sexta-feira, 13 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10148: Notas de leitura (380): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 22 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Confirmo que se trata do mais singular, detalhado diário de um combatente da Guiné.
Há uns anos atrás, o historiador René Pélissier perguntou ao blogue como podia ter acesso ao livro. Só agora é que me apercebi, depois de uma consulta ao Google. Seria bem útil que confrades como o JERO ou Belmiro Tavares, vizinhos de Binta, comentassem o diário de Inácio Maria Góis. É uma escrita singela e sem retoques, vê-se que ele ouve e escreve conforme lhe soa. Toca pela sinceridade e inocência.
Quando dou por estas pepitas de ouro, questiono quantas edições de autor andam por aí a exigir leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


O diário do soldado Inácio Maria Góis (2)

Beja Santos

O primeiro ataque vivido pela CCAÇ 674 em Fajonquito ocorreu em 24 de Agosto de 1964, pelas 9 da noite, todos pegam nas armas e vão para os abrigos improvisados. Enquanto os guerrilheiros gritam “Venham cá, seus filhos da puta”, os soldados respondem, é uma flagelação que dura várias horas, com intermitências. Mesmo quando saíram para fazer o reconhecimento, a pouco mais de 100 metros, foram emboscados. Seriam 10 da manhã quando os Fiat começaram a fazer diversas rajadas, o contingente da CCAÇ que tinha saído em reconhecimento continuou a ser alvejado pelos guerrilheiros. E termina assim o seu relato: “O combate terminou pelas 11 da manhã. Os guerrilheiros puseram-se em fuga mas mostraram que estavam ali para o que desse e viesse. Tentaram ver a nossa reação ou a nossa fraqueza, mas viram que nós não fraquejámos”. No dia seguinte um civil de etnia fula capturou um suposto guerrilheiro que o comandante de companhia submeteu a interrogatório. O soldado Inácio Góis diz ter presenciado um crime horrível: “A pouco mais de 300 metros do aquartelamento ele foi obrigado a pegar numa pá e abrir a sua própria sepultura; não compreendi a razão do que estava a fazer ao jovem guerrilheiro, já indefeso, de mãos atadas e com uma corda ao pescoço”. E depois descreve a execução do jovem guerrilheiro que tombou sobre a sua própria sepultura.

Em Fajonquito recorda festas e feiras em Porto Covo, quando escreve em 29 de Agosto o seu diário lembra-se dessas festividades e pensa que as famílias dos combatentes não esquecem os que estão longe. No final de Agosto há um patrulhamento a Sanjábará, nada encontraram. Na noite de 1 de Setembro voltam a fazer uma patrulha de reconhecimento a tabancas mais ou menos a quatro quilómetros de Fajonquito. O comandante da patrulha faz perguntas aos chefes de tabanca, de maneira sóbria eles respondem que não há presença de “bandidos”. E a 2 de Setembro temos nova flagelação, repete-se a ida para as valas, é uma nova flagelação intermitente, prolongou-se até ao amanhecer. No reconhecimento, não encontraram sinais do inimigo. A 8 de Setembro temos a terceira flagelação, também perto das 8 da noite. No seu diário, em 12 de Setembro, fala das abatises que aparecem em praticamente todos os itinerários. É no regresso que rebenta uma emboscada e ele escreve: “Quando chegámos junto dos nossos camaradas deparou-se-nos um cenário de horror, alguns deles encontravam-se feridos e estendidos na estrada. Havia sangue por todos os lados. Tentei socorrer os feridos com maior gravidade aplicando diversos pensos para o sangue estancar. Os guerrilheiros atacaram com rockets, lançaram sobre os nossos camaradas dezenas de granadas defensivas”. Há muitas lágrimas porque um furriel ficou ferido com gravidade, um alferes que fora atingido com estilhaços de granada, estavam todos muito abatidos e ele registou as expressões de alegria da força emboscada quando os viu chegar. No regresso a Fajonquito foram flagelados mas não houve feridos a lamentar.

Em Setembro, entende explicitar qual a missão da CCAÇ 674: controlar e deter a entrada dos guerrilheiros que vêm do Senegal pelas fronteiras de Cuntima, Sitató, Sare-Uale, Sare-Bacar, Dungal e Cambajú; além disso, há que fazer patrulhamentos, emboscadas até à fronteira do Senegal; a par disso, compete-lhe proteger e apoiar as populações que vivem em Fajonquito e nas imediações. É uma constante no seu diário as queixas sobre a comida. Voltam à região de Sanjabará(1) em meados de Outubro, há novamente árvores no meio da estrada, a estrada para Farim está intransitável. Todas as deslocações, incluindo a Paunca, Contuboel e Bafatá, aparecem referenciadas, não se conhece diário mais detalhado, desde os cuidados pessoais, às relações com os superiores, o estado de espírito dos camaradas. Um tema recorrente é a discrepância do que se come na mesa dos oficiais e na mesa das praças.

No final de Novembro dá-nos a saber que o soldado Guimarães fez mesas e bancos para as praças, já se come com alguma dignidade. Assim se chega ao Natal: “Hoje, dia de Natal, encontro-me deitado na minha camarata, olhando para o teto da caserna que é composto por uma dúzia de chapas de zinco. A luz que me alumia é composta por uma simples garrafa de cerveja com um pouco de petróleo e uma pequena torcida improvisada dentro da mesma, tudo parece muito triste e muito só”. As entradas referentes a Janeiro de 1965 são muito sóbrias: registos sobre a comida; ralhetes do comandante de companhia; decide casar-se e escreve à namorada. Em 6 de Fevereiro ficamos a saber que existe a Cruz do Calvário, a expressão pertence-lhe, fica a mais de 8 quilómetros de Fajonquito, frente à estrada que fazia ligação a Farim, é o nome que ele pôs à primeira serração, ali ainda existem vestígios de viaturas e numa das paredes lê-se que quem manda ali são os guerrilheiros do PAIGC. Será aí que se irá fazer um posto avançado, uma mortificação, os guerrilheiros irão tentar assaltar o posto, nunca conseguirão.

Inácio Góis faz amizades, procura estar atento aos usos e costumes da população de Fajonquito. Em Março, nova operação a Sanjábará, tudo decorreu sem incidentes. No regresso, fala do seu casamento: “No dia 15 de Fevereiro de 1959 recebi a primeira carta da jovem Maria Antónia a dizer que aceitava o nosso namoro. A seguir à resposta da aceitação do casamento, cada um de nós começou a tratar dos papéis, o que para mim me parecia um conto de fadas. Encontro-me na frente de combate e não sei o que me poderá acontecer, mas tenho fé em Deus, que sairei deste inferno com vida, se Deus me ajudar”. Depois patrulham demoradamente à volta de Cambaju. Há camaradas que lhe vão dizendo, quando o vêm escrever nos cadernos: “não te esqueças também de escrever o meu nome para que um dia nós o possamos ler em paz se tivermos a sorte de sairmos deste inferno com vida”. Dias depois, vamos vê-lo numa operação na região de Caresse. Não houve um único tiro, não encontraram traço de presença humana.

De Março para Abril, durante um mês, não há nenhum registo no diário. Mas em 16 de Abril ele informa-nos que seguiu numa patrulha de reconhecimento em direção a Sare-Uale, junto à fronteira do Senegal e voltam por Cambaju, nada a registar. A 22, dá-se o seu batismo na igreja de Bafatá, celebrou um padre franciscano que lhe disse: “Tenho a fé que tudo há de correr bem”. Em 9 de Maio vem a primeira notícia de uma mina anticarro, o 3º pelotão saiu em patrulha de reconhecimento, com destino a Sitató, foram 3 Unimogs e um jipe, vários militares ficaram feridos. E temo-lo agora a caminho de Sanjabará(1), nova mina anticarro, não houve sinistrados. Ele escreve: faz hoje um ano que cheguei à Guiné. No dia seguinte recebe uma carta da noiva a informá-lo que o casamento se vai realizar no dia 26 de Maio, na Igreja Matriz da Vila de Sines. A 27, emocionado, descreve o que se terá passado em Sines: “Quis o destino que à mesma hora em que se realizava o meu casamento eu encontrar-me a combater na região do Caresse. Nessas horas de muito sofrimento não tive tempo para pensar que a minha futura esposa se encontrava no altar da igreja, na presença do padre Joaquim Ferreira de Sousa".

Mais um mês de silêncio no diário, a 26 de Junho a CCAÇ 674 parte para uma operação em Sarinháco(2).

(Continua)

Notas:
(1) - Sare-Jambara
(2) - Sare-Nhaco
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10134: Notas de leitura (378): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 11 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10142: Notas de leitura (379): "A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial que não se apagam", de Mário Beja Santos (Francisco Henriques da Silva)

2 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Mario B. Santos e Editores,

Nao sei se o Inacio M. Gois, ainda esta vivo e acompanha a publicacao do seu Diario na nossa Tabanca.

Gostaria de o saudar e dizer que a sua companhia deve ter sido aquela que esteve em Cambaju em meados de 65/66 e que constitui objeto das minhas memorias de infancia e que foram publicadas aqui neste blogue.

A minha mae, na casa dos 80 anos, ainda se lembra de um Furriel (Liberal ou Liberato?) que era amigo do meu pai e frequentava a nossa casa em Cambaju.

Quanto aos registos do diario, que estou a seguir com vivo interesse, através das maos, melhor dos olhos avisados do MBS, quero informar que ele pode corrigir, se assim o entender, a grafia de alguns toponimos referidos no seu Diario, fazendo-os corresponder a grafia utilizada nas cartas portuguesas elaboradas nos anos 60 e que ainda mantem a validade, para uma melhor orientacao e compreensao dos factos narrados.

Assim, em lugar de Sanjabara a pronuncia e grafia correcta e oficial seria Sare-Jambara e em lugar de Sarinhaco escrever Sare-Nhaco (nao consegui localizar na carta).

Podem localizar a zona de actuacao descrita no Diario (Fajonquito e area adjacente) atraves dos mapas do blogue: Colina do Norte e Banjara.

Sare-Jambara situa-se nos limites do Regulado de Sancorla, a oeste, e faz fronteira com o Regulado de Corla e, contrariamente a este ultimo que ficou completamente varrido do mapa e esvaziado da sua populacao, Sancorla, por meio dos seus Homens grandes e dirigentes, régulos em ocorrencia, resistiu fortemente contra a rebeliao nacionalista, defendendo-se com unhas e dentes, fazendo-se de zona tampao de uma vasta regiao completamente desabitada e dominada pelos guerrilheiros do PAIGC, desde Cuntima até Canjambari.

A regiao de Caresse esta situada a sudoeste de Fajonquito que, por sua vez, faz fronteira com o Oio.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Tino Neves disse...

É só para comentar sobre o livro do Inácio M. Gois, que tenho o prazer de o ter adquirido há já vários anos atras, assim que tomei conhecimento do mesmo, e o encomendei directamente ao Inácio Gois, pois ele pertencia à Companhia do meu irmão: Furriel Muliciano Mec. Auto SÉRGIO FAUSTINO DAS NEVES.
Li o livro todo em pouco tempo e gostei muito.
Quanto ao seu valor descritivo, acho que o Beja Santos tem toda a razão pois não sendo uma obra de intelectual tem o seu valor documental para um jovem que escrevia no seu Diário tudo o que lhe acontecia e o seu estado de alma, daí merecer o adjectivo de preciosidade documental que o Beja Santos lhe atribuiu.

Um Abraço
Tino Neves