quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10599: (In)citações (43): Recordando coisas da Guiné (Manuel Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviada no dia 28 de Outubro de 2012 à caixa de correio do nosso Blogue:

Prezado camarada Carlos Vinhal,
Venho correspondendo ao teu incitamento de recordar coisas de Guiné...

Aproveito para partir mantenhas e responder ao Henrique Cerqueira, ao Mário Fitas e ao António Rosinha, que a minha prosa lhes mereceu atenção (P10554).

O capitão João Bacar Jaló começou a carreira militar nos Caçadores Nativos, em Bissau e Bolama. Dou a mão à palmatória: não comandava a CCaç 13, mas da Companhia de Milícias 13, de Catió, aquando dos eventos em Cufar. Fui recorrente nesse erro de simpatia.

Meto a minha colherada na desavença de natureza cronológica do NAVEG e do Mário Fitas e aproveito para espraiar memórias da Guiné.

A Operação Razia, do assalto final à mata de Cufar Nalu, ocorreu em Maio; a CCav 703 veio de Bissau para Catió, para a integrar. Nos referidos dias de Abril, andávamos com Os Fantasmas e outra malta, pela região de Buba e Incassol; o tabanqueiro e camarada comando João Parreira foi um dos feridos perto de mim, pelos estilhaços da bazucada turra que abriu as hostilidades, naquela sinistra madrugada de 20 de Abril de 1965.

Da Operação Razia fomos directos para a Fortaleza da Amura, sofremos a redução do período de descanso e voamos nos Dakota, para Nova Lamego (Gabu), de emergência, porque turras e companhia de boinas vermelhas, militares da República da Guiné, andavam por aquela imensa savana, pobre de arborização a meter-se com a tropa, a queimar tabancas, a roubar gados e a matar populações fulas. Uns andaram por Canquelifá, outros por Pirada, outros por Madina do Boé; a mim calhou-me a defesa e segurança à fatídica jangada do Cheche.

Em vésperas da rendição da nomadização em Cufar fixei a notícia da rádio de Argel, pela voz do Manuel Alegre, que Cabral convocara a imprensa internacional para dar a conhecer ao Mundo a iniciativa de limpar a Frente Leste de tugas, aniquilando-os ou empurrando-os, implacavelmente, pelo seu novo e poderoso armamento e lembro-me, como se fosse hoje, de ter premeditado o afundamento da jangada, em contingência, confiado na guarnição e no canhão sem recuo 10.7, instalado num jipe americano Willis, que o comando afectara à minha missão. A força que nos rendeu disparou-o contra um grupo inimigo, abateu dois, impecavelmente fardados, armados com duas “pachanga “ para eles e “costureirinhas” para nós (as pistolas-metralhadoras PPSH), despojaram-nos dos quicos, cintos, sapatilhas de ténis e de uma catana nova, decorada com as cores da bandeira bissau-guineense, que comprei ao novo dono pagando-lhe uma cerveja e uma lata de conservas de anchova, no estabelecimento de um libanês, na rua principal de Nova Lamego, que exibia a tabuleta publicitária da venda de “Bebida gelado”. Foi-me confiscada na mala do carro, na noite de 28 de Setembro de 1974, na barricada montada antes da ponte de Vila do Conde, enquadrada por um marinheiro, jovem e barbudo, que se borrifou para a minha justificação de a fazer circular comigo, como talismã, a indiciar-me “reaccionário da maioria silenciosa”.

A CCav 703 assumiu o sector de Buruntuma em 25 de Maio de 1965, salvo erro ou omissão, a render o Pelotão comandado pelo alferes Vinhas (CCaç 509 ou da CCaç Nativos 3?). Além fronteira via-se a testa duma força de blindados da República da Guiné, salvo erro Panhard´s, com os seus esguios canhões apontados à tabanca. O capitão Lacerda fez o reconhecimento e cuidamos de aprontar um potente fornilho, no eixo da aproximação, ribeirinho ao pequeno rio Piai, que se nos interpunha, um molho de granadas de morteiro e de bazuca, os detonadores conectados a um extenso fio condutor, ligado ao dínamo-explosor, que ficou no posto de comando. Constava que ele havia feito explodir uma ponte, à guarda do pelotão de Cavalaria mecanizada e do seu comando, decidido a opor-se ao avanço de uma força de blindados indianos, na sua agressão ao Estado Português da Índia, havia 4 anos. Caiu prisioneiro e teria sido sujeito de maus tratos extra, por tal valentia. Vivemos mais uma das incontáveis noites de insónia e de prevenção extrema, particularmente aos bazuqueiros, municiadores e remuniciadores, as reservas de granadas à livre disposição, que cobrimos com os panos de tenda individuais.

Nessa noite, a Natureza brindou-nos com o início da época das chuvas, diluvianas e trovejantes, relâmpagos prolongados, o céu em fogo e a dardejar raios e coriscos. Não obstante as propriedades de tanto metal de armas e munições a expor-se à sua atracção, dispersas quanto nós, Santa Bárbara terá orientado um deles a penetrar pelo cabo condutor eléctrico e a viajar directo aos detonadores do fornilho, que se consumiu, numa explosão medonha; o chão tremeu e, por momentos, ficou mais fogo que o fogo do céu. Amanhecemos pela enésima vez ensopados até à medula dos ossos e a tiritar, mais do desconforto que do medo, inseparável companheiro, esgotados pelo cansaço endémico e pela tensão e angústias das vigílias que precedem os combates; e logo nos sentimos mais soltos, ante a gratificante visão de uma enorme cratera, capaz de engolir mais que um dos blindados ameaçadores e pelo desaparecimento destes, sem nos dar combate. O reconhecimento coube à secção e ao furriel Simas que os topou recolhidos no quartel estrangeiro de Kandica, situado a cerca de 1,5 km de Buruntuma e de nós.

A informação posterior encheu-nos o ego. Ao ter conhecimento da vinda para Buruntuma da “cavalaria” de Bissau, o comando guineano da região mandou aqueles blindados para a fronteira, com missão dissuasiva. A fama dos novos vizinhos, a fazer a sua apresentação com a dantesca explosão duma “arma secreta” fê-los dar meia-volta. Tal cavalaria referia-se ao BCAv 705, apodado de Cavaleiros Marinhos e a esteira da sua fama vinha das constantes intervenções pelo Sul e pelo Norte e a economia das suas baixas. Sem embargo os bons comandantes das subunidades, companhias 702, 703 e 704, que a vinda do major Ricardo Durão, para segundo-comandante, veio potenciar, considerávamo-nos soldados afortunados, com mais sorte que valentia, eficientes como pilha-galinhas, pouco dados à lamechas e propensos à maroteira. Começamos a operar no Leste em interacção com a CCaç 727, destacada em Canquelifá e Ponte Caium, comandada pelo capitão madeirense Evónio Vasconcelos; a sua malta era muito fixe, tinha menos tempo de serviço, mas contava 16 mortos em combate. Dir-se-ia que cada tiro cada baixa.

Incluí a equipa da Soares da Costa que, em 1982, negociou o estaleiro e o património mecânico da Tecnil, na estrada de Santa Luzia. Diligenciamos pela contratação de alguns dos seus quadros, já transferidos para Angola. Seria o António Rosinha? Na ocasião, o engº Ramiro Sobral presenteou-nos com garrafas de vinho do Porto, de sua produção no Douro. Num espaço fronteiro a esse estaleiro jaziam as estátuas derrubadas em Bissau, escondidas pelo capim. Paguei 50 contos pela do navegador Nuno Tristão e obtive o respectivo BRE (Boletim de Registo da Exportação), destinando-a ao meu jardim, em memória patriótica. Começara o seu embalamento e apareceu um jovem, apresentou-se como Secretário de Estado da Cultura e anulou a transacção, a incumbência do ex-ministro, o angolano Mário de Andrade, ex-MPLA, alegando que as estátuas pertenciam ao património histórico da Guiné-Bissau. O memorial ao descobridor da Guiné continuou estendido no capim e os meus 50 contos reverteram para os cofres (?) do novel Estado.

O comandante Alpoim Calvão passou por situação idêntica, recentemente. Comprou a estátua do presidente americano Ulisses Grant, derrubada em Bolama, o negócio acabou anulado, mas a ele calhou-lhe ficar arguido de tentativa de contrabando. Que a nossa memória enferruje, mas devagar...

Manuel Lomba
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10203: (In)citações (42): Bombeiro ou Militar, há que optar (José Martins)

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