segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho D'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)

1. Quinto estória de "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op. Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (5)

Em cenário de guerra, deixas de ser tu! 

Já foi explicado no princípio, que quando os militares chegaram a esta vila, usavam as instalações, já existentes, de um antigo edifício em ruínas, que todos acreditavam que tinha sido usado anteriormente, por padres de uma ordem religiosa francesa. Era aí que funcionava o comando.

O Marafado, soldado pequeno na estatura, magro e moreno, talvez por andar sempre com o corpo descoberto, sem camisa, e que fazia parte do pelotão de morteiros, era algarvio, e dizia que era capaz de convidar o taverneiro da sua aldeia para beber um copo, e no fim não pagava, pois o taverneiro, oferecia o vinho!

Foi baptizado com este nome, porque cantava uns fados, muito desafinados, e não podia ver a caneca do café, cheia de vinho, que logo bebia, nos intervalos em que tirava o cigarro “três vintes” da boca, mostrando já uns dentes bastante escuros, aliás como quase todos os militares ali estacionados, devia de ser da água!.

Quando os militares, não estavam convocados para saírem em patrulha ou outras tarefas, andavam por ali, conversavam uns com os outros, jogavam as cartas, ajudavam em certos trabalhos sem serem convocados para isso, enfim, tentavam passar o tempo, quase sempre dentro do aquartelamento em construção.

O Marafado, não era assim, e dizia: - Eu não sou pássaro de gaiola!

E em especial pela manhã, quase sempre se dirigia à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existia perto do aquartelamento. Ia para lá, com a ideia de conversar com alguém, ver as raparigas, comer fruta de cajú, às vezes beber aguardente de palma, até diziam que tinha lá uma namorada, o que ele sempre negou, enfim ia passar o tempo. Nesse dia, para encurtar caminho, aliás como quase sempre fazia, passa mais ou menos pelo meio, desse edifício em ruínas, e vê, ao lado de uma parede de adobe, em ruínas também, dois corpos de africanos, quase nús, esticados no chão. Fica arrepiado.

Pára, põe as mãos na cara, e aproxima-se. Um cheiro esquisito, vem dos corpos, já sem vida, no chão. Não acredita, no que vê.

Vai ao encontro de alguém, mais velho na província, e questiona.

Esse alguém, vendo a cara, e a atitude do Marafado, mostrando algum pânico e desespero, encolhe os ombros, acende um cigarro e pergunta:
- Qual é o teu problema? Chegaste ontem à guerra? Pois sejas bem-vindo.

E mais lhe disse:
- Oh pá, isso com toda a certeza, que é o resultado dos interrogatórios que se realizaram durante toda a noite, por essa polícia, que anda aí, e que eu até tenho medo de falar no nome dela, pois lá na minha aldeia, muitos foram presos só de falar nesse nome. Também esse gajo africano, que ajuda nos interrogatórios, usa o cavalo marinho, como se fosse um autêntico vaqueiro do oeste americano. Até dizem que bate com um arame dobrado. Tu não viste, como a luz falhava de vez em quando esta noite? Olha que o problema não foi do gerador, que trabalhou toda a noite.

O cenário macabro, que acabou de presenciar, com os seus próprios olhos, acompanhou-o em pensamento, pelo menos, toda a sua comissão de serviço, na dita província. E antes de vir falar ao Cifra, seu amigo, pensou para si:
- Estes desgraçados não resistiram. O que teriam feito?

Isto é mesmo a sério. Não é como nos filmes que eu via, na televisão, quando bebia o meu copo na taverna da aldeia, em Portugal.

O Marafado, que era amigo do Cifra, veio dizer-lhe o que viu. O Cifra, foi ao local, e era mesmo verdade, quase todos os militares sabiam que era verdade. Estavam lá, os desgraçados, mortos, tesos, com o tal cheiro esquisito, e só com um farrapo a cobrir-lhe os orgãos genitais, via-se um pouco das costas, com marcas de chicote, ou qualquer outro objecto, na área dos pulsos tinham marcas com sangue, os olhos de um, estavam abertos, e as faces do rosto, mostravam aflição. Esse cadáver tinha mais marcas de sangue nas pernas e no peito, e uma marca profunda em todo o redor do pescoço, talvez de um arame.

Esta cena horrível ficou gravada na memória do Cifra, para toda a sua vida, e jurou a si mesmo que não ia morrer sem a divulgar.

Ao cair da tarde desse mesmo dia, já muito perto da noite, uns tantos prisioneiros, comandados por esse tal africano que colaborava com a tal polícia nos interrogatórios, retiraram os corpos do local e caminharam em direcção ao sul, saindo das ruínas. Passado pouco tempo, para esse lado, viu-se um enorme clarão do que talvez tivesse sido uma grande fogueira.

Tanto o Marafado, como o Cifra, quando se viam e se encaravam, a primeira coisa em que pensavam era na imagem dos dois corpos, direitos, firmes, em cima dos ombros dos prisioneiros que começaram a caminhar e desapareceram com o cair da noite, rumo ao sul.

A partir desse momento, o Marafado era outro homem, deixou de cantar. E o Cifra deixou de achar graça a certas piadas que se contavam a respeito dos guerrilheiros, criou algumas rugas na testa, e olhando para o Marafado, diz-lhe: - Dá-me um cigarro!

Começou a fumar a partir desse momento. Ao outro dia, pela manhã, foi à messe dos sargentos e comprou um pacote de cigarros, e fumou durante o resto da sua comissão de serviço na dita província, começou a roer as unhas em sinal de nervosismo, e sem querer, algumas vezes não tinha control, era agressivo na linguagem quando ouvia certas façanhas de companheiros a vangloriarem-se de coisas sem nenhum senso, a respeito de cenas de combate.

Mais tarde, quase todo o pessoal no aquartelamento sabia que as forças armadas não simpatizavam com essa polícia, e até se dizia que muitas vezes os militares, que saíam em patrulha, não traziam prisioneiros pois sabiam que se os entregassem estavam condenados à morte.

Outros diziam que depois dos interrogatórios havia sempre operações de destruição, com mortes inúteis de ambos os lados, onde alguns militares de acção, já com algum tempo de província, não se sentiam muito confortáveis.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10225: Do Ninho d'Águia até África (4): No aquartelamento, quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

2 comentários:

Juvenal Amado disse...

Meu caro Tony

Este relato é o levantar do veu que alguns querem manter sobre aquela guerra.
Há tempo na televisão um ex militante do PAIGC de Bafatá, dizia que os africanos ao serviço da policia politica bem como dos serviços de informação militares, que eram piores que os brancos na violência com que eram tratados. Eu também assisti a alguma dessa violência, também me calei com medo do que me poderiam fazer, mas não me sai da cabeça.
Era gente que não respeitava ninguém.
Tu estiveste em 64/66 eu estive entre 71/74. Como vês a coisa não tinha melhorado.

Um abraço

Unknown disse...

Não melhorou, mas sofisticou-se...
E como se perpectuou até ao fim da guerra, tambem por cá, tal como lá, anda muita gente com o 'credo' na boca.

Carlos Filipe
BCaç3872 Galomaro/71