quarta-feira, 11 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10142: Notas de leitura (379): "A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial que não se apagam", de Mário Beja Santos (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 10 de Julho de 2012:

Meus amigos,
Acabei de ler há já umas semanas, a "Viagem do "Tangomau" do Mário Beja Santos.
A meu ver, é um livro de arromba, com muita força, muito vigor e, sobretudo, muito sentimento, na medida em que, sendo como é, uma obra autobiográfica, percebe-se que está ali o grande acontecimento da sua vida, o que, aliás, também o foi para quase todos nós, saídos da pacatez do Portugal dos anos 60 e atirados, sem saber como nem porquê, para uma África desconhecida, que tínhamos dificuldade em localizar no mapa-mundi, mas que alegadamente era nossa. Por outro lado, para quem conheça minimamente o Tangomau, não é novidade para ninguém que os dois anos de comissão na Guiné-Bissau foram um dos eventos mais marcantes da sua vida. Com efeito, ele ali está, de corpo e alma, da primeira à última página. A sua perspectiva própria sobre a Guiné e os guineenses é uma visão muito humana, empenhada e, porque não dizê-lo, romântica, nalguns aspectos, até, de certo modo, mitificada.

O percurso do Tangomau é o do alferes-menino, trabalhador-estudante, urbano e culto que sai de Lisboa para, depois de várias etapas em Mafra, Ponta Delgada e Amadora, enfrentar em lugares ignotos da África Ocidental, uma realidade completamente desconhecida, em contacto com outras gentes, outros povos, outras culturas e, sobretudo, confrontar-se com a duríssima realidade da guerra, transformando-se num homem, na verdadeira acepção da palavra. É uma metamorfose que se processa ao longo de 3 anos de tropa dos quais dois de Guiné. Depois, já sexagenário, são as recordações do passado e a inevitável peregrinação aos locais de outrora e ao contacto com as gentes de então, que sobreviveram à passagem do tempo.

Porquê voltar? É o tal bichinho que de vez em quando nos morde e que não controlamos. A metamorfose completa-se: de menino a homem, de homem maduro a sénior e neste processo temos um mecanismo interveniente, despoletador e omnipresente - a Guiné e as suas gentes. Acresce que o livro está muito bem escrito. O discurso final de despedida é uma peça notável de oratória que merece ser lida e relida, uma pequena jóia, todavia não é crível que tenha sido proferido dessa forma, pois seria incompreensível para o auditório a que se destinava.

Em suma, é uma leitura que seduz e prende continuamente a atenção do leitor - para mais para quem, como nós - a "geração sacrificada" e já esquecida da grande maioria dos lusitanos -, vivemos situações semelhantes. As descrições de N'banké/Tangomau da Bissau actual e do próprio país pecam, a meu ver, por defeito, porquanto a realidade ultrapassa em pinceladas mais negras qualquer descrição possível. O país na prática não existe. É virtual. E a verdade tem de ser dita doa a quem doer, mas tal tarefa pode talvez ser confiada a outros que se debrucem sobre a Guiné-Bissau actual e sobre o gigantesco embuste que representaram 38 anos de violência contínua e de consequente subdesenvolvimento.

Alguns pontos merecem ser analisados e criticados. Detecta-se uma certa "overdose" no que concerne as descrições exaustivas das armas e mecanismos das mesmas, quando da recruta e especialidade do Tangomau em Mafra. Eu sei, de conhecimento directo, que o Tangomau passou alguns fins de semana no Convento, por não conseguir dominar completamente essas matérias esotéricas, mas, com a devida vénia e sem qualquer demérito para o resultado final que é excelente, há talvez algum excesso descritivo. A profusão de nomes de pessoas e de lugares é de tal ordem que confunde um pouco o leitor (já o dr. Leopoldo Amado o tinha referenciado, de forma simpática, note-se bem, quando da apresentação da obra). O autor podia, por um lado, reduzir a identificação das pessoas e, por outro, apresentar um mapa - ou vários - para que possamos orientar-nos no meio daquele emaranhado de aldeias e povoações, rios e bolanhas, florestas e savanas do Leste da Guiné. Eu que conheci o país, antes e depois da guerra, andei um bocado à deriva com certos lugares que não conseguia de todo em todo identificar.

Como nota final, as fotografias, em extra-texto, mesmo a preto e branco, ajudariam a situar melhor os eventos e as pessoas descritas. Eu fui um dos que disse "não vás," conhecendo como conheço, a Guiné-Bissau actual e as feridas não cicatrizadas do passado, mas o Tangomau foi.

O meu juízo final é, pois, muito, mas muito, positivo. É um livro indispensável em qualquer biblioteca sobre a guerra do Ultramar, colonial ou de libertação nacional - as designações ficam ao critério das opções político-ideológicas de cada um - e eu iria, mesmo, mais longe: a obra é relevante para uma estante de destaque sobre o Portugal contemporâneo, que a memória, não pode por forma alguma, apagar.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-alf. mil., de infantaria CCAÇ 2402)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10125: Notas de leitura (377): Massacres em África, de Felícia Cabrita (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Partilho inteiramente a opinião de Henriques da Silva, quanto à qualidade da obra literária em apreço, seja qual for o ângulo porque a queiramos analisar, mesmo estando apenas acerca de metade da sua leitura.
Discordo claramente acerca da apreciação que faz a um alegado exagero de pormenor na descrição do armamento e de outros dados, episódios, paisagens e pessoas. Penso mesmo que tal "exagero", abordando numa riquíssima e dinâmica escrita, quase nos pondo nas mãos, nos olhos e na alma as coisas a que dá vida, é mesmo um achado imprescindível que eleva o livro a um nível muitíssimo elevado. Desde já is meus parabéns ao Mário e o abraço sempre presente

Manuel Joaquim disse...

Há dois anos comentei assim o P6512, um dos "posts" em que Beja Santos apresentava a sua futura obra "A viagem de Tangomau":
" Oh Tangomau, que bela partida me pregaste!... Trouxeste-me os cheiros, os sons, as imagens, as sensações daqueles meses do verão mais frio da minha vida, frio no corpo e na alma, que nem a grandeza nem a beleza daquele convento de Mafra amenizavam.
Anda Tangomau! Estás com força e em forma. Estarei à tua espera quando cortares a meta, vitorioso! ... ..." (Obs.: em 1964 tirei, em Mafra, a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria)

Meu caro Beja Santos,
muito obrigado por esta tua obra, pelo prazer e emoção que senti com a sua leitura. Irei relê-la, agora com mais calma e com o gozo que sei ir encontrar nas suas páginas. Há nela muita coisa que também me pertence, muitas referências que também são minhas, eu "estou lá" em muitos sítios e situações.
Cumpriu-se a minha previsão e o meu desejo de há dois anos: o Tangomau cortou a meta vitorioso, com uma marca de grande qualidade.
Muitos parabéns, Mário!
Um grande abraço