terça-feira, 26 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta feita falando da irreverência do Lua.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (24)

O Lua

JPC – para “nós o lua” porque tinha (e tem graças a Deus) um frontespício arredondado, tipo lua cheia – era um soldado da CCaç 675.

Nasceu no concelho de Porto de Mós precisamente ao lado do “campo da batalha” onde Nuno Álvares Pereira “tratou da tosse” aos invasores castelhanos - hoje são ”nuestros hermanos”.

Estatura abaixo da média, era entroncado e bastante resistente – era! Frequentemente desleixado ou até um tanto abandalhado; conversava barato mas fluente… na asneira; tinha bom poder de argumentação mas não convencia ninguém. Eram falazes, regra geral, os seus argumentos. É daqueles a quem a tropa fez bem… mas pouco!

O Lua era até um bom rapaz, porque… não há rapazes maus. Não sendo frontalmente contrariado até era fácil convencê-lo a entrar nos eixos, mas por pouco tempo. Na tropa porém, a voz de comando tem de ser igual para todos – se não for, provoca indisciplina … contagiosa e perigosa – aí o Lua fazia das suas. E como ele sabia fazê-las!

Umas vezes por tudo ou por nada, outras com ou sem motivo, brigava com tudo e com todos mas nunca – creio mesmo que nunca! – se saiu bem dos conflitos pessoais em que deliberadamente se envolveu: levava sempre… para não variar!

A breve trecho os seus companheiros de secção descobriram a maneira de não despoletar as irascibilidades do Lua: - não contrariar, mas apoiar… verbalmente, pelo menos na aparência.

Quando desembarcámos em Bissau, os soldados (praças) foram alojados nuns armazéns velhos e imundos próximos da saída do cais e que não tinham as condições mínimas de habitabilidade; nem uma janela havia! Soldado sofria… p’ra burro!

Corria o mês de Maio; o calor sufocava; respirava-se mais água que ar. Ali cheirava muito a…, muita gente junta. Fora dos muros havia um terreno – terra batida e poeirenta – onde os cozinheiros distribuíam a comida. Não havia mesas nem bancos… “piquenicavam" a todas a refeições. Os soldados, marmita na mão, passavam em fila indiana em frente da cozinha improvisada e recebiam o desejado alimento, na presença atenta do oficial de dia.

Eu estava de serviço nesse dia; o almoço constava de sopa, batatas guisadas com carne, pão, vinho e fruta – um luxo!, só faltava o bagaço e o café. Os géneros pareciam em bom estado e a comida agradou dum modo geral a quem a utilizou! Era o que se escrevia no relatório do oficial de dia nas “guerras” de cá, naqueles tempos. Tudo corria normalmente, mas a certo momento apercebi-me que um cozinheiro (o Sines) e o Lua altercavam nervosamente. Perguntei qual era o motivo daquela contenda sem nexo; o cozinheiro esclareceu:
- Estou a dar uma concha de batatas a cada um e depois há repetição para os interessados; o Lua pretende receber agora a repetição; é o único que levanta problemas… procura sempre sarilhos; inventa-os quando não existem!
- Ouviste?!, perguntei eu ao Lua – vais comer o que tens na marmita e depois vens à repetição; há comida quanto baste para todos! Ninguém sairá daqui com fome!

O Lua virou costas mas, apercebendo-se que eu me afastei do local, voltou até junto do cozinheiro, barafustando por mais comida sem ter ingerido, ainda, a que já tinha recebido.

Interferi de novo, aconselhando-o a cumprir o que lhe havia sido transmitido. O Lua, porém, não era capaz de cumprir o quer que fosse à primeira; minutos mais tarde, sem ter comido, ainda a primeira dose, voltou à carga e já havia discussão brava; antes que a conversa azedasse definitivamente entre eles, aproximei-me de novo e transmiti ao Lua com ar irritado e em voz mais audível:
- Já te disse que, enquanto não comeres o que tens na marmita, não receberás mais guisado; vai-te embora!

O Lua permaneceu imóvel, a olhar para mim com ar estranho. Peguei-lhe no braço, fi-lo dar meia volta, empurrando-o levemente em direcção ao local onde devia comer. O Lua voltou-se rapidamente com ar agressivo; apercebi-me que ele iria sacudir a marmita; depreendi logo: - “aí vêm batatas”! E vieram mesmo! Baixei-me de imediato, mas algumas “aterraram” na minha boina. O Lua fugiu! Eu iniciei a perseguição; a fuga não tinha qualquer hipótese de sucesso, porque o recinto estava cercado de arame farpado e o portão, do mesmo material, estava fechado. Eu corria “por dentro” o que ajudava bastante, e o Lua até nem era grande velocista. Mal me coloquei a seu lado dei rapidamente um quarto de volta para o lado dele (à esquerda) e, em simultâneo, “assentei-lhe” uma valente bofetada de frente naquela sua cara bolachuda; apareceu sangue no nariz e na boca; levou mais uns tabefes – o Lua apenas tentou proteger-se; não vislumbrei qualquer tentativa de ataque. Ficou apenas com o “almoço”!!! Que eu lhe dei… nem pediu repetição!

Fui almoçar à messe dos oficiais (como habitualmente) lá para as bandas do Quartel-General, local onde hoje funciona um hotel; quando encontrei o comandante da companhia, relatei-lhe o que tinha acontecido.

O capitão comentou:
- Agiu corretamente! Faça a participação para se instaurar um processo disciplinar! Tem havido muitas contendas! Temos de travar a fundo! Os soldados ficaram abalados, tristes e nervosos porque, em vez de aportar a Moçambique, vieram parar à Guiné! Temos sido condescendentes mas isto parece que não vai lá com panos quentes! A bem ou a mal vão entrar nos eixos!

Eu respondi:
- Meu capitão! Se considera necessário e conveniente, eu participo; em meu entender, uma segunda punição, não é necessária; ele já tem quanto baste. Além disso, eu entendo que o castigo na hora é o mais eficiente. Algo mais que se lhe dê… é excesso!
- Assim sendo, não participe! Na verdade devemos evitar os castigos em O.S. (Ordem de Serviço) – o castigo oficial que vai “sujar” a caderneta individual – tanto quanto possível; os castigos na tropa não deverão ter consequências na vida civil.

Mas tinham! Devo informar que um soldado com castigos oficiais não podia vir a ser funcionário público; as empresas do Estado e as grandes empresas privadas seguiam a mesma via. Por outro lado, não há nada mais eficiente que o castigo no momento. Que sentido faz um castigo aplicado anos depois de se ter cometido a infração?!

De acordo com a minha proposta, o caso ficou sanado.
Tivemos um caso de um furriel que tendo sido punido na Guiné, quando chegou à sua terra já não tinha o lugar que antes ocupara na Repartição de Finanças local..

Uns dias mais tarde chegámos a Binta; o perímetro do aquartelamento, para efeito de defesa do mesmo, foi dividido pelos três grupos de combate; cada pelotão devia preparar a defesa da sua zona abrindo valas, construindo abrigos, postos de vigia; sempre que um pelotão não ia para o mato, tratava da defesa da sua zona; Cada secção abria uma determinada extensão de vala para “homem de pé”; concluída a tarefa os soldados refrescavam-se no rio de águas turvas e salgadas e ainda sobraria tempo para escrever carta à garota, antes do almoço.

O Lua “ditava logo as suas leis” aos companheiros de secção impondo como a vala devia ou não devia ser aberta. Os ouros soldados sentavam-se e apenas comentavam:
- O Lua é que sabe! Ele é que tem os livros!

Então era vê-lo a trabalhar (quase sozinho) por três ou quatro, mas resmungando sempre:
- Pensam que são doutores! O dinheiro não cai do céu aos trambolhões! Nunca serão nada na vida! Hão de ter um bonito enterro!

Os companheiros descobriram em pouco tempo como evitar sarilhos; se alguém contrariasse o Lua… haveria briga pela certa. Um dia no refeitório que construímos em Binta, travou-se de razões com o soldado Castro, de outro pelotão, por causa de um bocado de pudim; O Castro encheu a mão com pudim e “afinfou-lhe” uma sonora bofetada na cara que ficou argamassada com o pudim. O Lua foi lavar a cara imediatamente… refrescou as ideias. Não houve contenda… porque o Castro era um grande matulão… abrutalhado até… e um poço de força.

No dia 4 de Julho de 1964, no regresso de Lenquetó, o nosso batismo de fogo, 2 grupos de combate foram emboscados e tivemos logo 2 feridos graves; veio o heli mas não podia aterrar devido ao fogo inimígo. Estávamos cercados. No meio de uma confussão infernal o Lua rastejou até junto do enfermeiro, o nosso JERO, com o fim de pedir um comprimido para as dores de cabeça. Não haveria comprimidos suficientes para todos! Seríamos uns oitenta com intensas dores de cabeça. O JERO lá conseguiu, não sei como convencê-lo a voltar ao seu posto. Depois de evacuados os feridos e com apoio de dois “T6” mandámos as dores de cabeça… às malvas e, debaixo de fogo farto, abandonámos corajosamente aquele local, provocando numerosas baixas ao inímigo.

Desde 1967, o Lua foi um frequentador assíduo das nossas confraternizações anuais; de início, cada ano trazia mais um filho. Era um dos indefectíveis. Regra geral não lhe cobrávamos os almoços dado que vivia com certas dificuldades. Quando os filhos se tornaram adultos… passaram a pagar, pois todos trabalhavam para o mesmo monte. Há cinco anos reunimos em Campo Maior, nas instalações da Delta. Como sempre o Lua estava lá! Na hora de pagar anunciou que ia ao multibanco; foi… e não voltou! Por descargo de consciência informei o capitão do sucedido que logo sentenciou:
- No próximo ano, se ele comparecer, não come sem pagar os dois almoços!

No ano seguinte, no terreno do “JERO,” (Alcobaça) o Lua compareceu… com ar comprometido; “esqueci” a ordem do grande chefe e só lhe cobrei o almoço desse ano! Não lhe falei do seu comportamento anterior; mas coloquei-lhe a mão no ombro, e, sem que ninguém ouvisse, transmiti-lhe amigavelmente:
- Deves comportar-te como adulto! Lembra-te que já tens netos e deves dar-lhes bons exemplos! Pensa nisso!

O Lua desfez-se em desculpas! Tudo terminou ali!

O seu único filho do sexo masculino veio sempre com os pais às reuniões da companhia. Já casado, estava sempre presente. Um dia conversou mais demoradamente comigo e fez-me a seguinte proposta:
- Como calcula, um dia o meu pai deixará de comparecer a estas confraternizações que eu considero muito especiais; eu nasci e cresci sempre neste ambiente. Eu gostava de, por impedimento de meu pai, ocupar o lugar dele; posso contar com o seu acordo?
- Oh! João!, tu já participaste em mais reuniões que alguns dos nossos ex-combatentes; por direito próprio, tu já és um dos nossos! A partir de agora eu não esquecerei de enviar a convocatória também para ti, independentemente da que enviarei ao teu pai; oxalá as envie, por muitos e bons anos aos dois.

O filho do Lua foi comparecendo na companhia do pai até que, num acidente de caça… desapareceu de entre os vivos!

O bom do Lua aguentou mais esta “bomba”! Com muita coragem… muita resignação… muita valentia; portou-se heroicamente. Elas não matam… mas nunca mais foi o mesmo… nem física nem moralmente! Tem andado com a borda um tanto debaixo de água… talvez também pelos excessos antes cometidos. A saúde começa a abandoná-lo.

A mãe do Lua era massagista do clube lá da terra. Um dia, já casado e pai de vários filhos, foi à bola; desentendeu-se com um GNR e tentou agredi-lo; para não variar… levou das boas e passou algumas horas no posto; pagou não sei quanto para não pernoitar lá – o que desequilibrou ainda mais o seu, já de si parco, orçamento familiar – esposa sofre!

O Lua telefona-me com frequência… assiduamente mesmo; é certamente o soldado que mais vezes me telefona; não ficou zangado comigo… nem podia! A briga foi entre o soldado e o alferes… não envolveu o C nem o T. Há que saber separar as águas! E ele tem sabido!

Recentemente telefonou-me eufórico; foi há poucos dias: queria experimentar se o seu novo telefone por cabo funcionava devidamente; aderiu à TDT via cabo e quis comemorar com o amigo!

Mais recentemente, 2 semanas depos do nosso almoço – convívio, telefonou-me a informar que a CCaç 674, a irmã gêmea da CCaç 675 ía realizar mais uma confartenização a 27 de Maio; o organizador informou que era o 18.º Convívio. Nós levamos 46 noutros tantos anos soubemos também pelo ex-1.º Cabo Oliveira que aquela companhia teve na Guiné mais de 15 mortos (já lhes perdeu a conta).

Pobre rato! Os excessos que cometeu na vida e os imponderáveis trazem-no acabrunhado… de rastos! Não admira! Também depois do que sofreu com a morte prematura do filho… daquela maneira! Bem tenta parecer o mesmo… mas não consegue. Não deixa de ser um bom rapaz! – nem podia!

Que Deus o ajude!

Maio de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9933: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (23): A TV na nossa guerra

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