segunda-feira, 9 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10136: Cartas do meu avô (12): Décima carta: a casa das Quintãs, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)



Região de Tombali > Catió > 2009 > Meninos de Catió... Muitos anos depois de lá estado o J. LMendes Gomes,  há uma jovem portugesa, cooperante e membro da nossa Tabanca Grande,  Marta Ceitil, que escreve o seguinte sobre a sua estadia  a Catió, em mail de 3 de setembro de 2009:


(...) "Segunda-feira viemos para Catió. A viagem foi tranquila, tinham-nos dito que ia ser horrível que as estradas estavam más... nada disso foi mesmo 'Shanti Shanti'. Catió fica no Sul da Guiné e é lindo, lindo. Aqui sim, sinto e vejo a Guiné que idealizei: paisagem verde, que contraste com o castanho das tabankas. Aqui as pessoas são bem mais calmas, parecem alentejanos. Estamos muito bem instaladas, na Missão Católica. O Padre Maurício (italiano) é uma personagem, muito bem disposto, tem 60 anos, e tirando o meu pai, é dos homens mais charmosos que alguma vez vi na vida (...). , Para além do seu aspecto físico faz umas massas óptimas. Está na Guine desde 1973 e é um espectáculo ouvir as suas histórias. A missa também é qualquer coisa…, primeiro é dada em crioulo e depois a música é tocada com djambés. Segunda-feira começamos a dar a formação aos professores. Este vai ser o nosso maior desafio, mas acredito que vamos dar conta do recado" (...)


Foto: Marta Ceitil (2009)




A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes,  membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos].

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)



B. DÉCIMA CARTA > A casa das Quintãs


>O apartamento de Azurva, embora razoável, era reduzido para a família. Tínhamos três filhos e queríamos ter outro. Sem perder tempo.


Naquele tempo, o custo das casas subia a olhos vistos. Se pensávamos em mudar de casa deveria ser depressa.Punha-se então, um problema. A casa de Azurva continuava sujeita às condições fixadas pela CGA, no primeiro empréstimo. Por mais dois anos, não poderíamos aliená-la livremente.


Comecei a lutar com a tentação de descobrir a forma como poderia dar-lhe a volta, sem ter problemas. Não tinha muitas pessoas com quem me pudesse abrir. Até que ponto a letra daquele contrato,  forjado nos míopes e opressivos tempos salazarentos, sem qualquer justificação actual, consistente e razoável, ainda era tida em conta pela CGA?


À letra, estaria a violar o contrato, se vendesse secretamente e ficasse com o lucro. Obrigar-me a aplicar o lucro na compra de outra habitação, necessária, ainda se justificaria. Perdê-lo em favor da CGA, isso não. Ora eu, como jurista responsável, não podia recalcitrar. Poderia pôr em jogo o meu posto de trabalho, se o fizesse.


Um dia, enchi-me de coragem e liguei para a única pessoa que conheci na CGA, com olhos arejados e que me pareceu homem de confiança. Era um segundo director, que tinha vindo do Banco de Angola,  como retornado.Estava na direcção já havia uns anos. Sabia bem como as coisas funcionavam.




Expus-lhe a questão claramente. Eu não pretendia fazer negócio com o caso. Queria apenas mudar depressa para uma moradia, a nosso gosto. Que desse para a família toda, actual e vindoura. Ele foi claro.
- Ó Mendes Gomes, esteja à vontade. Ninguém vai sobre si. Garanto. Não será o primeiro.


Mesmo assim, tive dúvidas. Era muito arriscado. Pensei noutra saída. Um novo filho vinha já a caminho. Um rapaz. Nasceria em Dezembro de 1980.

Entretanto, calhou que o irmão da nossa mulher a dias , acabava de regressar, de vez, do Brasil, devido à grande insegurança que lá se sentia. Estava farto de ser assaltado, de dia e às claras. Precisava de arranjar uma casa. A irmã, porque sabia, falou-lhe que talvez nós a vendêssemos. Que havia uns problemas mas tudo se poderia resolver.

Ele veio falar-me. Estava disposto a comprá-la , pagando tudo a pronto, se eu quisesse.
- Mas, podemos escrever um papel, o sr. É advogado- sabe bem como. O que eu quero é seriedade. Que não me falhe…Também lhe digo já: seria capaz de lhe dar um tiro na cabeça se faltasse à sua palavra…disse-mo ele naquele jeito próprio dum brasileiro que vinha lá do Rio de Janeiro, onde era pior que viver na selva.

Fiquei a pensar. Com um contrato promessa de compra e venda, poderia satisfazer as condições básicas, sem ofender o contrato. A venda real só se efectuaria daí a dois anos. Até lá, pagar-me-ia por mês uma importância igual à que eu tinha de pagar à CGA e esta importância abateria ao preço fixado.

Todo eu tremia de pavor quando, um dia, assinamos o contrato. Terei envelhecido uns bons anos naqueles dois que se seguiram, apareceram-me os primeiros e imensos cabelos brancos nas barbas e na cabeça, passei muitas horas da noite, em claro, sempre à espera de ser chamado à responsabilidade. Sempre à espera do pior. Que houvesse uma denúncia. Principalmente, quando a Filial era visitada pela inspecção.

Ainda hoje estou para saber se a CGA na sede, teve conhecimento. Penso que sim. Haveria gente na filial bem capaz de me denunciar…e se ufanar com a minha demissão.

Fosse pelo que fosse, nunca ninguém pediu contas. A situação objectiva justificava-a bem. E, não havia ninguém que fosse capaz de me acusar de corrupção, por um único centavo ou minúsculo favor remunerado. Enquanto toda a gente sabia de muitos que o faziam… às claras.

Dum momento para o outro, apareceram carros de luxo, pagos a pronto, não se como…em quem, notoriamente, não ganhava para tanto.
A casa das Quintãs era uma moradia nova, geminada, com quatro quartos, garagem e um bom quintal.  Ficava no meio rural. Rua do Sol  [,Vd. Google > Maps]  era o nome da rua onde ficava.

Certo, na escolha. Ali, os miúdos puderam conviver com outro mundo. Seguiram, sem dar conta às sucessivas tarefas de quem tem de tirar da terra o pão para comer. Desde o lavrar dos campos com tractor, ao pestilento adubar da terra à moda antiga, ao esverdear das searas de milho e ao seu amadurecimento. As carradas de bois, a esbordar de erva ou feno para o gado, o gado a pastar, o leite quentinho a sair das tetas das vacas da vizinha, ao pequeno almoço e a manteiga que dele se tirava... O corropio nas bicicletas à solta pelas veredas, os papagaios multicores, em plástico a voar ao vento...

Enfim um sem número de novas vivências que nunca mais esqueceram. Nela podia receber a visita dos avós, sempre que o quisessem, com muita felicidade para todos nós e p’ra eles.

Ali abri o meu escritório de advogado. Fui procurado por muitas pessoas.Alarguei assim e pus em prática outras vertentes do meu curso. Com proveito material e
imaterial. Os filhos cresceram. Entraram nas universidades e foram à sua vida. J.L.

J. L. Mendes Gomes
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Ponte de Lima > 8º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima > Jardins de Comer 7 de junho de 2012 > Algumas fotos... para se repensar os conceitos de cidade, campo, jardim... e um convite para visitar. Até outubro de 2012. "Há quem veja a árvore / e nunca descortine a floresta; há quem veja a flor / e nunca descubra o jardim" (LG)...

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.

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