terça-feira, 21 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho D'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)

1. Sexta estória de "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (6)

Apanhado pelo clima!

O Guedes vivia numa aldeia do interior, próximo da raia com a Espanha. Era irmão gémeo. Ambos os irmãos, serviam o exército. O outro irmão, já tinha sido mobilizado para o ultramar, noutra província que não era em África. Creio que nessa altura havia uma lei em que não podiam ser mobilizados, os dois, ao mesmo tempo, para o ultramar.

Pelas notícias que o irmão mandava nos aerogramas, naquela província era um paraíso. Era só paz, boa comida, paisagens de sonho, as pessoas amáveis, e dizia que tinha duas namoradas.

Estava a pensar em ficar por lá de vez, quando acabasse o serviço militar, pois em Portugal, a vida na aldeia, na lavoura, era rude, as raparigas, algumas tinham bigode e eram feias. Ali, onde o irmão se encontrava, eram todas exóticas e lindas.

Tanto bem lhe disse que o Guedes mete requerimento, em meia folha de papel selado, para ir também para o ultramar, para essa província.

Entretanto a guerra de libertação desenvolve-se, cada vez com mais força.

Havia mais conflitos, mais emboscadas, os guerrilheiros estavam em quase todo o terreno, já havia sinais de rebeldia também no sul, eram necessários mais reforços, urgentes, na província onde o Cifra se encontrava.

Todos os meses chegam novas tropas. Bem ou mal preparadas, chegavam.

Quis o destino que o Guedes, e muitos mais, viesse parar ao aquartelamento onde o Cifra se encontra.

Deu logo nas vistas, pois andava contrariado, e dizia:
- Não era para aqui que queria vir, qualquer dia mato alguém.

Além de andar contrariado, não acatava ordens, andava sempre sujo e com a mesma roupa, só comia quando queria, e muito pouco. Na maneira de proceder era parecido com o Curvas, alto e refilão, só que não comia, andava sujo e não mostrava ser violento.

Um dia, o Cifra cruzando-se com ele tentou falar-lhe.

O Guedes, olha o Cifra. A sua cara fica em frente do Cifra, mas os olhos olham em diferente direcção, para baixo e para o lado, repete duas ou três vezes, diferentes frases, sem senso, como por exemplo:
- Quero uma namorada bonita. Eu não sou daqui. Quem és tu, filho da puta!.

Dos lábios, ao pronunciar estas palavras, saía uma saliva, como se fosse baba. Não era normal. Alguns que sabiam a sua história chamavam-lhe, “Meia folha de papel selado”.

Ao sábado, quando algumas raparigas naturais, que lavavam a roupa para alguns militares, vinham trazer essa mesma roupa, faziam uma fila à entrada do aquartelamento. O Guedes, dirige-se a uma dessas raparigas, das mais vistosas, e com atitude agressiva, agarrando-a pelos braços, diz-lhe:
- Tu és a minha namorada, e vou ter sexo contigo.

A rapariga, começa a gritar, desesperada, tentando livrar-se dele. Nesse momento, o Guedes puxa de uma pistola, que trazia consigo, e dispara dois tiros. Uma dessas balas, atinge uma perna da rapariga.

Como se nada tivesse acontecido, o Guedes afasta-se e murmura:
- Esta já morreu, era feia, agora vou arranjar outra.

Foi preso e desarmado imediatamente, pelos colegas, e não ofereceu resistência.

O helicóptero veio evacuar a rapariga para o hospital da capital da província. O Guedes ficou preso nessa noite no aquartelamento, de onde se ouviam risos e gargalhadas, parecendo vir do local onde estava. No dia seguinte, uma secção de combate, veio trazê-lo à capital para ser evacuado para Portugal, para ser tratado e julgado pelo crime que cometeu, pelo menos foi essa a informação que correu em todo o aquartelamento.

Alguns, no aquartelamento, diziam:
- É muito pouco tempo para o “Meia folha de papel selado” já “estar apanhado pelo clima.

A partir desse momento, ao sábado, as raparigas lavadeiras eram protegidas à entrada do aquartelamento por uma secção de combate.

No início deste conflito de guerrilha, imprevista e traiçoeira, na província onde o Cifra se encontrava, a falta de treino e preparação dos militares, tanto psicológica como no terreno de acção, era constante. Havia alguns militares que se excediam, depois de terem direito a ter uma arma sob o seu controle, e havia alguns oficiais que abusavam do seu poder, como era o caso do capitão, que batia nos seus militares de inferior posto.

Havia muitas deficiências no sistema militar em campanha, onde quase tudo se estava a improvisar, como por exemplo, na arrecadação de material de guerra, onde não havia arrecadação nenhuma, pois era uma espécie de quarto, no novo aquartelamento, ainda em construção, onde estavam depositadas algumas armas, que sendo usadas, causariam uma catástrofe.

Tudo isto acontecia, num local de conflito, onde alguns militares, mal treinados, foram colocados numa frente de combate, onde alguns estavam sobre forte pressão nervosa, mal alimentados, sem assistência médica no local, pois as consultas médicas eram por apontamento, e no hospital da capital da província, com falta de alguns medicamentos de primeira necessidade, às vezes angustiados, e alguns mostravam que não seriam responsáveis pelos seus actos.

Isto era uma verdade que trazia o Cifra, também angustiado, e pensava muitas vezes, falando alto:
- Tantos jovens em idade de poderem usufruir dos melhores anos das suas vidas, na companhia dos seus familiares, nas suas aldeias, beijar as suas namoradas, alguns já com esposa e filhos, e em lugar de todas essas coisas boas, que a vida proporciona nesta idade, estão a milhares de quilómetros de distância dos seus, aqui enterrados, num conflito que a alguns nada lhes diz, como era o caso do Cifra, dentro de um aquartelamento de chão vermelho, circundado de arame farpado e sempre em sobressalto, pois não vão os guerrilheiros atacar daqui a um segundo e os abrigos, alguns, ainda estão cheios de água, pois estamos na época das chuvas.

Juventude amargurada!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho d'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)

9 comentários:

JD disse...

Tony,
O episódio foi muito infeliz, mas é verosimil, claro!
Já o retrato da tropa é genuíno, ainda que em instantâneo.
Um abraço
JD

paulo santiago disse...

Ainda não passaram duas horas sobre a
minha última passagem no,agora citadino,Ninho d'Águia...

Descreves muito bem os ambientes do
teu quartel...está lá tudo...
Continua!!!

Recebe um abraço do tamanho do nosso
Concelho
P.Santiago

Juvenal Amado disse...

Gosto muito de ler o que escreves, pois retratas o que foi aquele tempo antes do meu mas tão igual.

Quanto ao não ser permitido estarem dois irmãos ao mesmo tempo mobilizados, não sei alguma vez isso foi verdade e se o era não foi cumprido, pois no meu tempo quatro irmãos de Alcobaça estiveram ao mesmo tempo na Guiné e dois até eram gémeos.

Um abraço

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Juvenal Amado

Camarada e Amigo Juvenal,
Efectivamente essa de não ser permitido dois irmãos estarem ao mesmo tempo mobilizados, era mesmo uma "treta", como se costuma dizer. A intenção (se é que alguma fez existiu)nunca passou do papel. Para além do exemplo que apontas dos quatro irmãos de Alcobaça, posso-te dizer que também eu e o meu irmão, fomos ambos mobilizados para a Guiné, embora com espaço de um ano (eu fui em rendição individual). Por acaso até acabámos por ficar no mesmo BCaç.3833. Ele pertencia à CCaç.3307, e eu fiquei a pertencer à CCaç.3306. Estivemos os dois juntos (próximos)durante um ano. Um Grande e Forte Abraço

Anónimo disse...

Caros amigos,

A lei existia e era aplicada, desde que os interessados cumprissem os requisitos para o seu adiamento de comissão.

Por razões de emigração, casamento, emprego e outras, muitos preferiam não formularem o pedido de adiamento, para não atrasarem a sua saída do serviço militar, não adiando os seus propósitos de vida futura. Outros desconheciam a existência da lei.

Na minha companhia houve dois casos com decisões e resultados distintos.

No primeiro caso, o J. Serpa, que já estava na Guiné, viu dois irmãos mais novos serem mobilizados. Um, o Luís, chegou à Guiné antes do deferimento do seu pedido, que aceitou e regressou aos Açores. Mais tarde cumpriu a sua comissão em Angola.
O outro, o Celestino, foi para Timor cumpriu a sua comissão integralmente naquela Província. Desconheço se pediu adiamento, mas é natural que o não tenha feito.

No segundo caso, o Francisco Parreira viu chegar à Guiné um irmão mais novo, o António Luís Parreira Este, soldado condutor na CCaç 3414, BII17, decidiu não pedir adiamento. Faleceu em combate, no dia 29 Maio de 1973.

Abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: José Câmara

Camarada e Amigo José Câmara,

No meu caso, efectivamente não foi solicitado qualquer adiamento.
O que foi feito, foi uma solicitação para que eu não fosse mobilizado para uma zona de guerra a 100%, mas por exemplo para Cabo Verde, S.Tomé e Príncipe, ou Timor, tendo em conta que o meu irmão já estava na Guiné. A resposta foi mesmo a mobilização para a Guiné. Felizmente tudo correu bem para os dois. Acho que na maioria dos casos (a menos que comprovativamente fosse considerado amparo de mãe) não ligavam muito às solicitações realizadas). Ao princípio da guerra sei que ainda evitavam (ou era pura sorte) que os irmãos fossem mobilizados para o mesmo teatro de guerra, mas para o fim já era tudo carne para canhão, como se costumava dizer. Não havia tempo para mais... Um Grande e Forte Abraço

Juvenal Amado disse...

Tendo lido o comentário do José da Câmara acudiu-me uma dúvida;

Quem metia o respectivo requerimento e se aceite, quando o irmão regressasse seria mobilizado depois?
É que a ser assim não me admiro que que poucos utilizassem essa lei. Dois irmãos que estivessem ao mesmo tempo na tropa, se o mais novo tivesse que aguardar que o outro regressasse e fosse por sua vez mobilizado, isso representaria embarcar com muito tempo de tropa cumprido na Metrópole e depois gramar lá com dois anos ou mais. Era mesmo ver a vida a andar para trás.

Um abraço a todos e ao Zé da Câmara dizer-lhe que o Gordan felizmente não passou de um susto.

Anónimo disse...

Caro amigo Juvenal,

Nos Açores, as tempestades fortes, mesmo que não passem de um grande susto para as pessoas, causam sempre muitos danos na agricultura. Os ventos fortes quebram os milhos e arrastam consigo enormes quantidades de salmoura que provocam a queima das pastagens e outras culturas.

Respondendo directamente à tua pergunta, primeiro tenho que corrigir o nome de um dos irmãos Serpa. Indiquei o Luís Serpa, quando na verdade deveria ter referido o Afonso, irmão gémeo do Celestino.

O Afonso ainda esteve cerca de um mês na Guiné, regressou à sua unidade nos Açores. Cerca de uma semana depois foi mandado para casa, onde aguardou a chegada do irmão José, soldado da minha companhia e da minha secção.

Só então foi novamente chamado às fileiras e ao BII18. Daqui seguiu para a Amadora onde já se encontrava a sua Companhia. Foi para Angola.

No activo não cumpriu mais tempo que o normal. Mas a espera que fez, mais de um ano, certamente que atrasou os seus propósitos futuros. Entre esses a emigração para os EUA, onde já se encontrava parte da sua família.

Um abraço amigo,
José Câmara

Cesar Dias disse...

Juvenal, vi o teu comentário e posso dizer-te que isso se passou comigo. Omeu irmão foi mobilizado, em seguida fui eu, como eramos amparo de mãe, dirigi-me nas Caldas á secretaria para da companhia e a resposta que tive foi essa, eu era desmobilizado mas quando o meu irmão voltasse de Angola seguiria eu para a Guiné. Resultado, ele embarcou um dia depois de eu ter embarcado para a Guiné.
Um abraço amigo
César Dias