sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 7 de Setembro de 2012:

Meus amigos,
Acabei de ler, o livro "Les Héros de la Guinée-Bissau: la fin d'une légende" de Lourenço da Silva, da qual fiz a recensão, em duas partes, de que anexo a primeira.

Nem sempre se tem acesso a obras publicadas em francês e sobre personagens conhecidos, como é o caso de "Nino" Vieira. Todavia, muitas vezes quando se tenta criar um mito pode-se gerar o efeito contrário.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


Nino Vieira – o mito (1/2)

Por Francisco Henriques da Silva

Pouco, muito pouco ou quase nada se tem publicado em França sobre a Guiné-Bissau. Recentemente veio a lume um livro intitulado “Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende”, do bissau-guineense Lourenço da Silva, publicado na Collection Points de Vue, edições L’Harmattan, Paris, 2012.

Esta editora, cujo nome deriva dos ventos alíseos de Leste, o chamado harmatão, oriundo do Sahel, que sopra de Dezembro a Fevereiro e que afecta toda a África Ocidental, dedica-se à publicação de obras sobre o continente negro, em especial sobre a África de expressão francófona, com aberturas ocasionais, como é o caso, às áfricas lusófona e anglófona.

“Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende” trata-se de uma obra que emerge num imenso deserto editorial e cuja relevância advém de um duplo circunstancialismo, por um lado, o centrar-se sobre aquele país africano, designadamente, sobre os acontecimentos históricos contemporâneos quase totalmente desconhecidos do público leitor a que se destina e, por outro, constituir uma referência isolada senão única – porque a bem dizer não existem outras - para o potencial auditório de expressão francesa.

Acresce que Lourenço da Silva era um dos assessores principais do falecido Presidente “Nino” Vieira, tendo sido designado como coordenador geral da Célula de Promoção Económica e de Inovação Tecnológica, colocando a ênfase nas Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação e na modernização dos serviços da Presidência da República. Presidia também à RENAJ, uma rede local de organizações juvenis. Apesar de jovem (trinta e poucos anos), era um insider e por conseguinte dispunha de acesso privilegiado ao “chefe”, ao círculo próximo dos seus colaboradores e apoiantes mais proeminentes e, mais do que isso, foi testemunha de acontecimentos importantes. Foi, pois, com natural curiosidade que se empreendeu a leitura do livro, à procura de factos, de relatos, de explicações, de pistas que nos permitam compreender a Guiné-Bissau actual. Todavia, ao folhearmos as suas 236 páginas a decepção é incomensurável. As naturais curiosidade e expectativa que a sua leitura desperta esvaem-se com as primeiras páginas e ao longo do texto raramente se reanimam, excepto, aqui e além, com algumas revelações quiçá menos familiares, mas de interesse limitado. Por outro lado, o autor, que se expressa num francês fluente e sem falhas, provavelmente fruto da sua educação em Dakar, confecciona toda uma história de ouvir-dizer, não enquadra bem os acontecimentos que ele próprio viveu, não analisa as respectivas causas, nem tão-pouco pondera as suas consequências. Além disso, expressa, amiúde, opiniões primárias e mal estruturadas.

O mais grave, porém, não está nesta abordagem pouco rigorosa e medíocre do autor, mas no desmedido e ridículo panegírico da primeira à última página consagrado à figura de “Nino” Vieira, donde o próprio sub-título da obra: La fin d’une légende - o fim de uma lenda. Aqui, Lourenço da Silva não poupa adjectivos, nem epítetos, Nino Vieira invariavelmente referenciado como o “Chefe” (assim mesmo na grafia portuguesa) ou o “general”, é simultaneamente uma reencarnação mista de Rambo, do Superhomem, do Batman, de Kim Il-sung, de Che” Guevara, com um toque de alguns mártires da igreja católica (inter alia, Joana de Arc ou S. Sebastião). Há de facto um pouco de tudo como na farmácia: o guerrilheiro mítico que tudo fez, mesmo o que humanamente não lhe era possível fazer; o super-herói das histórias em quadradinhos; o amantíssimo chefe e querido líder; o revolucionário romântico e o mártir que morreu na fé, sempre, por el bién de la causa. Enfim...

Para quase toda a história recente da Guiné-Bissau, desde os acontecimentos mais remotos do tempo da luta de libertação ao período actual, Lourenço da Silva assenta, no essencial, no testemunho do coronel João Monteiro, um dos apoiantes indefectíveis de “Nino” Vieira que foi seu chefe da Segurança e um dos mais conhecidos torcionários do regime ninista, muito embora sejam também referidos vários personagens do inner circle de Kabi na Fantchamna, como João Cardoso, Baciro Dabó e Cipriano Cassamá, entre outros. Esta “história” na terceira pessoa consiste num projecto arriscado, totalmente desprovido de rigor e que nos induz em erros grosseiros.

Quanto aos assassinatos do CEMGFA, Tagmé na Waye, e do Chefe de Estado, João Bernardo Vieira, em 1 e 2 de Março de 2009, respectivamente, Lourenço da Silva afasta a tese do ajuste de contas entre os dois homens e as respectivas facções, ou seja a tese mais difundida e comummente aceite como sendo a provida de maior credibilidade para a explicação dos eventos, para enveredar, por uma via sui generis: Tratar-se-ia, antes do mais, de um vago ajuste de contas generalizado contra Vieira e a Nação guineense, para, em seguida, elaborar uma alegação redonda, todavia claramente perceptível e demencial, atribuindo a Portugal um suposto envolvimento nos acontecimentos (!). Por outras palavras e em resumo, Lisboa seria a grande culpada. Questão arrumada! Qualquer das asserções carece, como é óbvio, da mais elementar fundamentação, mas isso parece não importar ao autor.

Atente-se no que escreve: ... rien ne nous empêchera de croire qu’il s’agissait bien d’une série de règlements de comptes avec Nino Vieira et la Nation Bissau-guinéenene (trad. - ...nada nos impedirá de crer que se tratava bem duma série de ajustes de contas com Nino Vieira e a nação bissau-guineense - p. 146).

Esta teoria do conluio, completa-se, pois, com a inclusão de Portugal. Depois de referenciar as reacções de Mário Soares ao assassinato do Chefe de Estado, menciona o “ajuste de uma conta muito antiga”, que teria que ver com os ressaibos do ex-colonizador. É preciso lermos com atenção o texto para nos consciencializarmos bem de todo este delírio. Assim, Nino Vieira avait peut-être trop péché devant le père colonisateur, en lui tenant tête pendant onze années. Puis son pouvoir dans les années 80 fut encore marqué par l’entrée de la francophonie en force. Sur une terre que les portugais avaient découverte au XVe. siècle, avant d’en obtenir le droit de possession en tant que colonisateurs à la Conférence de Berlin au XIXe. siècle. Le débat sera certainement très long pour évoquer tous les jeux obscurs des anciennes puissances coloniales pour maintenir leur puissance et influence en Afrique, même si cela devra leur coûter quelques attaques dans des presses locales sans visibilité (trad. – “Nino Vieira talvez tenha pecado demais diante do pai colonizador ao fazer-lhe frente durante onze anos. Depois o seu poder nos anos 80 foi ainda marcado pela entrada em força da francofonia. Numa terra que os portugueses descobriram no século XV antes de obterem o direito de posse efectiva na Conferência de Berlim no século XIX. O debate será seguramente muito longo para evocar os jogos obscuros das antigas potencias coloniais para manter o seu poder e influência em África, mesmo se isso lhes custar alguns ataques nas imprensas locais sem visibilidade” – p. 147)

De registar que esta tese é defendida, entre outros, pelo mentor de Lourenço da Silva, o famigerado coronel João Monteiro, já referido, atribuindo também responsabilidades ao Primeiro-ministro de então, Carlos Domingos Júnior (Cfr. http://ditaduradoconsenso.blogspot.com/2011/06/coronel-joao-monteirocapitulo-ii-guerra.html).

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10374: Notas de leitura (401): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (2) (José Brás)

4 comentários:

Anónimo disse...

Para que conste e acredite quem quiser...
NINO O MITO com pés de barro.
Não comandou a defesa da ilha do COMO.
A carta capturada a um guerrilheiro e na qual pede ajuda é verdadeira..mas nos "entretantos" "pirou-se" devido a doença..pois..toda a gente tem direito a estar doente.
Quando comandou a "frente sul", passou a maioria do tempo em Boké..dedicava-se a outros assuntos..bem podiam as NT montar emboscadas para o capturar que ele estava bem longe.
Era muito duro a mandar..quem não cumprisse..tinha o destino traçado.
Não comandou directamente o ataque a Guilege..quem o fez foi fuzilado por não ter "conquistado" (sic) Gadamael.

É verdade que no início da guerra demonstrou grande coragem física, mas não grandes dotes de comando.
Criou fama e nasceu o "mito".
Como é que sei isto..ora.. foi-me dito por quem o conheceu muito bem..e mais não digo.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

Nino dava-se maravilhosamente com os políticos portugueses quando periodicamente havia acordos para "o perdão da dívida".

Tambem se dava muito bem com uns empresários portugueses (em geral do norte), quando atravez de um consul no Porto lhe arranjava um certos financimentos para abastecer lojas francas em que ele era sócio principal.

Se fosse do interesse deste blog mencionar do que constavam as dívidas perdoadas publicamente divulgadas no tempo, posso mencioná-las.

Não foi pouco mesmo comparando com as doações da Suécia e dos Mig e material de guerra soviético.

Para mal da Guiné e mal de Portugal, a diplomacia lusa raramente acerta o passo, com os irmãos lusófonos.

Não sei porquê.

Esta afirmação (minha, pessoal)num post de Francisco Henriques da Silva não é provocação nenhuma.

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

(...) No entanto e apesar dos pesares a sabedoria popular ja disse que "onde ha fumo deve haver fogo, algures"

E mais nao digo.

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Cherno, penso que quando falas em fumo, esperas ver fogo e referes-te provavelmente às minhas palavras anteriores.

Mas pensei que o blog seria extravasado se entrarmos em certos campos longe da guerra, pelo que devo evitar o tal fogo.

São assuntos (públicos) já dos anos 80/90.

Cumprimentos