terça-feira, 2 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (14)

O herói Curvas

O cenário da área onde se encontram uns tantos militares que seguiam em normal patrulha e que neste momento esperam pela ajuda de um helicóptero, para fazer pelo menos duas evacuações, é este: capim e arbustos rasteiros, algumas árvores, também rasteiras, algumas até têm picos, um homem natural da província, que era guia e tradutor, está morto depois de uns minutos de agonia, no chão, um pouco encolhido, com duas balas alojadas na zona do peito que quase lhe perfuraram o corpo de um lado ao outro; um militar, com sangue em ambas as pernas, chora e lastima-se da sua pouca sorte, e um pouco retirado, encostado a uma dessas árvores sem picos, está o Curvas, alto e refilão, que chama filho da puta a toda a gente, pois vê o seu amigo Trinta e Seis, que tem uns arranhões dos picos das árvores que o feriram nos braços, porque é baixo, e tem a mania de andar sempre de camuflado com mangas arregaçadas.

A história foi contada pelos intervenientes, que ao chegaram ao dormitório, beberam água e se atiraram para cima das camas, alguns rompendo mesmo o mosquiteiro, pois vinham exaustos mas com um ar de pessoas importantes, e tinham alguma razão. Na noite anterior, o furriel miliciano entra no dormitório e avisa uns quantos:
- Amanhã, ao romper do dia, vamos sair em patrulha, preparem as G3 e carregadores, vejam se têm suficientes munições, se não tiverem, alguém que vá buscar uma caixa e carreguem os carregadores, pois as granadas, logo ao sair serão distribuídas, vai ser coisa simples, de rotina.

O grupo estava formado à hora e subiram para os Unimogues que os deixaram a sudoeste, numa zona de mato e capim, quase seca, de onde deviam começar o patrulhamento em direcção ao aquartelamento, onde estava previsto regressarem antes de anoitecer. Alguns já tinham feito este tipo de patrulhamentos e às vezes adiantavam-se, chegando a meio da tarde, ao aquartelamento, o que levava muitas vezes o Setubal dizer ao Cifra:
- Porra, quando sou eu, deixam-nos em casa do caral...! Mas estes deixaram-nos à porta do aquartelamento!

Enfim, voltando à história, andaram por mais de uma hora, nada de suspeito, não tiveram qualquer contacto com pessoas, o que leva o Curvas, alto e refilão, a falar na linguagem que todos lhe conhecem, dizendo:
- Aqui há merda. Não se vêm pessoas. Será que já entramos noutro País?

E o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que ia como de costume a seu lado, logo lhe diz:
- Tão alto e tão burro. Nós estamos perto do aquartelamento, que fica a dezenas de quilómetros da fronteira.

Mas o Curvas, alto e refilão, que não acatava ordens, não se convencia, e voltava a dizer:
- Não, isto não é normal. Não fales merdas, tem que haver aqui pessoas.

Ainda não tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras e já se ouviam tiros de metralhadora, vindos de umas árvores, um pouco ao longe.

- Abaixem-se, é uma emboscada. Grita o furriel miliciano que comandava este grupo.

Seguiu-se um tiroteio, não muito longo, pois passado uns minutos deixou de se ouvir tiros e o resultado foi a morte de um guia tradutor, que seguia na frente do grupo, e ferimentos com balas nas pernas de um militar, acima dos joelhos, que chorava com fortes dores, mesmo depois de estancado o sangue com ligaduras.

O helicóptero veio, evacuou o ferido e o morto e a título de curiosidade, pois a ordem era regressar ao aquartelamento imediatamente, mas o Curvas, alto e refilão que não acatava ordens, disse, tentando desapertar o cinto:
- Porra, esperem só uns minutos. Estou à rasca! Vou ali fazer um serviço que ninguém pode fazer por mim e volto já.

E foi revistar a zona de onde tinham vindo os tiros, deparando com uma pequena aldeia, apenas com duas casas, muito baixas, que se confundiam com o capim e demais vegetação, com um arsenal de armas e munições, assim como alguns documentos importantes.

Um achado valioso em termos militares, muito mal guardado, pois segundo se soube, deviam ser poucos os guerrilheiros, que ao darem pela presença dos militares, deviam ter disparado tiros, mas julgaram que se tratava de um grande grupo de militares logo se puseram em fuga, como era seu costume. E o Curvas, alto e refilão, continuava, dizendo:
- Eu sabia! Eu sabia! Vejam o que estes filhos da puta, aqui tinham escondido. Vou matá-los a todos, todos!

Entraram de novo em contacto com o comando, que enviou alguns reforços, assim como viaturas e veio o helicóptero de novo, que recolheu todo aquele arsenal, por diversas vezes, para uma zona próxima, onde podiam circular as viaturas, que por sua vez, transportaram todo o arsenal para o aquartelamento, todos olhavam o Curvas, como um herói e poucos recriminavam a sua linguagem, alguns, até o imitavam.

Este pequeno arsenal estava a poucos quilómetros do novo aquartelamento, sinal que os guerrilheiros avançavam e andavam por perto.

E o Setubal, dizia ao Cifra:
- Isto está a aquecer, qualquer dia escalda.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

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