quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a primeira desta série:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)


O “AGUARDENTE”

O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.

Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.

Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.

Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.

Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.

Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.

Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.

O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!

Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!

Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.

O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:

O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.

As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.

Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.

Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.

Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!

Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.

Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.

Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.

Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.

O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.

Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.

É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.

O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!

Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!

Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

4 comentários:

J. Eduardo Alves disse...

uma estória com final feliz, contada pelo oficial, que na data já devia ser rejedor lá na aldeia, e hoje ainda não dispensa os galões, ora ora vamos ao passado da guerra para fazer Hestória, porque há muitas estórias dos que movimentavão a guerra no ultramar um abraço a todos José Eduardo S. Alves

Hélder Valério disse...

Caro Belmiro

Mais um 'retrato de época' e de caracterização de figuras-tipo com que nos tens brindado.
Afinal é também uma forma de se perceber como era formado o 'recheio' humano das unidades concretas que deram corpo às actividades das NT.
E embora 'cada caso seja um caso' a verdade é que estes estereotipos acabam por encontrar-se um pouco por todo o lado.
Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

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