quinta-feira, 5 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10119: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (3): Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!

Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados




1. Em mensagem de 2 de Julho de 2012, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos este texto,  lembrando as crianças de Mansambo do seu tempo.



PEDAÇOS DE UM TEMPO

3 - AS CRIANÇAS DE MANSAMBO

Crianças de Mansambo,  que será feito de vós? O Cherifo foi o nosso primeiro faxina, de olhar atento e profundo, por vezes sem nada dizer, ele dizia não. Um dia os condutores chatearam-se com ele, (não sei porquê, eu tinha vindo de férias à Metrópole), foi embora. Veio o António, bonacheirão e descontraído, para ele tudo estava bem, um dia abalou, os outros meninos diziam que tinha ido para o fanado e por essa razão deu lugar ao pequeno e frágil Demba, (era muito novo) pouco esforço podia fazer, foi faxina até à nossa ida para Cobumba.

Uma das coisas que mais gostavam de fazer era jogar futebol, alguns até já falavam no nome do Eusébio e do Cubillas, influências de Benfiquistas e Portistas, o calçado é que não ajudava, mas eram ágeis a correr. Quando o tropa jogava, eles esperavam e jogavam depois. Uns descalços, outros com trinta e oito de pé e botas rotas quarenta e dois.
Também a Califa que foi minha lavadeira, menina e mulher ao mesmo tempo, sem ter sido criança. Outros havia, por não terem sido faxinas dos condutores nunca soube o seu nome.

Que será feito de vós, meninos daquele tempo? Espero que para vocês a mudança tenha trazido um tempo novo, diferente e melhor, o que parece não ter acontecido a alguns dos mais velhos.
Se mais não tiveram, espero que tenham podido esquecer a palavra guerra e conhecer o que para vocês era desconhecido, viver em paz.
Fiquei feliz por saber que passaram a poder tomar banho na fonte sem necessitar de segurança, apanhar bananas sem medo de haver armadilhas. Poderem ir de Mansambo a Candamã ou a Afiã, sem picadores na frente.

Ao pequeno Demba a quem tinha prometido levar uns sapatos quando viesse de férias segunda vez e, que a minha ida para Cobumba não permitiu, ficaria feliz se pudesse saber que também ele passou a usar sapatos novos, como os que levei ao Cherifo e que a ele eu não pude cumprir a promessa.
Ficava magoado e triste quando alguém lhe dirigia palavras menos próprias, pensava sempre no meu filho que ainda não conhecia, também ficaria triste, muito triste, se alguém lhe dirigisse,  a ele, palavras assim! Não era com intenção de magoar, que essas palavras eram proferidas, eu sei, mas, sim, tentando descarregar a revolta que com o passar do tempo se ia acumulando. Só que, em quem não tinha culpa da situação em que nos encontrávamos… as crianças.

Há momentos na vida que nunca conseguimos esquecer, e eu jamais esquecerei aquele em que um grupo de meninos da tabanca veio até ao meu abrigo levar-me uma galinha, retribuindo e agradecendo assim os sapatos novos que eu tinha levado ao Cherifo quando fui de férias. Não pelo valor da galinha mas pela pela felicidade que todos eles deixavam transparecer naquele momento, que era contagiante.

Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!
António Eduardo Ferreira (*)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > Quase 40 anos depois... Meninos de Mansambo... e tugas, agora turistas de saudade, entre eles o  antigo... mansambeiro Saagum. 

Junto à fonte, a tristemente famosa fonte de Mansambo: aqui foi gravemente ferido, em emboscada montada pelos guerrilheiros do PAIGC, em 19 de Setembro de 1968, o Saagum, do 1º pelotão da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Recorde-se o relato do nosso camarada Carlos Marques dos Santos, sobre os três graves incidentes ocorridos em 1968 neste lugar, enquanto o pessoal construía, de raíz, numa clareira da floresta,  o aquartelamento de Mansambo:

(...) "A 11 de Julho de 1968 o IN reteve um dos nossos elementos, na fonte, e na perseguição, em conjunto com as NT, o Cmdt do Pel Milícias 103 accionou uma mina A/P, tendo sucumbido aos ferimentos. Deste nosso camarada só houve notícias depois do 25 de Abril de 1974. Em 19 de Setembro de 1968, a CART 2339 sofre uma emboscada, vinda da copa das árvores, também na fonte, enquanto procedia ao abastecimento de água, que causou 11 feridos (5 graves) e um morto. Um dos feridos graves viria a falecer no Hospital Militar de Bissau (241) a 25 desse mês. Em 30 de Setembro nova emboscada na fonte ao Pelotão de Milícia e uma mulher da Tabanca". (...)

Na foto acima, de 2006, os tugas, da esquerda para a direita, o José Clímaco Saagum, o António Almeida, o Manuel Costa, o Aguiar e o Casimiro. Legenda de Albano Costa, foto de Hugo Costa (Guifões / Matosinhos).

Foto: © Albano Costa/ Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (2): Gazelas em Mansambo

3 comentários:

Manuel Joaquim disse...

Belo "post"! Um jorrar de ternura, na foto e no texto, que me envolve e emociona!
Um abraço enternecido e grato ao fotógrafo (Torcato Mendonça) e ao autor do texto (Ant. Eduardo Ferreira).

Luís Graça disse...

Que ternura, que sensibilidade, que memória!

Julgo que ainda não te conheço pessoalmente, mas sei do que falas, conheci bem Mansambo, em 1969/71, dois campos de futebol, rodeados de arame farpado e abrigos... Não me imaginava a "viver" lá, dia a dia, 150 homens, mais alguns milícias africanos e suas famílias...

Parabéns, Eduardo Ferreira pelo teu testemunho! Obrigado em nome da Tabanca Grande.

Cherno Baldé disse...

Caro Eduardo Ferreira,

Gostei de ler estas recordacoes das criancas de Mansambo em que me revejo inteiramente.

E lembrei-me do meu último amigo, o João, 1º Cabo Mecânico, que pertenceu a ultima companhia (4514/72) que passou por Fajonquito (sector de Contuboel, regiao de Bafata). Quem o quisesse ver devia ir a sua oficina, onde passava o tempo a construir e a reconstruir os dois Unimogs, uma Berliet e um velho GMC, herdados das anteriores companhias.

O João fez parte do pelotão que devia entregar o aquartelamento ao PAIGC em Setembro de 1974. Muito amigo e voluntarioso tinha prometido oferecer-me a sua cama de tropa, mas era sem contar com as artimanhas dos guerrilheiros e novos senhores do país que, tao logo chegaram, puseram trancas (guardas) na porta d’armas e proibiram o acesso ao quartel.

Na véspera da sua partida, contornei a porta e os arames e enfiei-me lá dentro, o João estava a minha espera, comovido mas receoso com a minha presença. Ele sabia que eu viria, de qualquer maneira. Mandou-me subir para a viatura e pôs-se ao volante, atravessamos a porta d’armas sem parar, os guardas olharam, mas não puderam reagir, a tempo.

Ainda hoje, sao visíveis as marcas deixadas nos zincos da nossa casa, pelo portal traseiro do Unimog que manobrava para deixar na nossa varanda o espólio que trazia ao seu pequeno amigo: Um pequeno colchão de tropa, já negro de tanto uso e dois armários feitos de caixas de madeira, daquelas onde vinham batatas da metropole.

Toda a familia estava presente para assistir a despedida do nosso amigo branco. O João, homem tímido e parco em palavras, também, aproveitou para se despedir dos meus pais e da sua lavadeira que era, nem mais nem menos, a minha própria Irmã, mas que ele conhecia de longe, pois quem tratava de trazer e levar a roupa do quartel era eu e nao a menina, quase adolescente.

No fim, o João, pesaroso e o nariz vermelho, disse-me:
- Olha rapaz, desculpe, nao foi possivel trazer a cama de ferro.

Não era importante, amigo João, de qualquer modo, não ficaria com ela. Após a tua partida, decidiram entregar o colchão ao nosso pai maior, ou seja, ao irmão mais velho do meu pai, único local seguro contra a argúcia e malandragem dos agentes do PAIGC. Os armários serviram de lenha para cozinhar o matabicho do dia seguinte. Era material do inimigo, muito perigoso para os tempos que corriam.

E, eu me lembro sempre desse dia, tendo guardado dentro de mim a recordação do gesto e a postura de um homem íntegro, amigo e irmão que cumpriu a sua palavra, a risca.

Certamente, também, assim sentiram as crianças de Mansambo...de Mansabá...de Cuntima...de Bajocunda...de Canjambari...e de muitos outros lugares da Guiné que, entretanto, se foram tornando homens e sobrevivem nesta terra a deriva, sem rumo nem destino.

Isto é nostalgia? - Sim, uma nostalgia saudável e humana e que brota de dentro do coração dos homens bons e valorosos.

Um grande abraço para si e à todos os amigos desta Tabanca.


Cherno Baldé