segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 21 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Este padre siciliano foi expulso da Guiné em 1973 e a ela regressou após a independência do país, dedicando-se a conhecer melhor os balantas na vila de Tite e arredores, desenvolveu atividades na área da saúde, inclusive colaborou na construção de um hospital. Pesquisou e o resultado do seu labor deu origem a uma tese de licenciatura que apresentou na Universidade de Génova, em 1995 e que agora é dado à estampa nesta edição portuguesa, numa síntese.
É um documento utilíssimo para quem queira conhecer as virtualidades desta etnia designadamente nas suas vertentes antropológica e etnológica.
O Padre Cammilleri estudou a fundo a linguística e o seu texto está eivado de exemplos que permitem concluir sobre a congruência da língua nas diferentes vertentes culturais.

Um abraço do
Mário


Quem és? Eu sou Brasa

Beja Santos

“A Identidade Cultural do Povo Balanta”, da autoria do Padre Salvatori Cammilleri (Edições Colibri 2011) é uma obra de carácter antropológico e etnológico de grande mérito, resulta de anos a fio do contacto direto de um missionário com o povo Balanta, na região de Tite. O que o lançou neste empreendimento foi mesmo investigar no sítio a identidade cultural deste grupo étnico animista e que não conhece a hierarquia mas preza valores e vínculos e não se mostra interessado em quebrar a tradição.

De acordo com o censo de 1991, a etnia balanta representa 23 % da população guineense, vem logo a seguir à etnia fula que tem 24,8 % da população. Os balantas têm uma cultura essencialmente baseada na oralidade e o autor viu-se confrontado sobre que nome utilizar para os identificar. Os seus ancestrais apresentavam-se como o povo Brasa, progressivamente associaram-se aos beafadas. Os Brasa definem-se como os que permanecem sem interrupção, os autênticos. Para o autor Balanta ou Brasa são sinónimos. Em termos de ocupação do território, os balantas acantonam-se sobretudo em três áreas: na região dos rios Casamansa e Cacheu, território antigamente conhecido por Balantacunda; entre o Cacheu e o Geba, predominantemente no Oio, nas áreas entre Mansoa e Bissorã, segundo a tradição é a área onde se concentram os grupos de maior bravura (Kuntoi, Mané, Mansoanca e Brasa); e os balantas no Sul, presentes em Quínara e Tombali mas também no Oeste, na região de Biombo, são os balantas da diáspora.

O autor associa os balantas a insurreições permanentes contra a presença portuguesa, a última batalha foi asperamente travada em Nhacra, de 4 a 7 de agosto de 1924. O historiador Peter Mendy descreve-a deste modo: “Debaixo de uma chuva torrencial desenrolou-se uma feroz confrontação de quatro horas. Na impossibilidade de utilizar as suas velhas espingardas, os grupos dos cruéis guerreiros balantas lançaram-se de assalto com a espada e lança, simplesmente para serem varridos pelo fogo incessante das Snyder e Kropatcher dos portugueses e dos seus auxiliares africanos”.

Depois o autor centra-se sobre o território balanta que estudou, refere as atividades agrícolas, as alfaias, o seu sistema produtivo de arroz, como se organiza um arrozal balanta e descreve a organização social, os seus esquemas de parentesco, a estrutura de clãs, a ordem familiar e o papel dos mais velhos e das mestras e conselheiras. Explica a seguir a importância das cerimónias da iniciação em ambos os sexos e interessa-se pelos aspetos verdadeiramente identitários onde podem alinhar-se a cerimónia da parturiente, a atribuição de nome à criança, quem intervém na sua educação e como pode ser vista a clara separação nos currículos educativos de rapazes e raparigas, segue-se todo o encadeado de ritos nas diferentes etapas e a função que cabe em ambos os sexos em desempenhos obrigatórios como sejam os cuidados nos cerimoniais fúnebres ou os conselhos que os anciãos devem dar aos recém-circuncidados.

O escopo do trabalho do Padre Cammilleri tem a ver com a integração social masculina. Ele regista que o período de formação reservado aos homens ocupa as idades dos 6 aos 24/30 anos. É mais curto do que aquele que é destinado às mulheres, mas muito mais exigente e diversificado. A modificação da índole juvenil, escreve ele, é obtida através de um sistema de ensinamentos insistentes de noções, normas de vida e técnicas de trabalho até se tornarem homens. Percebe-se perfeitamente que o autor conviveu a fundo com esta população e registou ao detalhe o processo de integração social masculina. É conhecida a atitude balanta perante o trabalho e a sua pujança física. O autor diz que estes predicados poderiam ser pressupostos de violências e agressões frequentes mas tais manifestações de força são controladas pelo grande sentido de obediência ao chefe do grupo. O leitor interessado encontrará aqui a riquíssima documentação sobre as sucessivas etapas de formação, a natureza dos códigos iniciáticos e ritos e uma descrição poderosa dos diferentes rituais.

À guisa de conclusão, o autor considera que retratou os principais traços da forte unidade cultural dos Balanta/Brasa, as suas preocupações anímicas, o papel desempenhado pelo parentesco na vida do grupo e do clã e diz em dado passo se se perguntar a um qualquer jovem Brasa quem ele é ele responderá sem hesitação que é Brasa independentemente da terra onde nasceu, ou de onde vive, do clã ou linhagem a que pertence. A unidade de parentesco é confirmada na transmissão dos bens de pai para filho, ficando as mulheres excluídas. Contudo, esta exclusão feminina é recompensada pela norma tradicional que regula a afinidade e a aliança matrimonial entre as duas famílias extensas. É que o casamento é considerado uma verdadeira aliança entre duas famílias onde, para além do serviço da maternidade, é assegurada uma troca de prestação de trabalho e de outras ajudas que permanecem válidas até em caso de divórcio. A conjugação destes aspetos vem confirmar, observa o autor, a coesão e a integração cultural dos balantas, igualmente demonstrada a fidelidade da família às normas da cultura tradicional. No termo balanta encerra-se a complexidade desta identidade cultural: balanta significa “homens que recusam” e brasa é sinónimo de “gente que continua”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10247: Notas de leitura (390): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (3) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Unknown disse...

Olá Amigos.
Parece-me que os comentadores abituais aos trabalhos do BSantos se destrairam.
Ou as razões são mais profundas ??

Um abraço para todos e para cada um.
Carlos Filipe

Antº Rosinha disse...

Roma sempre apoiou os nossos reis nas conquistas e descobrimentos.

A fé e o império era uma das missões dos padres, mas muitos se dedicaram à botânica, zoozlogia, antropologia, mineralogia etc.

Poucos como este padre estudou BALANTOLOGIA.

Uma pena que só após a independência publicou o seu trabalho.

Talvez culpa de Spínola, porque se em 1971 este trabalho académico aparecesse, muitos chefes de posto e outros oriundos das ilhas crioulos tivessem previsto e evitado muita surpresas que têm surgido todos estes anos na Guiné pós independência.

Ao ponto de certos Balantas proeminentes se estarem a virar hoje mais para Meca do que para Roma.

MBSantos só agora peguei no computador no intervalo da "praia".

Desculpa o atrazo de só agora ter lido o teu trabalho.

Cumprimentos para o Carlos Filipe e todos em geral.