei a lancha das 22.00.

Sem lenços, sem choros, sem gritos, sem lamentos. Apenas a confiança na justeza das decisões tomadas.

Mas sem dúvida que o meu caso foi o meu caso. O teu relato-poema está muito bem plasmado no que à maioria dos embarques diz respeito.

Abraço
Hélder S.