segunda-feira, 23 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10184: Notas de leitura (383): "No Percurso das Guerras Coloniais 1961-1969", de Mário Moutinho de Pádua (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 28 de Maio de 2012:


Queridos amigos,
É pena que este militante comunista disperse as suas memórias em questões fulcrais, salta de um assunto para outro, relata pessoas e situações com pouca consistência, o que é pena para quem quase ia sendo executado no Congo, observou a sociedade checa, viveu nos meios oposicionistas de Argel e trabalhou no Lar de Ziguinchor, apoiando o PAIGC.

É o relato de quem esteve no outro lado,  sentindo-se português antifascista e apercebendo-se que as causas com que simpatizava ruíam na areia. Apesar de tudo, confessa que viveu intensamente todo esse idealismo.

Um abraço do
Mário


Mário Moutinho de Pádua e o PAIGC

Beja Santos

Mário Moutinho de Pádua foi o primeiro dos oficiais portugueses a desertar, logo em 1961. Em 1963 escreveu um livro que provocou sensação, “Guerra em Angola”. O seu segundo livro, como escreve Pepetela, é uma espécie de crónica de vida, fica-se a saber como fugiu pelo Norte de Angola, as prisões que conheceu no Congo Léopoldville, onde parecia inconcebível que militares portugueses se recusassem a combater contra os angolanos, correu aqui todos os riscos de vida. Do Congo partiu para a Checoslováquia, e se vinha desiludido do Congo enquanto país dito descolonizado, o tal país dito socialista amargurou-o. Da Europa voltou a África, primeiro a Argélia e depois o Senegal, como médico apoiante do PAIGC (“No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969”, por Mário Moutinho de Pádua, Edições Avante!, 2011). Se a todos os títulos estas memórias justificam leitura para se conhecer um testemunho comprometido deste militante comunista sobretudo quanto à causa angolana e à sua vivência no meio oposicionista de Argel, é do maior interesse histórico o que ele escreve sobre o PAIGC. Como se vai sintetizar.

Mário Pádua chega a Conacri em 1967, começa a tratar os guerrilheiros guineenses no Lar do Combatente. Descreve as relações por vezes muito difíceis entre os políticos influentes da Guiné-Conacri e a Direção do PAIGC. Ao fim de algum tempo de estar em Conacri, Mário Pádua sentiu que estava a desperdiçar aqui as suas habilitações, vai então para Boké trabalhar com médicos e enfermeiros cubanos, um trabalho com recursos muito limitados. E conta o que viu numa visita que fez a uma base do PAIGC já em território guineense:

“A base constava de uma dezena de cabanas dissimuladas debaixo de árvores frondosas. Observei com particular interesse a sala de operações. Esta surpreendeu-me pela extraordinária limpeza do solo. Muitas salas de operações de países ricos não são tão escrupulosamente varridas ou aspiradas. Uma enfermeira afugentava as moscas durante as intervenções cirúrgicas”.

E de Boké foi transferido para Ziguinchor, colocado no recém-criado Lar do Combatente. A sua memória desliza para dirigentes, situações e considerações sobre a guerrilha. Mário Pádua sentia-se bem ali, havia mais meios:

“Enquanto eu ali trabalhei a provisão de medicamentos renovava-se sobretudo com os envios da RDA e, em menor escala, de outros países socialistas assim como de países nórdicos (…) O hospital local, cobrindo uma área cheia de pavilhões muito maior que o lar do PAIGC, dispunha de pouco mais camas e a alimentação não fazia parte dos serviços inerentes ao internamento”.

E conta como se relacionou com o médico vietnamita que prestava serviço no hospital de Ziguinchor.

Os meios postos à disposição do PAIGC eram rudimentares, nas suas bases os guerrilheiros passavam toda a casta de provações, viviam muitas vezes subalimentados. É uma descrição que importa registar. Primeiro os feridos:

“Logo que os desembarcavam assistíamos ao espetáculo de feridas enormes, abertas, que já não se podiam suturar, dado o intervalo de tempo que decorrera após a lesão. Eu e os enfermeiros guineenses, meus colaboradores, limpávamos os tecidos infetados com água oxigenada, cortávamos os tecidos mortos e terminada a limpeza cirúrgica tentávamos aproximar os bordos esticando a pele com adesivo. Sucedeu, em feridas fundas e com pequeno orifício de entrada, que quando retirava a sonda exploratória, me vinha ao nariz o cheiro inconfundível da gangrena gasosa. Um dia comecei a tratar um soldado que tinha o braço direito muito destroçado embora não sangrasse. Estas limpezas cirúrgicas em geral demoravam horas. Este doente não se queixava de dores. Quando terminei, pele, músculos, vasos e nervos de um dos membros superiores tinham praticamente desaparecido. Apenas restavam os ossos, completamente descarnados. Nessas circunstâncias só restava a amputação”.

Conta-nos episódios de extremo sofrimento, os guerrilheiros demoravam demasiado tempo a chegar a Ziguinchor. Mário de Pádua descobriu nos seus exames laboratoriais que o PAIGC travava a luta com um número impressionante de soldados anémicos.

Mário de Pádua é também testemunha da educação dos combatentes e da preparação ideológica dada no Lar de Ziguinchor. Mas tudo era precário face às inúmeras deficiências em meios de diagnóstico. Além de anémicos, os guerrilheiros passavam literalmente fome. Verificou que a alimentação em particular na época seca era tão fraca que chegava a induzir situações de fome, os camponeses tinham tal falta de arroz que não entregavam aprovisionamento ao PAIGC para não morrerem à míngua.

No Lar de Ziguinchor momentos houve em que a alimentação estava reduzida a arroz. O autor desdobra-se em histórias relacionadas com falta de meios de diagnóstico de tratamento que redundavam em insucessos no tratamento, para desespero dos profissionais de saúde. Mostra-se sempre assombrado com o estoicismo dos guerrilheiros:

“Quando os feridos demoravam dias para chegar a Ziguinchor, as larvas fervilhavam nos tecidos expostos. O que fazia parte da rotina da guerra e me deixava estupefato era o transporte de feridos e doentes por zonas flageladas, vinham em macas fabricadas com troncos. O esforço físico exigido dificilmente se pode conceber”.

E de novo o relato salta para assuntos de espetro mais largo como o relacionamento entre as autoridades do Senegal e o PAIGC. São notas soltas onde cabem a superstição africana, a convivência de Mário de Pádua com médicos vietnamitas e jugoslavos, os aspetos chocantes da extrema pobreza e a grande riqueza em Dakar, o vespeiro de informadores e boateiros,  conta como Amílcar Cabral lidava com o conceito de libertação da mulher e evitava o combate à poligamia.

À distância dos anos, perpassa por estas memórias uma incontida melancolia, medindo o desaire de tudo quanto se passou após a independência da Guiné-Bissau. Mário de Pádua faz muitas vezes uso das memórias de Luís Cabral vazadas em “Crónica da Libertação”, mostra-se inconformado com os desvios dos dirigentes para o prazer e as venalidades. Deixa transparecer muita inocência para as questões graúdas do caos pós-independência e a corrupção que assaltou o aparelho de Estado, em Bissau, diz não acreditar nos crimes que são atribuídos a Luís Cabral, o fantasma da PIDE e o perigo das tropas africanas parecem ser suficientes para justificar a barbárie em que se tem vivido permanentemente desde a independência.

São memórias avulsas, por vezes pouco consistentes, é enorme a porosidade no tratamento dos temas, salta vertiginosamente de uns para outros, deixando o leitor atónito pela mudança de agulha. Porque Mário de Pádua tem testemunhos riquíssimos e não ilude a frustração por ver espatifarem-se os mitos em que acreditou.

Pepetela descreve-o como um homem bom, corajoso, de ideias firmes, um homem que conhece as fraquezas dos outros, que percebe as tibiezas e as traições, mas não se vinga delas. A verdade é que sabe contar as suas deceções e adversidades sem abdicar das suas convicções, mesmo que apresente justificações insensatas. E as suas memórias são incontornáveis no que toca ao que viveu no Lar de Ziguinchor.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10174: Notas de leitura (382): A Caça no Império Português, de Henrique Galvão, Freitas Cruz e António Montês (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Mais uma de Beja Santos, embora eu já tinha lido outra recensão a este livro.

Na outra leitura soube que este autor era filho de um conhecido advogado e notário de Luanda o Dr, Pádua.

Este é aquele caso em que o comunismo, anti-salazarismo, colonialismo e as barbas à fidel estavam na moda.

A guerra fria que dava cá uma adrenalina que até cheirava a queimado.

Conheci gente em Luanda, que o grande sonho era fugir para Cuba, ainda havia barcos de bandeira cubana a passar por Luanda a carregar café.

Até um dia a filha do chefe da PIDE Silva Pais foi para Cuba.

Ai se a malta universitária hoje tivesse o entusiasmo daquele tempo!

Mas essa das gangrenas retratadas nos hospitais do PAIGC, traumatizaram de tal maneira os combatentes do PAIGC, que em Bissau os médicos cubanos no Hospital Simão Mendes eram vistos com desconfiança.

Foi criado o boato que ao mais pequeno golpe num braço, o médico cubano cortava o membro.

Isto é que foi uma vida...pode ser que a Guiné se slve, e Portugal e a Grécia também!

Cumprimentos

Unknown disse...

A ignorância o desconhecimento e a má-fé consciente transporta claramente para o ridículo. É exactamente isto o que eu estou a escrever Antº Rosinha. Você sabe tudo de todas as ex-colónias, e mais importante sobre todas as pessoas que tiveram maior ou menor destaque.
Além da sua carreira profissional em grandes empresas, não tinha mais nenhuma especialidade ???

Carlos Filipe

Antº Rosinha disse...

Muito bem amigo Filipe, tirando a má-fé, concordo contigo.

Não pelo hífen de má-fé se é do novo acordo ou não, mas porque não creio que seja má, nem boa a minha fé.

Cada um tem a sua e pronto.

O que sei da ex-colónias foi 18 anos em Angola, 5 no Brasil, 13 na Guiné e 5 nas antigas Ilhas Adjacentes.

"...não tinha mais nenhuma especialidade ???"

Como tinha!!! mas já não tenho (quase 74 anos)

A minha vida, devido a certas circunstância, não foi muito trabalho-casa-casa-trabalho, mas mais trabalho-galderice-galderice-trabalho.

Essa da galderice permitiu-me que hoje tenho uma cultura danada para fazer palavras cruzadas.

P.S., os últimos anos assentei, deixei a galderice e já tenho casa como as pessoas normais.

Aparece sempre, não faças como alguns que foram cansando.

Cumprimentos

antonio graça de abreu disse...

O testemunho insuspeito de Mário Pádua, nas palavras de Mário Beja Santos:

´"Tudo era precário face às inúmeras deficiências em meios de diagnóstico. Além de anémicos, os guerrilheiros passavam literalmente fome. Verificou que a alimentação em particular na época seca era tão fraca que chegava a induzir situações de fome, os camponeses tinham tal falta de arroz que não entregavam aprovisionamento ao PAIGC para não morrerem à míngua."

Então mas os guerrilheiros não haviam libertado 2/3 ou 3/4 do território da Guiné, não tinham armamento e um poder militar fabuloso, não tinham missões da ONU dentro do território (1972) a inspeccionar os seus hospitais e as suas aldeias? Não acabaram, com toda a certeza por magia, por derrotar no terreno as Forças Armadas Portuguesas, antes de Abril de 1974?

É pela verdade que me bato neste blogue desde 2007.
O resto, as opiniões de cada um, mesmo a estratificação mental do Carlos Filipe, a incapacidade de olhar o mundo de frente, como ele foi ou é, diz respeito ao foro de cada um.

Abraço,

António Graça de Abreu

JD disse...

Caro Rosinha,
A tua declaração biográfica fez-me rir, porque nela se esplana muito do conhecimento que se pode adquirir na vida.
Estive em África muito menos tempo do que tu, mas, porque convivia, tomei conhecimento de coisas, que de outra maneira não saberia.
A cultura livresca também nos faz falta, mas os livros devem ser lidos abertos, pausada e atentamente. Se forem lidos como livros religiosos eivados de dogmas, podem ensinar apenas o servilismo.
Caro Carlos Filipe,
O Rosinha tem essa particularidade de ser um camarada simples e despretensioso, que tem uma grande experiência e galdérice ultramarina. É natural que nas suas intervenções possa revelar alguma inconsistência, ou ingenuidade, porque ele será mais empírico do que estudioso. Quero dizer, que não tendo sido propriamente um "colon", não deixei de o ser, e revejo as situações africanas em muitas das intervenções do Rosinha.
Se tantas vezes tens sido injustiçado através de comentários jocosos e intolerantes, hoje caíste na esparrela de atingires por essa via o nosso Mais Velho.
Abraços para ambos.
JD

Anónimo disse...

O Dr. Pádua desertou por convicções ideológicas.

Mostra ao longo deste livro os seus "encantos" cada vez mais desencantados.
Como médico europeu observa uma realidade africana, que ainda hoje, infelizmente se mantém.
Pelos padrões da medicina ocidental(científica),quase toda a população africana é anémica e subnutrida, devido a múltiplas razões.
Só como exemplo, uma hemoglobina inferior a 8 mg /dl é mandantório uma transfusão de sangue (papa de eritrócitos)..ora quase toda a população africana tem uma dosagem inferior a 8...só que o organismo adapta-se.
Sobre as condições de vida e assistência médica aos guerrilheiros..se a nossa era o que era..então a deles era quase infra-humana.
Certamente que houve muitos actos heróicos por parte deles ao levarem os seus camaradas em condições de precaridade absoluta para serem assistidos.
No caso concreto de ferimentos de guerra a grande maioria certamente morreu antes de ser assistido devido à gangrena se instalar rapidamente com a respectiva septicémia,nos poucos casos de sobrevivência a única alternativa era a amputação.
Em 98 ainda encontrei na guiné muitos antigos combatentes do paigc mas amputados não vi nenhum.
Seria uma história muito interessante a fazer em termos médicos, mas infelizmente arquivos não existem,restam estes testemunhos.
Em 2002 conheci em Cuba um médico que tinha dado assistência ao Paigc em Boké,segundo ele, os casos de sobrevivência eram inferiores a 5%.

Sobre as questões politicas referidas no livro e aqui comentadas..já dei para este peditório..cada um vê o quer ver.

C.Martins